01 de agosto, sábado,
Uma semana e meia antes do lançamento.
Estefen nascera longe de Porto Áureo, numa cidade rural cuja ínfima importância dispensava menção ao nome. Sua relação próxima com os vizinhos contribuiu para que ele desenvolvesse um forte senso de comunidade, sob o custo de restringir seu acesso a tudo o que existia para além das fronteiras invisíveis próprias aos costumes da região. Seu pai fora uma espécie de pároco local, e sua mãe servira os fiéis com seu trabalho de cozinheira.
Costumava seguir regras rígidas. Acordava cedo, alimentava a criação de galinhas e ajudava sua mãe a descarregar a despensa. Depois da escola, recepcionava os frequentadores da paróquia e recolhia seus tostões. Quase não tinha tempo para se dedicar ao qu
05 de agosto, quarta-feira, Uma semana antes do lançamento. Naquela tarde, Vince foi apresentado a um homem de cabelos compridos em rabo de cavalo, designado a guiá-lo durante suas primeiras semanas. Após tanto ler manuais, estava pronto para colocar o conhecimento recém-apreendido em prática. Sentou-se ao lado de Wolfe e o observou escrever as linhas de comando. Diferentemente de como ocorria no sistema de biônicos comuns, os sintéticos processavam informações de maneira semelhante a como neurônios humanos operavam. — Sabe o que é biomimética? — O homem o testava. Vince aceitou o desafio, aprumando-se na cadeira ao lado. — Biomimética é o estudo das estruturas biológicas e de suas aplicações com o intuito de empreender tecnologias baseadas em princípios naturais — clarificou. Essa ele tinha na ponta da língua, havia pesquisado para sua carta-proposta. Wolfe lhe lançou um olhar d
Após um longo gole, a senhora arriou o copo d’água e entrelaçou seus dedos nos do marido. — Nós o chamávamos de Alê. — Ela sorriu de um jeito triste. — Os anos levam embora as recordações ruins. Uma hora, levam até mesmo as boas. Mas a saudade… ah, nunca a saudade! A voz dela embargou, e o velho apontou para o copo com o indicador sinuoso. — Beba mais um pouco, querida. Demitre estava sentado diante do casal à mesa de café da manhã. Lexia, ao seu lado, parecia brigar com a enfermeira que existia dentro de si, pronta para interromper a conversa e tratar dos nervos da anfitriã. Mais um gole, e a senhora continuou: — Ninguém prepara a gente para a perda de um filho… Quebrando um instante de silêncio, Lexia pigarreou e se manifestou: — Posso perguntar como ele faleceu? A senhora assentiu, mas foi o velho quem respondeu. — Nunca descobrimos. Depois de cinco anos de busca, demos nosso menino como falecido.
12 de agosto, quarta-feira, Véspera do lançamento. — Pare. Ele não o escutou. Continuou rolando o texto no computador, sentado na poltrona da qual raramente fazia uso. Ilías, com a pele ainda quente e úmida do banho, precisou repetir a ordem, dessa vez mais alto. Estefen piscou, voltando à realidade. Vinha estando tão concentrado que nem percebera quando o homem retornara à sala de estar. Agora se dava conta de que, na verdade, sequer lia o que dispunha diante de si. — Pare com isso — repetiu Ilías, metendo as mãos nos bolsos. — Já faz uma semana. Estefen soltou o ar. Não era a primeira vez que Ilías o repreendia por passar demasiadas horas na frente daqueles arquivos — as evidências coletadas por Ton —, revisando e reimaginando todo o esquema. — Amanhã é o lançamento do projeto — rumorejou como justificativa. Projeto, não. Logo seria o OneConnect. Oficialmente.
12 de agosto, quarta-feira, Véspera do lançamento. — Ela sabia — murmurou Artur. O chuveiro ainda gotejava intermitente atrás dele. O banheiro finalmente ficava frio, e o porcelanato polido tornava-se escorregadio sob as coxas de Vince, mas ele não pretendia se levantar. Há quanto tempo estavam ali? Quinze minutos? Vinte? O bastante para que Artur retomasse o fôlego. Agora ele observava de modo contemplativo um canto qualquer, suas palavras saindo calmas, mas arranhadas como se contivessem fragmentos de vidro. — Minha mãe sabia se seria um menino ou uma menina. Um irmão ou uma irmã para mim… — continuava. Vince sentia que deveria dizer algo, além de apenas afagar os cabelos úmidos de Artur, mas tinha medo de fazê-lo chorar outra vez. — Eu sabia onde ela guardava a imagem do ultrassom. De vez em quando, ela a tirava da gaveta do corredor para olhar. Uma família era tudo o que ela tinha, afinal de contas. Não havia muito
Demitre não contava os dias, mas sabia que fazia cerca de uma semana desde que Lexia fora levada. Todo dia, exauria-se até não suportar, e só então dormia; era assim que mantinha registro do tempo. A noite agora o assustava, e sempre que as primeiras estrelas despontavam no céu, ele se martirizava por ter perdido mais uma oportunidade de resgatá-la. Ela em definitivo precisava ser resgatada, considerando que a OneBionics recorrera a matar inocentes para alcançá-lo. Após levantar-se daquela estrada de terra, Demitre esperara sob as sombras até que os veículos da OneBionics chegassem à casa amarela no meio do nada. Não tinha comprovação de que eram mesmo da OneBionics, mas não precisava de nenhuma. Vinha sendo atacado por biônicos há tempo suficiente para conhecer seus inimigos. Ainda se via muito longe de descobrir a razão por trás daquilo, mas isso já pouco importava. Lexia era quem realmente queria encontrar a verdade; Demitre, não. Ele só queria… Não tinha
13 de agosto, quinta-feira, Duas horas antes do lançamento. O edifício A ainda parecia vazio, mas Estefen sabia que isso mudaria em breve. A maior parte dos guardas de segurança havia sido redirecionada para lá, e o heliporto situado no terraço contava com o dobro de funcionários para receber e orientar os figurões cuja presença era esperada no evento. Ilías, com as mãos no volante do carro de Estefen, não chegou a entrar pela alameda. Estacionou numa calçada e relanceou olhar para o complexo. Estefen notou um tom de abstração e remorso no homem, mas nada comentou a respeito. — Obrigado por me trazer. Ilías demorou um instante para responder. — Ah, sim. Claro! Pedira que ele dirigisse, com a desculpa de que estava agitado demais para se concentrar na direção. Não era mentira, mas seu interesse maior era ter certeza de que Ilías aprenderia a usar bem o automóvel — dependendo de co
Lá fora ainda era noite, embora não fossem nem dez da manhã. Vince teve a sensação de que poderia ser noite para sempre naquela câmara. Artur olhava pela janela. Não se moveu quando Vince se aproximou e o abraçou delicadamente por trás. — É como dormir — falou Artur, quase sem abrir os lábios. — É como dormir e não sonhar, só que… diferente. — Voltei tão logo quanto pude. — Não tem problema. Foi indolor. Vince fechou os olhos e ouviu as ondas se quebrarem. — Me desculpe. Artur se virou e, com calma, levou um beijo até a bochecha de Vince. — Temos trabalho a fazer, não temos? — E sorriu. Ele parecia estranhamente tranquilo. Nada como o Artur que Vince havia abandonado na noite anterior, aterrorizado e solitário; parecia resignado. Vince contemplou seus olhos pequenos e escuros, seu queixo pontudo. Havia algo comovente em Artur, algo que o induzia a querer avançar, a tomá-lo para si. Quem sabe pudesse sacu
Ele não esperou anoitecer. Durante as primeiras horas da manhã, o edifício B da OneBionics parecia morto. Demitre não sabia se isso era positivo ou negativo, mas não recuaria agora. Os guardas de segurança não estavam na porta, e, até então, ele não vira nenhum usuário entrar. A arma de plástico se mantinha firme no cós da calça, fazia com que Demitre se sentisse mais poderoso, apenas durante os breves instantes em que ele não se relembrava de que ela era inofensiva. Precisaria ser convincente ao segurá-la contra alguém. Seu rosto ainda doía. E se o capturassem também? E se apenas uma arma de brinquedo não fosse o bastante? O que pretendiam fazer com ele? Pior: o que vinham fazendo com Lexia? Não queria pensar nisso. Esperava que os pais dela também a estivessem procurando; desse modo, caso Demitre fracassasse, Lexia ainda teria alguém lutando por ela. Finalmente viu movimento. Um automóvel subia a rampa do estacionamento interno, emergindo do subterr