Capítulo 6

ㅡ Quantos discos interessantes... ㅡ Ingrid comentou enquanto deslizava os dedos calmamente sobre os mesmoes e ingeria o café presente em sua caneca ㅡ The Beatles, Rolling Stones,  Queen...

ㅡ São minhas relíquias ㅡ Théo, o rapaz com quem passou a noite disse, enquanto a abraçava por trás. ㅡ Sempre que viajo os carrego comigo, pois a música me faz relaxar.

A noite havia sido agradável e satisfatória para ambos, há tempos Ingrid não se sentia tão relaxada. Ela acabou passando a noite no hotel mesmo, pois já estava tarde para voltar para casa.

ㅡ Tem um ótimo gosto musical. ㅡ ela expôs se virando para ele e depositou  sua caneca sobre a mesa de centro da sala, ficando na ponta dos pés e deixando um beijo em seus lábios.

ㅡ E você? Gosta de que tipo de música? ㅡ ele demonstrou curiosidade e interesse. Há tempos não se sentia tão entusiasmado sobre uma pessoa e a mulher à sua frente definitivamente era alguém que chamou sua atenção.

ㅡ Gosto do bom e velho MPB. Cresci ouvindo Tom Jobim, Chico Buarque, a incrível Elis Regina, Cazuza... enfim ㅡ deu de ombros ㅡ tive uma infância espetacular com ótimas influências artísticas.

ㅡ Consigo perceber isso. ㅡ ele sorriu de modo acolhedor.

Ingrid passou parte da manhã com Théo e não se arrependeu de nada, pelo contrário. No final ele fez questão de levá-la para casa e trocaram contatos para quem sabe saírem novamente.

ㅡ Então, de 0 a 10 o quão boa foi sua noite? ㅡ Manuela perguntou com curiosidade enquanto observava a colega de apartamento pintando a parede do quarto. Ingrid sentia que o tom rosa pastel não combinava mais com sua personalidade, então investiu em um vermelho intenso.

ㅡ Oito. ㅡ sorriu de modo ladino enquanto ajeitava os jornais no chão para que não caísse tinta no mesmo.

ㅡ Uau, então esse Théo é bom mesmo no que faz. O último lembro que você deu um seis. ㅡ riu enquanto descascava uma laranja e a observava trabalhar nas paredes.

ㅡ Sim, além de apaixonante ele é muito intenso e é mente aberta o que o levou a topar quase tudo que sugeri na cama, o que me surpreendeu. Não é todo dia que encontramos alguém assim. ㅡ Disse misteriosa e ambas riram.

ㅡ Ele é tão interessante assim que te fez esquecer o Matthis? ㅡ Manuela não se controlou e perguntou.

ㅡ De novo esse assunto? Tudo que tinha para ser falado nós já conversamos, Manu. Além dele ser um homem digamos que estranho, ainda é meu orientador, o que vai totalmente contra a ética da instituição. Imagina se tivéssemos algum envolvimento e chegasse à reitoria? Não quero nem imaginar as consequências.

ㅡ Não vejo problema algum, ambos são adultos e sabem muito bem o que fazem.

ㅡ Só aceitaria me envolver com ele depois que esse vínculo professor / aluna fosse quebrado, fora isso não. ㅡ disse séria e Manuela deu de ombros.

ㅡ Tudo bem, não está mais aqui quem falou.

Terminando a pintura do quarto, Ingrid adentrou o banheiro e tomou um longo banho para remover os vestígios de tinta que se impregnaram em seu corpo. Tinha três horas antes da sua reunião de orientação com Matthis e pretendia ir antes ao supermercado do centro da cidade, pois precisava abastecer o apartamento com produtos alimentícios, já que tudo que ela e Manuela possuíam na geladeira era água, cerveja e restos de uma pizza  portuguesa que compraram no dia anterior para o almoço.

Ao terminar de se arrumar, pegou sua carteira e as chaves do carro de Manuela e saiu de casa rumo ao centro. O carro era usado apenas para situações emergenciais, já que a gasolina não estava nada barata. Como Ingrid faria uma compra grande, precisava do veículo para transportar as compras até em casa.

Concentrando-se na estrada, ela dirigiu calmamente, até que chegou ao supermercado.

Enquanto caminhava pelos corredores empurrando um carrinho, ela encarava a lista que ela e Manuela fizeram para não se esquecer de nada e realizou a tarefa de forma organizada. Produtos de limpeza, higiene, absorventes, alguns enlatados, bastante frutas, verduras e legumes, enfim, tudo de que necessitam, ainda mais agora que Manuela resolveu levar uma vida mais saudável.

Passou tudo pelo caixa eletrônico e efetuou o pagamento, adicionando uma caixinha de chicletes de menta, o qual logo mastigou um. Levou as compras para o carro com a ajuda de um carregador do supermercado e logo fez o retorno. Ainda precisava arrumar todas as compras e se preparar para ir até o campus da universidade para a orientação.

Durante seu retorno iniciou-se uma chuva, o que fez Ingrid questionar se apenas chovia naquela cidade. Sentia falta do clima de Minas, afinal.

Quando chegou em casa guardou as compras em seus devidos lugares e se preparou para sair para sua orientação da dissertação.

ㅡ Madame Bovary? Não imaginava que se interessava por esse tipo de literatura. ㅡ Ingrid comentou ao visualizar o livro de autoria de Gustave Flaubert sobre a mesa de Matthis.

Ele a encarou misterioso.

ㅡ Eu disse que gostava dos livros polêmicos e esse sem dúvidas é um deles. Tem temas como: adultério, consumo exagerado, usura, descontrole financeiro, hipocrisia dos relacionamentos, enfim, temas que no século XIX causavam furor. ㅡ segurou o livro em mãos e a encarou enquanto citava um dos seus trechos preferidos: ㅡ “O amor, conforme acreditava, devia chegar de repente, com grandes tumultos e fulgurações – furacão dos céus que desaba sobre a vida, transtorna-a, arranca as vontades como folhas e arrasta o coração inteiro para o abismo.”

ㅡ É nisso que acredita? ㅡ ela perguntou com curiosidade dançando em seu olhar.

ㅡ Eu não acredito em amor, Ingrid. ㅡ sorriu com zombaria ㅡ mas algumas pessoas ao meu redor que dizem ter sentido esse sentimento narraram algo parecido. Amaram com loucura alguém para no final serem arrastados a um abismo, enfim, é algo que chega do nada e faz um grande estrago.

ㅡ Sabe no que acredito?

ㅡ Tenho curiosidade em saber.ㅡ fixou o olhar no dela enquanto aguardava ela apresentar seu ponto de vista.

ㅡ Eu acredito que o amor é sim real, mas precisa ser recíproco. No fim é um sentimento tão forte quanto qualquer outro, ódio, raiva, ou seja, é algo que consome o ser humano  se vivido de verdade.

Ele a encarou surpreso.

ㅡ Interessante seu ponto de vista. A propósito, já leu esse livro?

ㅡ Já sim, um livro bastante criticado pela igreja católica e pelos conservadores da época, achavam que poderia influenciar no comportamento e costumes daqueles que o consumiam.

ㅡ Ainda mais do público feminino.ㅡ ele disse em tom de crítica enquanto caminhava pela sala e ela o encarou confusa.

ㅡ Por que o público feminino especificamente?

ㅡ Foi a partir do século XIX que as mulheres passaram a integrar cada vez mais o público de leitores e  vocês são altamente influenciáveis, gostam de fantasiar as coisas e são vulneráveis.

ㅡ Bom não pode culpá-las. A vida das mulheres no século XIX não era fácil, passavam por humilhações, traições, violência doméstica... a leitura foi uma forma de fazê-las serem transportadas para novos mundos.

ㅡ E então o mundo real foi tomado pela ficção  ㅡ a encarou com um sorriso sedutor ㅡ a senhorita tem toda razão, é a mulher mais linda e inteligente que já tive a sorte de conhecer.

Ingrid o olhou de maneira surpresa por sua súbita mudança. Era fato, ele a confundia com suas constantes mudanças de humor e seu jogo de palavras, mas ao mesmo tempo um sorriso involuntário surgiu em seus lábios pelos elogios destinados à ela.

ㅡ Agora deixemos a literatura de lado e voltemos aos números. ㅡ Ele continuou.

Enquanto Ingrid voltava a atenção para os artigos que ele lhe trouxe, ele a encarava com um brilho obscuro no olhar.

Cinco meses...

Matthis fazia a contagem regressiva do tempo que faltava para alcançar seu intento. Em cinco meses Ingrid defenderia sua dissertação, na melhor das hipóteses seria aprovada, mas na mente possessiva e controladora de Matthis o vínculo entre eles não se quebraria, ao contrário, se fortaleceria. O norueguês tinha grandes planos para a brasileira, grandes planos.

Ao final da reunião Ingrid se dirigiu à saída e saiu porta afora, percebendo que a chuva estava mais forte do que quando chegou à instituição.

ㅡ Carona? ㅡ escutou a voz de Matthis atrás de si e o encarou. Ele parecia inabalável com sua postura altiva.

ㅡ Ahh... não, não é o seu caminho. ㅡ disse recordando-se que ele morava bem distante do seu apartamento. Não o faria sair de sua rota só para levá-la em casa.

ㅡ Essa chuva não vai passar tão cedo e não me custa nada, vamos lá. ㅡ insistiu.

Ingrid pensou um pouco.

ㅡ Tudo bem, eu aceito.

Caminharam até o carro de luxo dele e em instantes se encontravam em movimento pelas ruas, que se mantinham pouco movimentadas.

Um raio riscou o céu durante o temporal, porém Matthis prosseguiu dirigindo rumo ao apartamento dela sem se abalar.

ㅡ Não deveria andar sozinha por aí à noite, Ingrid, mas principalmente deveria tomar cuidado com suas companhias, sobretudo as masculinas. ㅡ a voz de Matthis quebrou o silêncio desconfortável que se instalou e ela o encarou confusa.

ㅡ O que quer dizer com isso?

Ele deu de ombros sem tirar os olhos da estrada.

ㅡ Nada, são apenas conselhos. ㅡ disse como quem não  queria nada e ela permaneceu o encarando sem entender aquela fala.

ㅡ Pode me explicar?

ㅡ Se você for esperta vai entender o que estou falando e vai seguir meu conselho. ㅡ a olhou rapidamente e desviou o olhar voltando para a direção. Ingrid pensou um pouco, mas nada lhe veio à cabeça, deu de ombros e esperou até ele chegar ao seu apartamento, o que não demorou muito.

ㅡ Obrigada pela carona. ㅡ ela agradeceu, recolhendo suas coisas e se preparando para deixar o carro.

ㅡ Não tem de quê. Ahh última coisa ㅡ expôs e o olhar dela se fixou no dele. Ele se aproximou lentamente sem desviar o olhar do dela, que sentiu-se corar pela primeira vez na vida. Ele se inclinou e ela não soube o que fazer, de repente escutou um click e percebeu que ele fez toda aquela ação apenas para destravar a porta do carro.

ㅡ Boa noite, Ingrid e não se esqueça do que te falei. ㅡ sussurrou em seu ouvido e aspirou seu cheiro.

Ela se afastou rapidamente e ele sorriu.

Deixou o carro e logo o visualizou sumir do seu campo de visão, a deixando confusa sobre o que aconteceu ali.

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