Revisei pela segunda vez as trinta páginas de um documento que papai me pediu para checar. Coisas sobre a Hayans, coisas que não deveriam estar me atormentando em pleno sábado, contudo, esse era um fardo a ser carregado. Trabalhar, seja para a Família, ou para a Hayans, não tinha horário dentro de normas, era período integral, sem pausa e tendo que estar sempre à disposição. Recostei na poltrona macia do escritório de Paul e permiti que minha mente viajasse para longe dali. Minha maior vontade era chegar em casa, tirar minhas roupas, jogar uma água bem quente no corpo e sentar para meditar nua, ainda molhada, sentindo as gotas de água escorrendo pela minha pele e me deixando ser dominada por aquela paz interior que eu só conseguia alcançar com um período de puro silêncio. Desde que as coisas viraram uma bagunça com a notícia do casamento de Corey, eu não conseguia me sentar nem para comer em paz. Na verdade, em nada me parecia haver paz. Meditar por dez minutos todas as manhãs
Certo, todas as pessoas ao nosso redor, fora os que nos conheciam de verdade, olhavam para mim e para Corey e imaginavam uma coisa ou outra, mas Scott me perguntando algo assim era ridículo. Ele deveria saber que se eu fosse insistir nesse erro, faria isso apenas com ele, contudo, talvez o meu modo de afastá-lo fez com que ele não compreendesse o meu lado, nem seguisse as mesmas linhas de raciocínio. Na cabeça dele, podia pensar que eu via nossa situação como uma distração, uma diversão momentânea e uma forma de apenas quebrar mais regras. Era isso o que eu acabei transmitindo com o passar dos anos. — Nós nunca ficamos, se é o que quer saber, Scott. Nunca fizemos nada parecido com o que fiz com você. Se o seu irmão está com raiva, isso é um problema só dele. Sei que não é nada fácil conciliar um casamento com novas informações assim, mas para mim, foi melhor dizer tudo de uma só vez. Ele balançou a cabeça em concordância, ainda me olhando daquele jeito intenso demais para resisti
— Quero que um dia eu possa te abraçar, te beijar, te tomar pra mim sem pensar que isso é um erro terrível. Minha maior vontade é viver uma coisa real, que seja aceita. Porra! Eu já disse que Scott tinha o poder de me atingir apenas com palavras? Pois é. Ele tinha. — Isso nunca vai acontecer, e você sabe. Eu ainda sou uma Legard, filha dos seus pais, sua irmã — murmurei o termo usado, com nojo na voz —, e o seu erro é pensar que isso não é real, quando pra mim, é a coisa mais certa que já vivi. Você é a coisa mais real que eu pude alcançar. Sua expressão suavizou, seu sorriso pequeno me alcançou. Meu coração se aqueceu de imediato. Scott levou seus dedos até minha bochecha e a acariciou. Fechei os olhos e me deixei levar pelo pouco que eu poderia ter. Se tivesse que me contentar apenas com isso, então que assim fosse. — Deixei de ser o seu maior pecado? — provocou, visto que eu repetia para ele diversas vezes afirmações com esse teor.— Ainda é, mas é o pecado que eu amo co
Saco! Se tinha uma coisa que me causava raiva, essa coisa era ter que esperar. Quando as pessoas marcavam compromisso, qual a dificuldade em chegar no horário marcado? Bom, ao meu ver, Corey ainda não havia chego na bendita confeitaria por pura birra. Ele sabia que minha impaciência me levava ao extremo da raiva, e como andou tentando me atingir nos últimos dias, ia continuar com isso o quanto pudesse. Soltei o ar pelas minhas narinas, como se fosse um touro raivoso fungando. Havia dois casais, além de mim, sentados em mesas mais distantes, provando os sabores de bolo para o casamento. A confeitaria era mais focada em cerimônias assim, além de ter uma diversidade enorme, tinha a fama de ser uma das melhores do país, e graças a Deus faziam bolo vegano. Todos os docinhos e demais comidas açucaradas iam ser encomendadas em um lugar só. — A senhorita tem certeza de que não quer marcar um outro horário? — perguntou o atendente atencioso que me recepcionou.Corey estava quarenta mi
— Acha que eu queria estar passando por tudo isso, Chloe? — perguntou, com um cansaço visível. — Pediu uma mulher em casamento, Corey. Isso é o óbvio do que iria acontecer! — E acha mesmo que eu queria me casar? — Seu tom alto atraiu a atenção de algumas pessoas que transitavam por ali. Ele enfim me soltou quando uma mulher olhou feio para ele, observando sua mão apertando meu braço, e então eu me recompus. — Você pediu a Lily em casamento, então sim, acho que você queria se casar! Se não a quisesse, Corey, teria falado comigo antes e nós dois íamos dar um jeito nisso juntos, não fazendo o que você fez. Mas, se fez, é porque sente que ela será uma boa mulher para você. Então, sim, você quer isso! Ele riu sem emoção alguma, olhou para o céu ensolarado de Nova Iorque e depois voltou a me encarar, triste pra caramba.— Eu não tenho outra escolha. Vou fazer isso antes que a Família se encarregue de fazer por mim, mas não é o que eu queria! — Então o que você queria, porra? — grunhi,
— Não foi culpa sua, Chloe. Nunca foi culpa sua! — Se aproximou e segurou meu rosto com as duas mãos. — Ele tentou te estuprar, tentou coisas que… por Deus! Ele pediu por aquele fim! Suspirei, atordoada e não muito confortável por estar falando sobre isso. Joe Foster não deveria mais ser um incômodo, se fosse, minhas sessões de terapia não haviam ajudado em nada. Cada minuto que passei dentro de um consultório então não teria valido a pena, nem as mentiras que precisei inventar para Jason não saber os motivos de eu estar em uma consulta com profissionais responsáveis por cuidar do meu psicológico. Era para falar sobre Scott, era para contar sobre o que me fez bem, e lá estávamos nós regredindo, voltando para o passado assombroso que nos perseguia. Eu sabia lidar com a forma como aconteceu o meu batismo na Família, sabia lidar com o fato de que precisei tirar a vida de um homem e que encaminhei muitos outros para a morte, mas literalmente não conseguia ficar bem sabendo que fiz tu
→ Alguns anos antes. Se meus pais soubessem a merda que eu estava fazendo, com certeza dessa vez seria deserdada. Mia dizia sempre que eu era um poço sem fundo para fazer merdas. Eu gostava da palavra "merda", achava que se encaixava comigo, a bastarda dos Legards. E foda-se que me tratavam do mesmo modo que os outros, eu ainda era a garotinha adotada, que perdeu a mãe biológica, e nunca soube quem era o pai porque ele a recusou antes mesmo de sair do ventre de Coral. Joguei a cabeça para trás e ri alto, contudo, ninguém podia ouvir visto que a batida da música estava tão alta que as pessoas só se preocupavam em dançar e girar pulando ao redor da pista. Minha euforia não era apenas por estar em uma boate maravilhosa, dançando como se a noite não tivesse fim, mas também por ter ingerido algumas coisas de aparência, sabor e procedência duvidosa. Talvez houvesse alguma droga no meio disso, no meio das bebidas e dos chicletes, das balas e… enfim, eu estava bem fora de mim mesma. C
— Ele faria tudo isso porque é um idiota! O Corey é um insuportável que se acha dono de mim, quando na verdade eu nem sou mesmo irmã dele. Não sou nada daquela família. Joe me encarou com certa tristeza, por algum motivo estranho ele parecia saber o que eu sentia. Era como se fossemos dois desajustados. — Por mais que você tenha sido adotada, eles te acolheram com todo o carinho do mundo. Mesmo assim não consegue se encaixar? Acha mesmo que não faz parte dos Legards? Sua pergunta foi carregada de interesse, um interesse real.Bom, meio contra a minha vontade, eu fazia parte sim, mas também sabia que eu não passava de uma menina que nasceu filha da empregada e que apenas foi acolhida por pena. Era o que eu pensava. As fotos podiam mostrar Marisa sorrindo feito boba enquanto acariciava a barriga de Coral, mesmo assim eu sentia que aquele não era o meu lugar.Havia a dúvida. Por qual razão me amavam tanto e por que eu tinha todos os direitos dos filhos biológicos? Não entrava na