Capítulo 5

A porta fechou com um estrondo tão violento, que jurei os vidros da janela tremerem. Roman está mais forte da última vez que o vi, parece um sniper cheio de músculos por anabolizante; em compensação seu cérebro deve ter diminuído.

E a dor de cabeça pela pancada se juntou as lágrimas que comecei derramar sem controle. Depois de uns segundos tentei me concentrar em alguma ideia, plano, qualquer coisa que fizesse eu me livrar de Roman, porém estaria sendo burra em ousar contrariá-lo. Eu conhecia uma parte dele, e poderia usá-la a meu favor, no entanto a fúria como fui tratada nublam as possibilidades, tornando qualquer atitude imprecisa e perigosa, tirando de mim todas as esperanças.

Levantei da cama com cuidado e pude ver a vista pela janela aberta com grades.

Haviam residências longínquas cercadas por vegetação, no mesmo padrão moderno a que me encontro. Há cheiro de móveis recentes no quarto com cama de casal, banheiro e um armário. Creio que estou em Mulholand Drive, e se estiver certa, é um dos bairros mais ricos de Los Angeles.

Conseguindo sair um pouco da turbulência a qual estou, fui até o armário e o abri, vendo apenas dois uniformes brancos de enfermeira e sapatos. Eles são do meu número. Juro que estou fazendo esforço sobre humano para acreditar que Roman é esse monstro ao qual tive o desprazer de reencontrar.

O que ele quer e porquê?

Terminei de me vestir, lavei o rosto e foi o quanto finalizei, ao ouvir a porta ser aberta.

—Angelina?!

A voz autoritária, me fez deixar o banheiro num segundo e dar de frente com ele. A mesma cara de pedra, olhar penetrante e cruel. Minha calma ameaçava desmoronar meu autocontrole. Eu queria arranhar seu rosto perfeito, extravasar toda a mágoa que ele plantou em cada parte minha, como uma cobra que mostrou as garras do veneno. Sentia-me traída, vítima de um engano, não importa que eu me iludisse com cada sonho, expectativa que ele deixou dentro de mim. Durante todos esses anos, eu sonhei, acreditei, não consegui ser feliz e agora a surpresa de tudo que ele realmente é, esmagam meu coração dentro do peito. Nunca fui tratada de maneira tão grosseira em toda minha vida.

—Que bom que está pronta, siga-me. — ouvi em tom rouco e seco.

Fui com ele passando pelo mesmo corredor de antes e depois de dobrarmos a esquerda, ele abriu a porta e vi uma senhora deitada numa cama projetada como hospital, com tudo que precisa. Embora pareça ser bem cuidada, vejo que o quarto não está tão organizado. A janela está entreaberta, há remédios espalhados na mesa ao lado da cama e um cheiro forte de algum produto de limpeza se misturam a outro cheiro que não soube descrever.

—Como ela se chama? –Pergunto, vendo ela dormir.

—Kira. Kira Mikhailovich. —A resposta foi rápida. Ele não disse mais nada, dando- me as costas sem ao menos dar qualquer outra informação.

 Então, reunindo forças e buscando toda calma do fundo de meu ser, não tive outra alternativa que cumprir minha missão, ainda que de forma difícil. Ela pode ser mãe desse monstro, mas não tem culpa de estar assim e nem deve saber, talvez, o homem cruel que ele é.

Rapidamente vou verificar seus remédios. Encontrei a receita e buscando um bloco de anotações, anotei os horários. É tudo muito estranho, pois não há maiores explicações sobre seu quadro. Roman parece estar alheio a situação dela ou realmente não está nem aí. Custo a acreditar que houve outro enfermeiro cuidando dela.

Ao verificar seu corpo, quando decido virá-la, percebo os lençóis sujos e sua roupa. Ela está em estado vegetativo se alimenta por sonda e há sinais arroxeados em seus braços e escaras nas costas. É uma imagem incompreensível e ao mesmo tempo dolorosa de ver.

Depois de cumprir tudo o que pude para dar ela um pouco de conforto, sento na cadeira, pensando o que mais pode acontecer por aqui. E quanto a meu pai? Ele vai ficar maluco com meu sumiço repentino.

Vi a noite cair, as horas passar e por mais que quisesse dar um passo para desaparecer, não ousei seguir nenhum instinto. Parece que um fio de esperança quer nascer dentro de meu peito, de que Roman ao menos vá tomar consciência de que não posso ficar presa, então caio na realidade que fui agredida, molestada psicologicamente e que nada do que disser ou fizer fará com que ele mude. Nem mesmo relembrar nosso passado no qual deve fingir ter esquecido para zombar e tripudiar em cima de mim.

Com esses pensamentos fervendo em minha mente, acabo dando vasão às lembranças de quando nos conhecmeos a primeira vez.

Flashback/Seis anos antes

—Pode deixar amiga. Eu tô legal, só que se eu não resolver essa parada com Pitter eu não resolvo mais. Ele é um tremendo de um filho da puta e eu não vou deixar isso passar em branco.

A loira um pouco mais alta que eu, olhos claros e cílios longos, está decidida e furiosa.

—Ai, tá bom. —resmungo sem ter outro jeito. Era meu aniversário e íamos para um pub comemorar.

Acabamos parando num posto de conveniência, porque minha melhor amiga, recebeu um telefonema do cretino de seu namorado. Ele a traiu dias atrás e ela descobriu tudo, quer resolver a situação e não quero ser um empecilho pra desistir de seu intento.

—Eu vou com você.

—Não mesmo. Eu só preciso de cinco minutos para acabar com esse canalha. Fique aqui que eu já volto.

—Mas Tracey!? —Fui ignorada com sucesso quando a loira entrou com pressa no carro.

—Fica fria. Aproveita e bebe alguma coisa com Lian agora você pode. —Ela pisca o olho sorrindo com malícia.

Tracey deu partida sem dar chance de mais uma palavra. Não tive outro jeito de ficar onde estou.

Ainda era cedo. Por ser sábado podíamos ficar mais tarde na rua, exceto ela que mesmo maior de idade tinha problemas com o pai. Eu também teria, mas como completei dezoito anos pensei não haver problema. Afinal hoje é meu aniversário.

Estou segura nesse lugar onde todos praticamente me conhecem, sem contar que moro perto. Meu pai tem amigos, e mesmo podendo tomar algumas cervejas com Lian que trabalha de dia aqui, e é meu vizinho, não estou animada. O jeito é esperar Tracey sem reclamações.

Pedi um refrigerante, ao invés de álcool e fiquei olhando o movimento da rua. Cumprimentei alguns conhecidos e quando meus olhos se movem para direita, reparo num homem sozinho a poucos metros, em uma camionete antiga, com sua traseira fechada por uma lona. Ele ergue uma garrafa de cerveja, long neck e pergunto-me o que pretende, já que se é o motorista, pelo que vejo, está bebendo como se pouco se importasse.

Ele é bonito, pele branca e tem o rosto bem desenhado com a barba por fazer. Posso ver pela camisa preta sutilmente aberta que é forte, atraente e seus braços, um que está do lado de fora da porta do carro com a manga da roupa dobrada, há uma tatuagem com palavras escritas que não sei decifrar. Os cabelos loiros escuros estão um pouco bagunçados e há resquícios de suor em sua testa.

Realmente a noite está abafada com sinais de chuva. Ando um pouco para me desfocar da visão dele. É um homem mais velho que eu, creio que deva ter trinta anos.

—Você tem horas? —Acabo por ouvir e só então me dou conta que a voz é do homem ao qual fiz um raio xis a poucos minutos.

—Dez e meia. —Respondo e sou surpreendida ao ver que ele tem olhos azuis, muito azuis quase anis.

—Obrigado. —Diz ele que bebe sua cerveja.

Volto minha atenção para outra coisa, e novamente ouço:

—Parece que os New York Jets estão perdendo. —Repara, olhando o jogo pela tv do posto de conveniência. Havia partida do time com Los Angeles Chargers

—Eles já foram melhores segundo meu pai que é viciado em futebol.

—Ah...—uma risadinha escapa dele pelo nariz— Estou começando achar que é isso mesmo.

Sorri sem dentes, sem saber o que dizer.

—Me desculpa perguntar, —ele formula intrigado —mas você está sozinha aqui?

—Bem, —cruzo os braços. — pelo menos até os próximos cinco minutos. Quer dizer, seria isso, mas pelo visto minha amiga vai demorar, já se passaram meia hora.

—É ...olha, sei que parece estranho, mas você bebe alguma coisa?

Pensei um pouco. Eu não conhecia ele; um estranho mesmo, mas todos ali me conheciam o suficiente para saber que se sumisse, sabiam dizer a hora, onde estive e com quem estive. Ele estava muito próximo do movimento e considerando sua oferta, o mínimo que devo fazer, pelo menos, é não sair com ele daqui.

—Sim, na verdade hoje é meu aniversário.

—Sério? — Ele sorri amplamente com dentes muito bonitos, um sorriso digno de comercial de pasta de dentes.

—Aham.

—Então, você tem que comemorar. —ele desceu do carro animado vindo até mim. — Eu me chamo Roman e você?

—Eu sou Angel. —esse é o meu apelido devido ao meu nome Angelina, mas não contei a ele.

Um novo sorriso se abriu em seus lábios e ele enrugou a testa de maneira admirada. O sotaque é diferente o que demonstra não ser americano.

—Um anjo que caiu do céu? —brincou, me deixando vermelha —Que tal entrarmos e você escolhe a sua bebida? Eu pago. Aceite como presente de um amigo.

—É bem...

— Você é de maior, não é? —disparou um olhar sério.

—Sim, eu acabei de fazer dezoito anos.

—Perfeito.

Não consegui dizer não para um metro e oitenta de charme, olhos índigo cintilantes e rosto simpático. Ele mais parecia um príncipe, apesar de sua roupa simples, mas estava perfumado com algo que cheirava a menta, misturado a uma fragrância mais forte e máscula, o bastante para potencializar seus feromônios. Senti um leve frio na barriga quando entramos na loja e escolhi uma garrafa de vodka. Não ia beber muito, pelo menos eu pensava.

Entramos no carro. Havia muita gente na lancheria e o jogo ainda não terminara. Passamos a conversar como dois conhecidos. Falamos de tudo, música, filmes, ideias e até política.

— Eu estudo obras renascentistas. Posso dizer que, quero fazer história da arte.

—Você está brincando?

—Não. Eu gosto muito. Existem obras lindas e pintores incríveis. Quer ver?

—Claro. —respondo.

Ele estica seu braço musculoso, roçando em mim com a cerveja entre uma das mãos e abre o porta luvas. Tira um livreto e me entrega.

—Olha, veja por si mesma.

Passo a virar as páginas, vendo obras lindas. Michelangelo, Boticelli, Dante e sua musa. Esta, me impressiona pelo colorido e há outras mais belas.

—Eu gostei dessa, Heloise e Abelardo. Eles tem uma história trágica e linda. —Suspiro, traçando o dedo na imagem.

—Aprecio essa também, existe o lugar onde eles foram enterrados na França. Eu tenho o livro que relata suas cartas de amor, é algo bem profundo e tocante. —Ele diz com um sorriso simpático —mas eu gosto muito dessa —vira algumas páginas e mostra a pintura de uma anjo com uma lágrima. —Alexandre Cabanel Anjo Caído.

—Nossa, ela é um pouco sinistra, você não acha?

—Sim, observando pelo fato de que ele seria Lúcifer, mas o pintor conseguiu transferir bem a emoção dele. Quando olho pra ela, sinto é como se refletisse o diabinho que existe dentro de mim. —ele piscou um olho e terminou a cerveja.

—Você tem um sotaque estranho. É estrangeiro, não é?

—Sim. Eu sou russo. Nasci em São Petersburgo, mas vim estudar e trabalhar aqui. Na verdade, agora só trabalho. Eu tive que trancar a faculdade porque não consegui me manter.

—Sinto muito.

—Não sinta. Meu pai queria que fosse arquiteto. Me matriculei por culpa dele, mas não consegui seguir em frente. Eu contrariei toda a sua vontade de seguir essa profissão. Quis muito ir para Toronto, estudar história da arte, como não consegui, fiquei por aqui mesmo. Eu trabalho como vendedor.

—Oh...—encontrei os olhos dele que parou um instante descendo o olhar para meus lábios. Foi impossível não perceber e sorri timidamente, tentando ofuscar o embaraço.

—Você é uma garota muito bonita. — Elogiou, aumentando o calor que subiu meu rosto.

—Obrigada.

Bebi uns goles de vodka, o jogo terminou e ficamos em silêncio. Sentia o álcool fazer efeito, uma euforia invadir-me lentamente e dei-me conta que minha amiga nem sequer deu sinal.

—Que tal a gente caminhar um pouco? —sugeriu ele.

—Caminhar?

—Sim. Eu deveria te convidar para ir à balada já que é seu aniversário, mas eu não tenho como dirigir com bebida. Conheço um lugar aqui ao ar livre, muito bonito e tranquilo. Acho que você vai gostar.

Fim do Flaschback

Os quadros, seu traço marcante por adorar as obras sacras e querer estudar arte, sempre estiveram em minha memória. Não entendo como ele pode ter se tornado esse homem louco.

A imagem da pintura o anjo caído, venho na minha mente. E eu só conseguia ligar as possibilidades que ele devia lembrar de mim. Isso só podia ser um truque dele. Mas porquê? Eu nunca mais tive notícias durante todos esses seis anos.

Um barulho me fez tremer no lugar onde estava. Com as lembranças de uma parte que vivi com Roman, acabei adormecendo com a cabeça apoiada no móvel perto da janela. A porta foi aberta e deparei-me com o monstro de olhos azuis, rígido, lábios crispados numa expressão de completa contrariedade. Errei em dormir. Na verdade, eu nem mesmo sabia explicar como consegui fechar os olhos devido ao meu abalo.

—Levanta daí, eu preciso que venha comigo. —advertiu, sem ao menos olhar para sua mãe. Ela dormia, estava limpa e senti alívio por cumprir minhas obrigações. Porém temia o que me esperava.

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