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Capítulo 02 - A cilada

2 ANOS DEPOIS. — BROOKLIN, NOVA YORK.

— Uma dose de Whisky, por favor. — Pediu um homem ao se aproximar do balcão, apoiando os cotovelos sobre o mogno.

A voz dele soou quase inaudível ao misturar-se no ar com o som das batidas frenéticas de uma versão remix da música Black Widow.

Por isso, encarei-o por algum tempo em meio à baixa luz. Ele deveria ter cerca de vinte e sete a trinta anos. Alto, teria provavelmente, um metro e oitenta e cinco ou noventa de altura. Sua expressão era séria e beirava o mal humor. Os cabelos iam de um tom loiro escuro para o castanho jogados de uma forma sexy, mas bagunçada eram maiores no topo da cabeça e curto dos lados, fundindo-se à barba cheia que preenchia ao redor da sua boca e maxilar anguloso, uns poucos tons mais escuros que os cabelos. Olhos verdes expressivos, num tom quase acinzentado, destacavam um rosto harmônico e bonito e tomavam toda a minha atenção de um jeito estranho. Em outras circunstâncias — digamos, se ele não estivesse em uma boate de Srippers — eu o teria achado lindo e muito gosto. Ele tinha braços fortes e estavam cobertos pela camisa social branca e um terno blazer preto, sem gravata.

Um sentimento de reconhecimento reverberou dentro de mim, mas era sexta à noite e a casa estava cheia. Os homens que costumavam frequentar a boate eram bonitos, mas não se assemelhavam com a figura do outro lado do balcão. Por isso, continuei a encará-lo descaradamente, analisando os pequenos vincos que se formavam por cima das sobrancelhas. Um pouco mais para baixo, a cicatriz que despontava como uma linha grosseira e comprida se fez ver por se destacar proeminente na sombra que projetava. Ela começava na têmpora, muito próxima do couro cabeludo e se alongava até a sobrancelha, parando na concavidade do olho, mas não parava por aí, estendendo-se por mais consideráveis centímetros até o meio da barba.

A minha garganta se contraiu, e engoli a seco quando um arrepio trilhou a minha nuca. Era o meu corpo emitindo um alerta, porque ele não parecia ser flor que se cheire. Na verdade, ele parecia ser uma confusão ambulante.

Pensei em lhe perguntar o que tinha acontecido para ganhar aquela cicatriz, mas chutei meus pensamentos mente afora e remexi a cabeça. Mas ele arqueou uma das sobrancelhas, deixando que uma expressão interrogativa se formasse. Com isso, procurei pensar da forma mais rápida que podia, pigarreando, e me apressei em virar rapidamente em direção à prateleira que dispunha de uma grande variedade de bebidas. Peguei rapidamente a garrafa de Bourbon.

Procurando evitar qualquer contato visual, me concentrei no líquido caramelo que despejava dentro do copo sobre o balcão, e as pontas dos dedos do homem tamborilaram sobre o balcão. Pude acompanhar, de esguelha quando os seus olhos rolaram com um ar desagradavelmente superior, fazendo uma trilha desconfortável da garrafa para os meus seios, que graças aos céus estavam a salvos pela regata branca. A mão do homem vagou no ar e parou no meu pescoço. Todos os meus músculos se retesaram quando senti os dedos dele seguraram o pingente do cordão que carregava em meu pescoço — feito num formato de sólido dourado, como uma pequena coluna alongada e quadrada de mais ou menos cinco centímetros; mais abaixo, na base, havia uma inscrição de seguidos pontos e traços que eu desconhecia o significado, mas isso estava comigo antes de perder a memória.

O olhar anuviado e intrigado do sujeito se ergueu e fixou-se no meu rosto. Era muito contraditório, mas alguma coisa nele me fazia sentir vontade de ficar e recuar ao mesmo tempo e quando o ar se tornou rarefeito eu me afastei do balcão com o pingente correndo pelos dedos dele.

— Pode deixar a garrafa. — Pediu, e eu estremeci com um calafrio irrompendo a minha espinha antes de dar um pequeno impulso na garrafa, empurrando-a na direção dele.

Os homens que frequentavam o The Blue Room, eram do tipo que não conseguiam se conter dentro das calças ao ver um par de pernas bonitas, e de algum modo, me peguei questionando se esse não seria diferente. Porque era descarado como todos os outros.

O sujeito olhou ao redor, encarando as minhas duas companheiras de trabalho, cujas roupas não passavam de uma pequena saia micro, e um par de estrelas que cobria apenas os bicos dos seios, que dançavam pole dance, um metro e meio a cima do piso.

Ele esticou os braços sobre o balcão, inclinando sua cabeça um pouco mais para frente e aproximando-se o bastante para que eu o ouvisse com mais clareza. Pensei em não parar para ouvi-lo, mas a curiosidade falou mais forte e eu acabei cedendo quando ele acenou com a cabeça. Apoiei as palmas das mãos sobre o móvel e inclinei o corpo para ouvi-lo.

— As garçonetes daqui podem subir? — Indagou, a voz grave dele sobrepôs a música alta e agitada, bem próxima do meu ouvido, e um arrepio irrompeu em minha pele com seu timbre forte.

— Se elas quiserem sim...

O homem recolheu os braços, mas manteve-se apoiado no balcão, inclinando-se um pouco para trás, arqueando a sobrancelha e fazendo-se formar uma expressão enigmática e intimidadora ao apertar o lábio inferior com o polegar, e me analisou de relance.

— Você ganharia uma foda inesquecível, e uma ótima grana se passasse umas horas comigo... — Soltou, pretensiosamente.

Quase perdi o fôlego. Precisei de algum tempo para conseguir recuperar a minha coordenação motora. Não era fácil, nem agradável. Se isso acontecesse no começo, eu me sentiria completamente insultada. No entanto, com o passar do tempo, percebi que quem frequenta lugares como estes, sempre enxergavam sexo como objeto de negociação, e mulheres como simples pedaços de carne, mas por alguma razão irônica, da qual meu corpo desconhecia, senti uma pontada de decepção ao perceber que esse indivíduo não passava de mais um grande imbecil arrogante.

Minha condição financeira estava precária. Meus últimos dois anos também tinham sido arrastados dessa maneira. Estava acostumada a viver um dia após o outro. Recebia o suficiente para pagar metade do aluguel, as despesas do apartamento e ainda comprava comida. Sem me dar luxos, nem frescuras. Não se trata de conformismo, do tipo: o suficiente é suficiente, mas a minha condição perante a lei era complicada. Eu era vista como uma pessoa desconhecida. Uma mulher sem memória, sem registro algum. O que eu podia fazer? Precisava trabalhar para conseguir me manter, e o submundo do Brooklin estava cheio de empregos informais.

Por alguns meses, a polícia acompanhou o meu caso de perto, esperando que alguma organização criminosa estivesse por trás de tudo o que havia acontecido comigo, e me prendessem como a criminosa que acreditam que eu fosse, mas depois, quando viram que não daria em nada, me varreram como lixo desprezível para debaixo do tapete.

É difícil conseguir trabalho, quando não se tem muitas informações você. E quando consegui um, não me dei ao luxo de dizer não, simplesmente aceitei o que tinha E muito embora, a proposta de Justine Johnson — a cafetina — fosse abusiva, trabalhar muito por tão pouco, me pareceu tentadora demais diante das circunstâncias. Então, me reconfortei a ideia.

Já tive muitas oportunidades de me vender antes. Esse cara não seria o primeiro e muito menos o último. Eu precisei superar situações mais complicadas do que essa, e em momento algum, considerei me vender para nenhum ricaço mesquinho e idiota. Deste modo, não jogaria todo o meu esforço e sacrifício pelos ares agora.

No momento em que estava prestes a abrir a boca para recusar a proposta imprópria, Stayce apareceu, repentinamente nos fundos do bar, cruzando os braços sobre o peito ao apoiar o quadril na estante de bebidas.

— Qual é a do gostosão? — perguntou, com um sorriso malicioso brincando no rosto. Sua voz fora abafada pela música alta, impedindo que seu comentário chegasse aos ouvidos do desconhecido.

Desviei minha atenção do estranho para encarar seu rosto bonito e bem maquiado. Seus traços orientais ficavam mais evidentes ainda com o delineado grosso, desenhado sobre as pálpebras. Os olhos negros e estreitos exalavam maldade e os lábios vermelhos apenas marcavam isso. Stayce tinha o corpo curvilíneo e esbelto. 38 ficava perfeito nela, e com o conjunto preto de saia curta e o top brilhantes não era diferente. Ela era menor do que eu — que tinha um e setenta e três. — Mas seus saltos agulha compensavam isso, e ainda lhe rendiam seis centímetros a mais.

— Só bebida. — Respondi evasiva, dando de ombros.

O homem chamou nossa atenção para si, remexendo-se em seu lugar, e impacientemente, ele me encarou fixamente ao levar o copo de bebida à boca.

— E então... se você não quiser, aposto que a sua amiguinha quer. — Provocou, mantendo o seu tom de voz elevado e arrogante.

Cerrei os dentes quando uma fúria repentina fervilhou dentro de mim. Desejei pular no pescoço do maldito e sacudi-los até que da sua boca não pudesse sair mais um “a” sequer.

— Só que, para ela, não vai ter gorjeta. — Acrescentou, bebendo o restante do líquido, devolvendo o copo com brutalidade para o balcão.

Contive minha língua, limitando-me apenas a respirar fundo. Logo ele iria embora, e eu não precisaria lidar com isso novamente.

— Do que ele está falando? — Indagou Stayce com sobrancelhas franzidas em uma expressão de pura confusão.

— É um babaca qualquer, Stay. Não se preocupe! — disse, revirando os olhos ao dar de ombros.

Aonde já se viu? Eu não iria para a cama com um cara desses nem em mil anos! Não era minha obrigação entreter os clientes da casa. Eu apenas os embriagava para que eles abrissem as suas carteiras com mais facilidade, se Stayce quisesse subir com um babaca de marca maior, essa era a hora.

Stayce revirou os olhos e franziu o nariz, divertindo-se com a situação. Os cretinos sempre davam um jeito de me achar. Logo depois, ela deu de ombros também e se serviu de um pouco de vodca.

— Você precisa relaxar, Rose. — Cantarolou, saindo de perto ao voltar para o seu lugar.

Quando olhei para frente, no balcão, já não havia qualquer indício do desconhecido ali, além de seu copo vazio de tequila com uma nota de 100 dólares embaixo. Ele tinha sumido tão rápido quanto tinha aparecido e ainda levara a garrafa.

✦✦✦

As luzes estrobocópicas foram substituídas pela luz incandescente. A música alta foi tomada pelo silencio quase absoluto, não fosse pelo som abafado da conversa animada das meninas que ecoava do vestiário até o salão. O lugar parecia maior agora, sem todas aquelas pessoas se movimentando de um lado para o outro e dançando.

Estava limpando o balcão distraidamente, quando Stayce sentou-se em uma das banquetas e suspirou profundamente, inclinando-se sobre as pernas, para desafivelar sua sandália de salto.

Uma fina camada de suor cobria sua pele morena, no momento em que ela se reergueu novamente. Sua expressão bonita estava distorcida e irritada.

— Algum problema? — Perguntei, erguendo o olhar do balcão para ela.

Stayce suspirou hesitante em resposta, levando a mão à testa, tocando-a com as pontas dos dedos.

— O que você acha?

— Justine... — Pronunciamos em coro, baixinho, receosas de que pudéssemos ser ouvidas.

— Ela mandou recado dizendo que precisa falar comigo.

A mulher é uma cretina vigarista e egoísta, mas é ela quem manda por aqui, e se não quiséssemos ir para o olho da rua, deveríamos cair nas suas graças.

— Você fez alguma coisa de errado? — Rebati, voltando ao trabalho com meu pano úmido.

Justine começou a infernizar a vida de Stayce logo depois que um homem bêbado e fora de si a agrediu aqui na boate, depois de tê-la levado para o quarto. Ela chegou inconsciente ao mesmo hospital em que eu estava internada. Nós ficamos no mesmo quarto, e Stayce foi o meu primeiro contanto com alguém, que não fosse um médico ou enfermeiro. Não demorou muito para que nos tornássemos próximas. Depois que ela recebeu alta, ainda voltava ao hospital para me visitar. Eu não sabia se ela queria ser uma amiga, ou se só sentia pena de mim. Mas naquele momento, no meu novo mundo branco e sem qualquer coisa para me apegar, só existia ela. Eu não sabia quem eu era, e não tinha para onde ir depois que recebesse alta. Stayce nunca me abandonou, mesmo sem saber quem eu era. Então, a colega de apartamento dela tinha acabado de se mudar, e foi neste momento que comecei a dividir o apartamento com ela.

— Rose... — Ela suspirou antes de continuar.

Stayce gostava de me chamava assim. Ela dizia que se eu não lembrava o meu nome, ainda assim, precisaria ter um. Em sua cabeça, deveria ter um pouco do sangue latino correndo em minhas veias. Talvez, isso justificaria a minha pele naturalmente bronzeada, os olhos castanhos grandes e escuros. Os fios do meu cabelo eram volumosos, ondulados e grossos. Eu gostava de ser chamada assim, “Rose”, fazia lembrar a banda “Guns N’ Roses”.

— Nessa porcaria toda existe alguma coisa certa? — Retrucou com um humor ácido. — Justine é maluca, e prazer dela é me infernizar.

Ergui o meu olhar novamente, e forcei um sorriso complacente para ela ao dar de ombros, porque fazia sentido, e não tinha nada que pudéssemos fazer para mudar isso.

— Vá ver do que se trata para irmos embora. — Apressei-a, tentando transmitir um pouco de esperança.

— Oh, por favor! — Ela resmungou, levantando-se da banqueta. — Não precisa esperar, vá andando!

✦✦✦

Não demorou muito para que concluísse o meu serviço, então apanhei minha jaqueta de couro no armário, destinado aos funcionários, e a vesti, puxando o elástico que prendia o meu cabelo em um rabo de cavalo, deixando-os livres para cair por sobre os meus ombros, e segui pelo corredor que levava para a saída dos fundos.

Quando saí na madrugada, um vento congelante soprou eriçando os meus cabelos, esfriando os ossos. Numa tentativa de me manter aquecida, encolhi os meus ombros e cruzei os braços, apertando-os.

Respirei pesadamente e comecei a andar. O ar que saia dos meus pulmões convertia-se em uma fumaça branca, que sumia rapidamente no vento frio. Olhei para os dois lados da rua mal iluminada e segui pela escuridão, atravessando o cruzamento.

Eram três horas e vinte da manhã, e não demoraria mais do que 15 minutos para chegar em casa. O caminho era bastante simples, precisaria andar em linha reta durante uns 6 minutos e passaria por uma viela que me colocaria na rua de casa.

O silêncio era tão intenso que e os meus passos ecoavam contra o chão asfaltado da viela. Porém, um estrondo metálico e repentino atrás de mim fez com que o meu pulso se acelerasse, fazendo com que me virasse instintivamente para vasculhar a rua.

Um nó se formou em minha garganta, porque eu podia jurar que tinha visto um vulto, mas não havia ninguém. Apenas o breu da madrugada. A tensão se desfez em meus músculos, quando encontrei a alguns poucos metros de onde havia passado, a tampa da lata de lixo rolando e caindo no meio da rua ao girar ao redor do pino, junto a uma pequena ratazana que passava, agitando o seu focinho em meio ao lixo que transbordava e caia lata afora.

Soltei o ar que não percebi ter prendido em meus pulmões, e voltei a seguir o caminho com mais tranquilidade.

Alguns passos depois, totalmente sem aviso, o meu corpo foi empurrado bruscamente contra a parede do prédio que ladeava a rua. O meu coração bateu sem ritmo, num descompasso frenético e doloroso, pulsando pânico para todo o meu corpo.

Oh meu Deus!

O desespero dominou o meu sistema. Não houve tempo para reação alguma.

Um braço pressionou rigidamente as minhas costas, mantendo-me presa contra a parede. Minha bochecha friccionada em contato direto com a superfície gelada.

— Shhiiii. — senti um hálito quente e aterrorizante entrar em contato com o meu rosto.

Aos poucos, o braço que me mantinha imóvel e presa à parede afrouxou-se, e meu corpo foi cautelosamente conduzido a se virar, e se não fosse pelas suas mãos prendendo violentamente os meus braços, sustentando o peso de meu corpo, eu teria desabado sobre as minhas pernas.

A minha respiração não passava de um resfolegar assustado.

— Pode levar o que quiser. — Disse baixinho, tentando manter o controle.

Fechei os olhos, apertando-os fortemente, pois me recusava a ficar cara a cara com o assaltante. Não quis demonstrar resistência. Esperava que ele simplesmente pegasse o que fosse de seu interesse, e depois sumisse sem deixar rastros. Esse era o meu desejo, mas fui pega de surpresa ao sentir uma textura macia cobrir minha boca e nariz. Um cheiro forte e tóxico invadiu as minhas vias respiratórias.

Abri os olhos de relance e paralisei tomada pela surpresa, então comecei a me debater, quando encontrei os malditos olhos verdes tempestivos. Tentei lutar contra ele, empurrando-o com os braços, desesperada e em pânico.

Meus olhos ameaçaram se fechar de repente, contra a minha vontade, mas me recusei a apagar, e continuei a tentar empurrá-lo, mesmo debilitada pelas forças que começaram a fraquejar. Minha visão se tornava turva a cada instante que o cheiro se emaranhava em meu cérebro.

— Eu sinto muito — suas palavras foram compreendidas pela minha mente, mas ele parecia tão distante. Talvez elas nunca tivessem sido ditas e eu estava alucinando. — Mas você vai se recusar a dar o que eu preciso. — Me desesperei ao ouvir a voz familiar penetrar os meus tímpanos, ecoando distante em minha cabeça, pouco antes da minha mente se tornar um borrão escuro e desligar.

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