— Então você tem uma tara por biônicos? — debochou Lexia, depois que Demitre lhe explicara sobre a OneBionics.
Ele revirou os olhos.
No interior da Pluck-&-Go, dentro do quartinho onde guardavam suprimentos de primeiros socorros, sobraçava a maior quantidade de esparadrapos, gazes, anticépticos e antibióticos que podia, enfiando-os na mochila que ele costumava guardar no armário; já estava pesada com os pacotes de composto surrupiados da sala de repouso.
Demitre conhecia um truque para entrar no ferro-velho. O reconhecimento biométrico de uma das portas laterais vinha apresentando defeito já há alguns meses e, em vez de acionar o alerta vermelho após cinco tentativas fracassadas, ela se destrancava. Os responsáveis já haviam sido comunicados mais de uma vez, mas pareciam não priorizar o conserto. Já se aproveitara daquela falha antes, quando estava sem vontade de pagar por um quarto de motel. Agora que havia sido demitido, e considerando sua situação atua
01 de agosto, sábado, Uma semana e meia antes do lançamento. Estefen não sabia ao certo quem gerenciaria o setor após, no dia anterior, chegar ao trabalho e descobrir que ninguém tinha qualquer informação sobre o estado de saúde de Viveana Castello. Rumores se espalhavam pelo andar, talvez pelo edifício inteiro, mas nada vinha sendo divulgado oficialmente, nem dentro da empresa, nem fora. Fédra, durante a manhã, chegara a lhe perguntar, com olhos mareados, o que diabos havia acontecido. Estefen perguntou se ela havia trocado os rolls de canela que costumava comprar para ele, ao que a assistente, horrorizada com a mera ideia, negou veementemente. — Você deve ter se enganado. Ou talvez tenham mudado a fórmula deles. — Estefen a confortara com um abraço. Fédra fizera seu melhor para segurar o pranto. — Não se culpe, está bem? Ninguém está responsabilizando você. Foi um acidente. Acontece. — Ainda
O primeiro dia de Vince foi melhor do que ele esperava. Embora não tivesse recebido nenhuma incumbência ainda, pôde conhecer toda a OneBionics por dentro, setor por setor. Ficou maravilhado ao ser apresentado à equipe de programação — todos tinham um ar compenetrado e inteligente; Vince se imaginou no lugar deles, após algum tempo, tão concentrado nas linhas diante de si que nunca nem se sentiria motivado a olhar para o lado. Visualizava-se comentando com seus colegas da faculdade sobre como “não era grande coisa” deixar a última aula mais cedo a fim de chegar ao trabalho na hora, enquanto, secretamente, mal podia esperar por isso. Claro que Vince teria que se provar valioso durante o período de estágio para, dali a alguns meses, quem sabe, ser efetivado, mas isso não o deixava menos empolgado. A melhor época de sua vida era agora. Se sua avó ao menos pudesse vê-lo, vestido com um terno, dialogando com gente rica e perguntando detalhes acerca de seu papel no desenvolvimento
A rua ficava para além da divisa de Porto Áureo. Após algumas horas de viagem, as construções pararam de passar fora das janelas do carro, e os pneus começaram a levantar poeira. Chegaram a ver pastos extensos, mas quase não havia terras cultiváveis. Os derredores se consistiam em barrancos, árvores de aspecto ressequido e arbustos. Demitre tivera razão em acreditar que logo sua memória o sabotaria. Alguns passos para fora do orfanato e ele já mal conseguira descrever à Lexia o que havia visto. Mas a amiga memorizara o nome: Beco de Tomás. Uma estradinha estreita, ainda de barro, abandonada no interior de lugar nenhum; um local onde, ao que parecia, a civilização não fazia questão de chegar. As estradas que vinham desbravando eram um emaranhado que conectava pequenas comunidades. Chegaram a parar numa delas para arranjar algo para comer. Os banheiros eram cabines sobre fossos, as casas eram madeira e argila. As pessoas os olhavam com curiosidade, mas falavam baixo en
01 de agosto, sábado,Uma semana e meia antes do lançamento.Estefen nascera longe de Porto Áureo, numa cidade rural cuja ínfima importância dispensava menção ao nome. Sua relação próxima com os vizinhos contribuiu para que ele desenvolvesse um forte senso de comunidade, sob o custo de restringir seu acesso a tudo o que existia para além das fronteiras invisíveis próprias aos costumes da região. Seu pai fora uma espécie de pároco local, e sua mãe servira os fiéis com seu trabalho de cozinheira.Costumava seguir regras rígidas. Acordava cedo, alimentava a criação de galinhas e ajudava sua mãe a descarregar a despensa. Depois da escola, recepcionava os frequentadores da paróquia e recolhia seus tostões. Quase não tinha tempo para se dedicar ao qu
05 de agosto, quarta-feira, Uma semana antes do lançamento. Naquela tarde, Vince foi apresentado a um homem de cabelos compridos em rabo de cavalo, designado a guiá-lo durante suas primeiras semanas. Após tanto ler manuais, estava pronto para colocar o conhecimento recém-apreendido em prática. Sentou-se ao lado de Wolfe e o observou escrever as linhas de comando. Diferentemente de como ocorria no sistema de biônicos comuns, os sintéticos processavam informações de maneira semelhante a como neurônios humanos operavam. — Sabe o que é biomimética? — O homem o testava. Vince aceitou o desafio, aprumando-se na cadeira ao lado. — Biomimética é o estudo das estruturas biológicas e de suas aplicações com o intuito de empreender tecnologias baseadas em princípios naturais — clarificou. Essa ele tinha na ponta da língua, havia pesquisado para sua carta-proposta. Wolfe lhe lançou um olhar d
Após um longo gole, a senhora arriou o copo d’água e entrelaçou seus dedos nos do marido. — Nós o chamávamos de Alê. — Ela sorriu de um jeito triste. — Os anos levam embora as recordações ruins. Uma hora, levam até mesmo as boas. Mas a saudade… ah, nunca a saudade! A voz dela embargou, e o velho apontou para o copo com o indicador sinuoso. — Beba mais um pouco, querida. Demitre estava sentado diante do casal à mesa de café da manhã. Lexia, ao seu lado, parecia brigar com a enfermeira que existia dentro de si, pronta para interromper a conversa e tratar dos nervos da anfitriã. Mais um gole, e a senhora continuou: — Ninguém prepara a gente para a perda de um filho… Quebrando um instante de silêncio, Lexia pigarreou e se manifestou: — Posso perguntar como ele faleceu? A senhora assentiu, mas foi o velho quem respondeu. — Nunca descobrimos. Depois de cinco anos de busca, demos nosso menino como falecido.
12 de agosto, quarta-feira, Véspera do lançamento. — Pare. Ele não o escutou. Continuou rolando o texto no computador, sentado na poltrona da qual raramente fazia uso. Ilías, com a pele ainda quente e úmida do banho, precisou repetir a ordem, dessa vez mais alto. Estefen piscou, voltando à realidade. Vinha estando tão concentrado que nem percebera quando o homem retornara à sala de estar. Agora se dava conta de que, na verdade, sequer lia o que dispunha diante de si. — Pare com isso — repetiu Ilías, metendo as mãos nos bolsos. — Já faz uma semana. Estefen soltou o ar. Não era a primeira vez que Ilías o repreendia por passar demasiadas horas na frente daqueles arquivos — as evidências coletadas por Ton —, revisando e reimaginando todo o esquema. — Amanhã é o lançamento do projeto — rumorejou como justificativa. Projeto, não. Logo seria o OneConnect. Oficialmente.
12 de agosto, quarta-feira, Véspera do lançamento. — Ela sabia — murmurou Artur. O chuveiro ainda gotejava intermitente atrás dele. O banheiro finalmente ficava frio, e o porcelanato polido tornava-se escorregadio sob as coxas de Vince, mas ele não pretendia se levantar. Há quanto tempo estavam ali? Quinze minutos? Vinte? O bastante para que Artur retomasse o fôlego. Agora ele observava de modo contemplativo um canto qualquer, suas palavras saindo calmas, mas arranhadas como se contivessem fragmentos de vidro. — Minha mãe sabia se seria um menino ou uma menina. Um irmão ou uma irmã para mim… — continuava. Vince sentia que deveria dizer algo, além de apenas afagar os cabelos úmidos de Artur, mas tinha medo de fazê-lo chorar outra vez. — Eu sabia onde ela guardava a imagem do ultrassom. De vez em quando, ela a tirava da gaveta do corredor para olhar. Uma família era tudo o que ela tinha, afinal de contas. Não havia muito