— Sua tia gostou tanto da ceia de Natal. Ela nem acreditou quando contei que encomendei tudo! — diz minha mãe, rindo enquanto tenta mudar de assunto.
Desvio meus pensamentos daqueles olhos negros que ainda me assombram e respondo, meio automática:
— Estava tudo uma delícia.
— Filha, por que você não vai conosco para a casa da sua tia no Ano Novo? Ela quer retribuir. Vai ficar chato você não ir.
Suspiro, já esperando essa conversa.
— Mãe, já falamos sobre isso. Não fica chato nada! Além disso, enfrentar horas de viagem, pegar trânsito, para ficar só dois dias lá? Nem pensar. E, lembre-se, dia quatro eu volto a trabalhar. Minhas férias já acabaram.
Ela hesita, como se não quisesse insistir, mas consigo ver a preocupação no olhar dela.
— Não sei se terei coragem de ir e deixar você sozinha aqui.
Fungo discretamente, tentando não revirar os olhos. Sei que ela quer ir. Sempre gostou de estar com a família, e eu não a culpo por isso. De repente, a imagem de Kayra surge na minha mente. Minha colega no curso de Administração. Ela vive me convidando para passar uns dias na casa dela, mas eu sempre recuso.
Lembro que no Natal ela me ligou, insistindo para eu ir até lá no Ano Novo.
É isso!
Se eu aceitar o convite de Kayra, minha mãe poderá viajar tranquila.
— Pronto! Já sei! Vou aceitar o convite da Kayra para o Ano Novo. Está bom assim?
Minha mãe me encara, surpresa.
— A turca? — pergunta, e, sem querer, um arrepio percorre minha espinha ao lembrar daquele estranho. O sotaque, os olhos negros, os cabelos escuros. Tão parecidos com os dela...
— Ela mesma.
— E ela? Foi na festa de aniversário da Helena ontem?
— Foi, mas ficou pouco. Parecia desconfortável, como se estivesse louca para sair de lá. Acho que foi mais por curiosidade mesmo.
Minha mãe dá de ombros.
— Bem, está certo. Mas não sei se seu pai vai gostar de você passar longe da gente. Enfim, descansa agora. Aproveita suas férias enquanto pode.
— Com certeza. Depois começam as aulas, o trabalho, e acaba essa vida boa.
Assim que ela sai do quarto, me deito e tento relaxar. Mas ele volta à minha mente. Aquele homem. Meu coração se agita, e quanto mais tento afastá-lo, mais os detalhes voltam, insistentes.
Os olhos negros. O sotaque. A presença dele.
Fecho os olhos, mas o rosto dele continua lá. Cada vez mais nítido.
Okan
Blasfemo baixinho enquanto olho ao redor do quarto, sem sinal dela ou do seu vestido. Procuro com os olhos, aguço os ouvidos, mas o silêncio é absoluto.
M*****a!
Meu peito se aperta. Que idiota eu fui! Ela foi embora.
Levanto da cama e vou direto até a minha carteira, abrindo-a com pressa para verificar se algo foi levado. Cartões, talão de cheques, dinheiro. Tudo está ali.
Ela desistiu?
Passo as mãos pelos cabelos, tentando apagar a imagem dela da minha mente. Um esforço inútil. Sei que sua presença vai me assombrar por muito tempo, talvez até o fim dos meus dias. Quem sabe, se eu tivesse cedido completamente ao desejo, esse vazio não estaria me consumindo agora?
Deveria estar aliviado. No fundo, é isso que faz sentido. A garota recobrou o juízo, afastou-se de mim e daquilo que nunca deveria ter começado. Mas o que sinto é o oposto: perda, rejeição, frustração. E isso me corrói.
Ofego, sentindo o peso no peito.
Allah... o que há de errado comigo?
Deito novamente, mas o vazio na cama só intensifica o tumulto em minha mente. Eu nem poderia estar com ela. Amanhã, estarei noivo de Sila. Uma jovem escolhida a dedo por meu pai, um homem que sacrificou tudo por nossa família. Ele merece minha lealdade. Minha irmã, nossa honra, tudo depende disso.
Suspiro profundamente.
Eu sabia que algo assim poderia acontecer. Sabia que, naquela festa, as jovens tentariam se aproximar. Não fui até lá por diversão, mas para buscar minha irmã, que insistira em participar contra a minha vontade. Acabei ficando por causa dela. Não da minha irmã, mas daquela garota. Ela me capturou no instante em que nossos olhares se cruzaram.
Cabelos dourados e cacheados caindo em cascata pelas costas. Alta, esguia, de curvas suaves e olhos verdes que pareciam capazes de despir minha alma. Ela era tudo: atração, perigo e algo que não consegui nomear.
E o perfume? Um aroma doce, natural, como se fosse parte dela. Misturado ao sabonete de sua pele e ao xampu de maçã em seus cabelos.
Uma loucura.
Por que deixei que a atração me dominasse? Tudo o que eu deveria ter feito era tomar uma dose de uísque e sair dali, aliviado pela mensagem de meu pai informando que minha irmã já estava em casa. Mas não. Em vez disso, cedi. Convidei-a para sair comigo, num misto de curiosidade e desejo.
Achei que ela recusaria. Aparentava ser tão jovem... Mas, para minha surpresa, aceitou de imediato. Não sei por que esperava o contrário. Mulheres de outras culturas são assim, eu pensava.
E quando saímos, percebi algo que me incomodou profundamente: ela não estava bem. Havia algo fora do lugar, e isso pesou em minha consciência. Tentei fazê-la mudar de ideia, recuar, mas a determinação dela me desarmou. Eu fui fraco, e meu desejo venceu.
Acabamos na suíte do hotel da minha família. Uma parte de mim tentou justificar a escolha: "Melhor que esteja comigo do que com algum imbecil."
E agora, aqui estou eu. Completamente alucinado. O cheiro dela ainda está nos lençóis, e a frustração me consome.
Ela balançou a isca, fez meu mundo girar e desapareceu.
Deveria estar feliz por isso. Afinal, ela é jovem demais para essa vida. Mas, ao invés disso, estou perdido, desejando algo que nunca deveria ter acontecido.
Consegui dormir um pouco e me levanto por volta das dez. Na sala, encontro papai lendo o jornal no sofá de dois lugares. Inclino-me para beijá-lo no rosto.— Bom dia. Como foi a festa?Desvio o olhar e me jogo no outro sofá.— Foi boa.Ele franze a testa, desconfiado.— Hum, esse "foi boa" não me convenceu.Sorrio para ele, tentando mudar de assunto.— Mamãe falou com o senhor sobre o Ano Novo?— Falou. Você tem certeza que vai ficar bem?Reviro os olhos, rindo.— Pai, se tem um lugar onde vou estar bem, é na casa da Kayra. Ela segue costumes super rígidos. Para você ter uma ideia, para ela namorar, o rapaz precisa ser aprovado pelo pai e pelo irmão. Então estarei segura com eles.Meu pai ri, aprovando.— Eles é que estão certos! Se tivéssemos feito isso, você não teria quebrado a cara com aquele idiota do Henrique.Minha expressão muda. O nome dele ainda é uma ferida. Ninguém gosta de ser traída, mesmo por um idiota.— Nem vem com essa conversa! Deus me livre o senhor ter que aprovar
Hampstead é um bairro de sonhos. As ruas largas e arborizadas são um convite ao encanto, com mansões majestosas que parecem competir entre si em beleza. Cada detalhe do lugar exala sofisticação e um ar quase intocável. Uma pontada de insegurança me atravessa: será que vou me sentir confortável em um ambiente tão elegante?Respirei fundo. Preparei minha mala com antecedência, escolhendo cuidadosamente minhas melhores roupas. Mamãe fez questão de me levar às compras, ajudando-me a escolher um vestido longo de cetim branco especialmente para a festa de Ano Novo. Para completar, ela insistiu em emprestar suas joias de família, um conjunto de colar e brincos de ouro com delicadas esmeraldas incrustadas. Quero causar uma boa impressão e, acima de tudo, não parecer deslocada.Ao me aproximar da mansão, o segurança verifica minha identidade com atenção antes de abrir os portões. Quando o carro avança pelo caminho de paralelepípedos, me pego admirando a propriedade. Magnífica seria uma descriç
Ômer surge na porta, sua presença carregada de um magnetismo inegável. Ele lança um olhar intenso na minha direção, o tipo de olhar que parece enxergar mais do que deveria.—Falando mal de mim? —pergunta, o tom descontraído, mas os olhos atentos.—Não, claro que não. Só falando bem —responde Kayra, sorrindo de maneira inocente.—Ah, não sei não —ele retruca com uma leve provocação.Sem cerimônia, Ômer se senta ao lado de Kayra, mas seus olhos continuam fixos em mim, me examinando com uma curiosidade desarmante.—Vocês se conheceram aonde? —ele pergunta, casual, mas atento.—Fazemos universidade juntas, mesmo curso e mesma turma —respondo, tentando manter a compostura.Ele pega um salgado da mesa e o morde lentamente, ainda sem desviar o olhar.—Você só estuda?—Sou bancária —respondo, tentando manter a conversa neutra.—Que banco?—No Royal.Os olhos dele se estreitam ligeiramente, como se algo se encaixasse em sua mente.—Por isso você não me é estranha. Eu tenho conta lá. Acho que t
Respiro fundo, afastando os pensamentos. Não posso me dar ao luxo de parecer vulnerável agora.—Mais alguma coisa? —pergunto, voltando ao tom prático.—Não, senhor.—Então está dispensada. Vá para casa e aproveite a virada do ano com sua família. Ah, e feliz ano novo.Ela sorri, surpresa com minha atitude.—Obrigada. E o senhor? Vai para casa também?— Não é de se admirar que o Réveillon neste hotel é uma das festas mais bem faladas....Eu sorrio me sentindo muito bem com isso. Tem que ser mesmo, eu praticamente respiro trabalho. —Sim, é verdade.—Então Feliz ano novo para o senhor.O escritório está silencioso agora, e o eco das palavras da minha secretária ainda ressoa na minha mente. "Feliz ano novo para o senhor." Ela saiu, mas sua despedida me deixa pensativo. Olho para a parede à minha frente, mas o que vejo é outra coisa. Memórias invadem, imagens que não consigo apagar.Hoje cedo, andando pelo hotel, observei algo que me desestabilizou. De trás de um aparador no restaurante,
Quando volto, respiro fundo e tento me recompor. Ainda assim, basta um pensamento sobre a cena para o riso quase escapar novamente.Depois do almoço, nos reunimos na sala, e eu, incapaz de me conter, comento sobre o episódio da faca. Kayra, com o humor que só ela tem, explica que é uma superstição turca. “Nunca se deve entregar uma faca diretamente para outra pessoa. O certo é colocá-la na mesa, e a outra pessoa a pega. Se for entregue diretamente, a pessoa deve cuspir nela para evitar brigas futuras.”Rimos juntas, mas logo nossa atenção é desviada pelo movimento na casa. Homens uniformizados entram carregando enormes buquês de flores do campo.— Deus! Essas flores custam uma fortuna nessa época do ano! — digo, com os olhos arregalados.— Tudo isso é para os preparativos do Ano Novo? — pergunto, sentindo uma ansiedade crescente. Quantas pessoas estarão nesta festa?— Sim, mas não se preocupe. Está tudo sob controle. Elma, nossa governanta, organiza tudo todos os anos. Que tal descansa
Restaram-me duas alternativas: ou ele era um homem decente, que não quis se aproveitar de mim naquele estado, ou simplesmente não me achou atraente.Deus! Que loucura.Sinto uma mistura de culpa e vazio. Culpa por desejar tanto alguém que mal conheço, e vazio porque o cara era... perfeito. Lindo de um jeito quase perigoso. Era exatamente o tipo de homem pelo qual eu me entregaria sem hesitar.Minha mãe sempre dizia: “Filha, controle-se! Nada de passar dos beijinhos e amassos.” Mas sejamos sinceros: com ele? Isso seria um desafio colossal. Claro, como a boa garota certinha que sou, eu o conheceria antes, talvez por dez encontros inteiros, mantendo tudo no limite.Dez encontros. Pimba!O pensamento faz meu corpo esquentar. É como se pegasse fogo só de lembrar daquele estranho.A memória vem viva na minha mente: que bumbum! Que pernas firmes, ombros largos e aquele sorriso... Ah, aquele sorriso! Ele poderia derreter a pessoa mais racional do mundo.Dez encontros mesmo? Rio, sabendo que s
Ofego enquanto ele caminha lentamente na minha direção, cada passo dele ressoando no chão como o eco de um destino iminente. Sinto-me pequena, como uma presa encurralada diante de um predador implacável. Não, ele não é um urso... É um leão, imponente, de olhos cravados na caça, com presas afiadas prontas para dilacerar.Ele para à minha frente, tão próximo que sinto o calor de sua presença avassaladora. Seu rosto sério e respiração pesada me atingem como uma onda, e o silêncio entre nós é sufocante, tão denso que parece roubar o ar dos meus pulmões. Meu coração, já disparado, tropeça em desespero quando ele avança um passo, aproximando-se como quem tem o controle absoluto da situação. Instintivamente, recuo, minhas costas se chocando contra a porta.O sorriso que surge em seus lábios não é acolhedor; é frio, predatório. Seus olhos, gélidos e fixos nos meus, carregam uma intensidade que me faz estremecer. Ele inclina o rosto, invadindo o espaço que restava entre nós. Meu coração dá um
A ironia me atinge em cheio, e eu não consigo evitar o riso que escapa, mesmo sabendo que estou provocando um vulcão prestes a entrar em erupção. A veia pulsando em seu pescoço é um aviso, mas não consigo me conter.— Diferente? Eu poderia ser uma ladra. Poderia me fazer de frágil e ter te drogado com um "boa noite, Cinderela". Qual é a diferença agora, hein? Senhor sabe tudo! Sabichão!A expressão dele vacila por um segundo, como se minha provocação tivesse atingido um ponto cego. Ele me olha, sem reação, e a satisfação triunfante que sinto é inebriante.Pontos para mim!Por um breve momento, ele parece perdido em seus próprios pensamentos. Mas então, seu olhar endurece, e a confiança retorna como uma tempestade.— Eu sabia que você não era assim. Eu sei ler as pessoas.O sorriso que surge nos meus lábios é desafiador.— Então estamos empatados. Eu sabia que você era apenas um cara no bar querendo se divertir. E não aconteceu nada, não é mesmo?Minhas palavras parecem acertar o orgul