Tendo desistido de começar a missão de seduzir Selene, Cedric, focou sua atenção para o segundo problema que tinha em suas mãos: O motivo do atentado contra a esposa.
Embora não fosse comum aos reis interrogarem prisioneiros, Cedric, acostumado a executar todas as funções durante sua saga em reconstruir seu reino, acostumou-se a tomar a frente de todas as situações importantes dentro e fora das muralhas da fortaleza de Eszter.
Seguindo pelos corredores úmidos que levavam ao calabouço, Cedric preparava-se para interrogar o homem, trajando roupas de empregado do castelo, e tirar dele a motivação e nomes de todos que estavam envolvidos na tentativa de matar Selene.
Ao alcançar o enorme e pesado portão de ferro da prisão, sem ser necessário soltar uma só palavra, os quatros guardas, protegendo o castelo de possíveis fugas dos prisioneiros, o abriram para lhe dar passagem.
— Vim falar com o prisioneiro que mandei trazer hoje — anunciou imperioso.
Um dos homens, o de maior posição entre os quatro, adiantou-se, inclinando-se respeitoso ao declarar:
— Eu o acompanho, Majestade!
O guarda que se ofereceu formou uma bola de luz esbranquiçada, que movia-se acima deles a cada passo de forma a iluminar o caminho até o fundo do calabouço. Por ficar no subsolo da fortaleza, ali a escuridão era intensa, assim como o cheiro de mofo, suor e outros aromas desagradáveis conforme adentravam mais fundo.
De cabeça erguida, ao longo da caminhada Cedric ignorava as súplicas, maldições e pedidos de clemência dos inimigos capturados.
Não se surpreendeu ao descobrir que colocaram o novo prisioneiro em uma das últimas celas, bem de frente ao local em que torturavam os criminosos mais resistentes. Normalmente, Cedric não era adepto daquela parte, preferindo acabar com seus inimigos com um certeiro descer de espada no pescoço. Mas colocar novos prisioneiros ali, deixando-os por horas a observar os objetos pavorosos, servia perfeitamente para amedrontar.
Motivo pelo qual o cômodo sempre estava bem iluminado e com seus objetos de tortura em evidência a quem ocupasse as duas celas de frente para ele.
O efeito parecia ter sido alcançado no homem que contribuiu no ataque a Selene, pois ele estivera com a atenção fixa naquela parte até perceber que quem se aproximava era Cedric.
Observando o homem através das grades, impressionou-se com o corpo magro, rosto vincado por rugas, supondo que tinha em torno de sessenta anos, e olhos caídos que não deixava evidente o grande perigo que representou.
— Quem mandou atacar a minha esposa? — questionou curto e seco.
A pergunta trovejante fez o homem encolher-se em silêncio.
Com um gesto de mão sinalizou para o guarda abrir a grade. Imediatamente o soldado pegou o molho preso ao cinturão e com agilidade impressionante, visto o alto número de chaves no aro de metal, abriu a cela.
O homem ergueu o rosto e observou o rei de Eszter parado no vão da jaula, seus olhos arregalando-se quando ele retirou a conhecida espada Estrela da Morte presa ao lado do corpo forte, esticando a afiada lâmina na direção dele. As chamas das esferas de fogo na câmara de tortura reluziram no metal afiado, tornando-o uma imagem flamejante.
— Diga quem mandou você atacar a minha esposa, ou o matarei aqui mesmo — Cedric ordenou ameaçador.
O empregado levou a mão à garganta, engolindo em seco.
— Não... Não houve mandante, majestade... Foi uma decisão minha, só minha — conseguiu falar tremendo da cabeça aos pés.
— Por qual motivo jogou uma criatura contra sua rainha? —interrogou duvidoso da sinceridade dele.
— Meus pais, minha mulher grávida e todos os nossos filhos morreram no ataque covarde do reino de Magdala de treze anos atrás. Perdi todos que eu amava por culpa do Rei Perverso — cuspiu no chão, o ódio florescendo em seu peito como erva daninha. — Toda vez que vejo a filhote de víbora que ele plantou em nossas terras caminhar alegremente, sinto que ri do nosso povo, do nosso sangue derramado — bradou com a raiva superando o medo. — Conjurei uma fera para degolá-la e sangrá-la como o Perverso fez com toda a minha família — contou com um sorriso alucinado na boca.
— Está desejando a morte da minha esposa, sua rainha e do povo de Eszter — Cedric indicou, embora no passado tenha desejado o mesmo que o homem a sua frente.
Com a insanidade subindo em vértices por seu corpo, o empregado riu alto, destilando cáustico:
— Todos no palácio e nas terras de Eszter sabem que Vossa Majestade deseja o mesmo, que essa mulher suma de nosso reino — declarou mantendo o olhar e sorriso perturbadores. — Tanto é verdade que a renega, colocando-a em um ala oposta as das acomodações reais. E nem se importa que a tratemos como o cão sarnento que ela é.
Cedric inspirou fundo, guardou sua espada e mandou o guarda fechar a cela.
— Amanhã pedirá perdão a sua rainha publicamente e sairá da fortaleza — anunciou com dureza, caminhando devagar para longe, a sentença ecoando no interior opressor. — Não me importo se continuar no reino, contanto que nunca mais pise na fortaleza e nem no palácio.
O homem se jogou contra as grades e sem um pingo de culpa, falou irado:
— Jamais pedirei perdão aquela víbora, assim como nunca a perdoarei pelo que fez ao povo de Eszter — bradou, acrescentando alucinado: — O único que lamento foi que a fera não arrancou a cabeça dela e nem destroçou aquele coração demoníaco.
De costas para a cela, Cedric moveu a cabeça de lado, o olhar sombrio fixo no longo corredor. Todos ali ouviram a condenação dada ao homem que atentou contra a vida da rainha de Eszter. Tinha sido misericordioso, até demais, porque ele tinha razão. Mesmo passado meses desde o fim da guerra, desde que aceitou Selene como uma bandeira da paz, a rejeitava, ignorando como estava e o que pensavam dela em Eszter.
Retornou e mandou o guarda abrir novamente a cela.
O homem manteve-se em pé, o queixo erguido e o sorriso amplo, certo de que em poucos segundo estaria fora daquela cela e seria premiado pelo rei e seus súditos por fazer o que todos desejavam.
Segundos... Exatamente como aguardava, em segundos ele foi premiado... Rápidos e precisos segundos que ele sequer teve tempo de saber que sua sentença mudará. Em segundos Cedric tirou a espada da proteção e com rapidez o decapitou, a cabeça girando pelo chão lodoso até bater na parede de pedra.
Frio, sem se afetar pelo sangue espalhado pelo chão, Cedric pegou a cabeça escorrendo o líquido viçoso e entregou ao atônito guarda.
— Coloque a cabeça em uma estaca no alto da muralha da fortaleza, junto aos portões. Deixe que todos saibam que esse será o castigo para qualquer um que atentar contra minha esposa, Selene, a rainha de Eszter — Cedric declarou marchando em silêncio para fora do calabouço.
O sangue que escorria da Estrela da Morte deixava um rastro e aviso eloquente por onde passava.
Embora todo seu corpo doesse e tivesse de se manter quieta para recuperar-se rápido, Selene muitas vezes esquecia-se das feridas e se remexia de um lado para o outro, entediada em ficar na cama. Não queria permanecer imóvel em um leito lúgubre. Desejava estar ao ar livre e não em uma “cela” como tinha estado durante grande parte de sua vida ao lado do pai. — Boa tarde, princesa Selene! Novamente esquecida dos ferimentos, dessa vez movida pela empolgação, Selene se ergueu com a intenção de abraçar o único amigo que tinha em Eszter. Um instante depois, com um urro de dor, voltou a jogar o corpo nos lençóis. — Calma! Não faça movimentos bruscos, princesa — Tristan pediu se aproximando veloz dela. — Tem que ter cuidado — disse passando a mão carinhosamente pelo cabelo dela. — Obrigada por me visitar — disse com um sorriso agradecido. Tristan era seu único amigo dentro da fortaleza, nas terras de Eszter e até além das fronteiras de todos os reinos restantes. Somente em sua infância, an
Após terminar a verificação dos arredores, pausada por causa do ataque a Selene, e conversar com seus guardas, exigindo que espalhassem, dentro e fora da fortaleza, à condenação que atentar contra a rainha causaria, Cedric, voltou para o palácio. Precisando de um banho e trocar as roupas sujas do sangue de Selene e do empregado condenado, logo na entrada do palácio deu ordens que esquentassem água e enchessem a tina de suas acomodações. Passava pelo grande salão, rumo a escadarias para o piso superior, quando viu Tristan saindo do corredor que levava a ala médica. Com o olhar indecifrável, permaneceu parado no lugar, aguardando o amigo aproximar-se já imaginando o motivo dele estar daquele lado do palácio. — Boa noite, Majestade! — Tristan saudou com toda pompa, o sorriso atrevido fazendo Cedric revirar os olhos. Cresceram juntos, até mesmo lutaram lado a lado nos anos sangrentos de guerra contra o reino de Magdala. Tristan conhecia Cedric melhor que qualquer pessoa no mundo e até
Sem sono e com as feridas latejando, indicando que as ervas falharam em alivia-las, Selene desistiu de dormir e, mesmo odiando os manuscritos sobre magia, pegou um dos encadernados pousado ao lado de sua cama. No entanto, por mais que forçasse a visão, a leitura dos manuscritos antigos era difícil. A esfera flutuante acima de sua cama tinha pouca luz. A magia de trovão presa nela, que emitia fortes raios esbranquiçados quando cheia, estava quase apagada, provavelmente pelo passar do tempo não tendo sido recarregado para a iluminação não prejudicar o descanso noturno. Largou o livro e puxou a bolsa trazida por Tristan, remexendo seu interior em busca de algo para distrai-la. Havia algumas peças para distrair, como cartas e jogos, mas precisava de uma segunda pessoa. Observou cada peça com curiosidade, desconhecendo a maioria. Após a morte de sua Myra, seu pai a proibiu de gastar energia com tolices infantis e concentrar-se em ser tão poderosa quanto sua mãe foi. Era assim que conside
Estreitando o olhar, Cedric fechou a mão em volta da cabeça de corvo incrustada no punho da espada. Um movimento instintivo, comum quando algo ou alguém o perturbava. Nesse caso, estava extremamente zangado com a atitude rebelde de sua pequena esposa. — Sou seu marido e, acima disso, seu Rei. Assim que estiver melhor retornará as aulas de magia, que serão intensificadas até que domine algum elemento — comandou com dureza. — Não posso, não quero e nem preciso aprender magia — declarou encarando-o com determinação. — Passei meses em aulas aborrecidas para despertar algo impossível. Meu poder acabou para sempre. Cedric estreitou o olhar. — O que quer dizer com acabou? Já teve algum poder? — sondou interessado. — Tive na infância. Quando minha mãe vivia compartilhávamos o mesmo poder — respondeu, logo argumentando para fazê-lo entender sua motivação em acabar com as torturantes aulas. — Meu pai e o feiticeiro Mamba me davam aulas diárias, forçavam os treinos até minha exaustão, mas si
Na cúpula da segunda torre do castelo de Magdala, Mamba trabalhava em seu novo projeto para capturar magia, quando o som rastejante chamou sua atenção para a única e grande janela. Em silêncio observou uma serpente de escamas esverdeadas atravessa-la e se mover até ele. Ao chegar aos seus pés, a criatura ergueu-se, as escamas soltando fortes raios esbranquiçados que fariam qualquer um desviar o olhar, mas não o feiticeiro de Magdala. Ele continuou com os olhos fixos na cobra, um sorriso ladino formando-se ao visualizar a transformação de sua maior cúmplice. Quando a luz se desfez o demônio da água tomou a forma de uma jovem nua de pele pálida e cabelo longo, úmido e verde. — Fiz como me pediu mestre, seduzi os ouvidos de um humano, aticei seu ódio contra os magdalianos, contra Selene, e o manipulei para que me ajudasse a entrar na fortaleza e atacar mortalmente a princesa — relatou fitando-o com brilhantes olhos esverdeados. — Selene morreu? — questionou Mamba com expectativa. —
Deitada em um mar de peles quentinhas, usando uma camisola de algodão macio e alimentada com um guisado saboroso acompanhado por frutas frescas, mesmo com as dores das feridas, Selene sentia-se uma princesa de verdade pela primeira vez em anos. Só tivera tratamento semelhante quando sua mãe era viva. Levou um susto quando naquela manhã foi levada para um quarto novo, maior e muito bonito na ala norte do palácio. Também foi apresentada a Cira, governanta do palácio, e a Patry, sua agora dama de companhia. No começo temeu o tratamento que receberia, até encarou com desconfiança a tina com uma névoa quente em sua superfície, com medo de ser uma armadilha como a que faziam para o preparo de rã. Mas ao entrar devagar na tina, encontrou a água perfumada e numa temperatura agradável. Só não dormiu durante o banho por ainda restar uma parcela de suspeita de que seria afogada se relaxasse demais. Em silêncio desde que foram apresentadas, Patry a ajudou a secar-se, colocar a camisola e deita
A desconfiança de Cedric aumentou ao perceber a tensão e palidez em Selene diante da pergunta. O medo, como uma sombra, dançava nos olhos azulados, arregalados e fixos nele como se tivesse acabado de condená-la a morte. — Por que pede para ser uma aldeã em Eszter, no lugar de pedir para retornar à sua vida de princesa em Magdala? — questionou novamente quando o silêncio perdurou e Selene desviou o olhar. Selene hesitou por um instante, o olhar perdido nos dedos se apertando nas peles em seu colo, incerta entre mentir, deixando que continuasse a acreditar que era a filha amada que veio trazer a paz, ou contar toda verdade do pesadelo que viveu presa e maltratada pelo próprio pai. Inspirou fundo e decidiu que se queria ter uma chance dele aceitar seu pedido tinha de caminhar de mãos dadas com a dolorosa verdade. — Magdala deixou de ser um lugar bom depois da morte da minha mãe — disse suave e trêmula. — Meu pai... algo mudou dentro dele... O fez ficar cruel... — A ambição e maldade d
O cetro acertou seu braço direito com violência e sem aviso. A pedra da lua em suas mãos voou longe, ao mesmo tempo em que um grito de dor e medo saiu de seus lábios, o corpo diminuto colidindo contra o piso frio. — Criança inútil! Myra deixou-me somente decepção — o Rei Phelix, seu amado pai, bradou descendo novamente o cetro ativado com magia do trovão nas costas dela. Era a primeira vez que ele a agredia e Selene não entendia o motivo, não compreendia nada do que ocorrera nas últimas horas. As lembranças estavam confusas. Luzes azuladas e púrpuras se colidindo. Myra, sua mãe, correndo com ela nos braços, murmurando cânticos em desespero. Uma força intensa e agradável unindo-as. Phelix, até aquele dia o bondoso rei de Magdala e seu pai, lançava através de seu cetro todo tipo de magia elemental contra elas. Acompanhando-o na “caça”, Mamba sorria largamente enquanto fortificava a magia do rei. Ao ser encurralada ao fim da torre mais alta, abraçando a filha com força contra o peito,