Ceyas
— O que merda é isso? — pergunto a Lugi, que depois de algum tempo chega mais perto, me auxiliando a segurá-la, já que seu corpo começa a se debater, indo contra a onda de dor que ela parece estar sentindo.
— Você acha que eu sei? — replica Lugi, segurando-a com força, mas é possível notar que ele sente dificuldade. Que força descomunal é essa que essa mulher tem, mesmo com uma aparência tão fragilizada? Qualquer um diria que o seu estado é doentio, mas ainda assim, ela emana aquela aura assustadora e solta palavras ácidas, ameaçando-nos como se pudesse passar por cima de nós a qualquer momento.
— Ela vai morder a própria língua — comenta Lewyn em voz baixa. No entanto, as palavras dele não são processadas pelo meu cérebro rápido o bastante. Ele se abaixa, ajoelhando-se perto dela, abrindo a boca dela com força e colocando o seu braço entre seus dentes.
— O que está fazendo? Nem sabe quem é essa mulher — profere Lugi, recriminando-o. O breve segundo em que a soltou foi o suficiente para ela se debater com ainda mais força. Percebendo o que fez, ele volta a segurar os braços finos dela com força, puxando-os para cima. Mantenho minhas mãos nas suas pernas, mas tenho a sensação de que o que fazemos não é suficiente.
— O que nós fazemos? Quer dizer, o que faz com que ela fique assim? — Inquire Lugi, e eu penso na mesma coisa, mas não consigo ter certeza do que poderia ser. Contudo, tenho uma grande possibilidade de que sejam as magias que a bruxa lançou neste lugar. Mas nós não podemos nos livrar do sigilo sem Kanoi, e não temos como saber quanto tempo levará para que ela chegue até aqui. Mesmo que seja rápida, é difícil dizer o que acontecerá com essa mulher até lá.
— Porra — expressa Lugi, observando como o movimento feito pelo bebê em seu ventre pode ser visto claramente por nós. — Bebês costumam fazer essas coisas?
— Você acha que sei, caralho? — inquiro, sentindo a raiva ácida na minha boca. Não tem nada que possamos fazer? Tenho que continuar vendo-a nesse estado?
O sangue de Lewyn desce pelo rosto dela, mas ele não deixa que a dor seja expressa em seu rosto. Na verdade, sua ação novamente me deixa confuso. Ele leva a mão até o topo da barriga dela, e, no momento em que o movimento do bebê alcança o ponto onde sua palma se encontra, consigo notar a diferença na aura da mulher. Devagar, ele passa a mão pela barriga dela, e isso diminui ainda mais os movimentos bruscos dela.
— Que porra tá acontecendo aqui? — inquiro Lugi, mas ele devia perceber que ninguém aqui, em meio a essas sombras, tem a resposta para o que quer saber.
A mulher abre os olhos e nos encara, mas foi muito breve, já que logo suas pálpebras se fecham novamente, e não foi porque ela queria evitar ver nossos rostos. O ritmo do seu coração se torna extremamente calmo.
Lewyn tira o braço da boca dela sem retirar a mão que colocou na barriga.
— Não solte ela — manda Lugi no instante em que tiro minhas mãos de onde estavam para conseguir me aproximar um pouco mais do peito dela, pois seus batimentos diminuíram tanto que temo que sua vida esteja se perdendo, e, se ela falecer, talvez possamos salvar o bebê.
— Nem pense nisso, Ceyas — profere a voz familiar vindo das minhas costas.
— Kanoi, nunca vou dizer que odeio te ver — declara Lugi.
— Não minta, consigo ver uma dezena de situações em que vai reclamar de mim — articula ela, olhando para Lewyn. Os dois parecem se comunicar de um jeito estranho, pois Lewyn espalma a mão como se anunciasse que protegerá o que há no ventre da mulher.
Esse simples pensamento me deixa irritado.
— Parece que encontraram alguém bem perigoso — fala Kanoi, concluindo que a mulher é um perigo, sem nem ter visto o que ela fez minutos atrás. — Estava certa em vir verificar o que fariam. Senti que algo estava errado.
— Podia ter ligado — pontua Lugi.
Eu diria o mesmo, mas a mão de Lewyn ainda me irrita.
Olho para ele, mas nem assim ele a retira de onde está.
— Faço as coisas do meu jeito — professa Kanoi. — Agora que a encontraram, só há duas opções: matá-la, seguindo as ordens que deu no início dessa missão para exterminar os híbridos, ou salvá-la, levando-a para a alcateia.
— Já sabe o que vou escolher? — questiono, e ela dá de ombros.
— Disse muitas vezes que o futuro pode ser mudado dependendo das escolhas feitas no momento — lembra Kanoi. Ela chega mais perto, verifica minuciosamente o rosto apagado da mulher, com o sangue secando sobre a sua pele. — Ela lutou bastante para tentar se soltar — comenta, estalando os dedos, e toda a área obscurecida que não poderia ser vista fica nítida diante de nossos olhos.
Não costumo ver Lugi se surpreendendo, mas seus olhos alarmados ao ver a quantidade de cadáveres despedaçados amontoando-se em muitas partes mantêm o assombro em sua expressão. Tem sangue escorrendo pelas paredes e pedaços grudados em áreas inimagináveis.
Quem é essa mulher e por que estavam escondendo ela aqui?
São tantos pedaços de corpos que é difícil dizer quantas pessoas estavam a mantendo encarcerada. Ainda assim, Uvtrian foi embora, deixando-a para trás. Ou talvez confiou que seus homens conseguiriam levá-la até ele.
— Não vamos matá-la. Ela é inimiga de Uvtrian, pode ser útil a nós — afirmo, mas pela expressão de Lugi, percebo que tomei uma decisão horrível que me custará tanto que haverá um momento em que me arrependo dela.
— Ela pode ser um deles, uma que atua muito bem — pontua ele, se assustando quando Lewyn a pega nos braços, tirando-a do chão. Kanoi murmura um feitiço rápido que faz com que todas as correntes se soltem do corpo dela. — Está pensando direito nisso?
Não posso responder a seu questionamento.
Minhas certezas nesse momento são muito poucas.
— Quer levar uma estranha para a alcateia?
— Estranha ou não, se é meu, ninguém toca — pontuo, ouvindo-o me xingar antes de olhar para a cena grotesca, que foi escondida pela escuridão uma última vez.
— Caso dê merda, me lembre de dizer que avisei — pede.
Mas pode mesmo acontecer algo de errado?
Ceyas— Me lembre o motivo para que Lewyn esteja aqui — pede Lugi, parado na porta do quarto de hóspedes da minha casa, ao meu lado. O homem não tem saído do lado da mulher, eu até tentei fazer com que ele saísse, mas Kanoi me disse para deixar que faça o que quiser.— Kanoi disse que ele deve fazer o que quiser — lembro a meu amigo.— Esse maldito nunca mostrou interesse por nada, como agora fica assim? Velando o sono de uma estranha? — pergunta injuriado, o que entendo e não compreendo na mesma medida, dado que eles não possuem um relacionamento. Contudo, também me sinto incomodado pela presença constante dele.— Vocês sabem que ele pode ouvir tudo o que estão dizendo, certo? — A mulher, mais baixa que eu, fica na minha frente como se fosse muito maior. Onna gosta de criar encrenca, até mesmo comigo, que sou seu irmão. — Não acredito que me pediu para ficar cuidando de uma estranha.Ela faz questão de pontuar a palavra, expondo que foi Lugi a usá-la dessa maneira primeiro. Ninguém ac
CeyasKanoi não demorou a sair da minha casa depois de dar o seu remédio milagroso para a estranha. Depois disso, Lewyn continuou cuidando dela como tem feito, ou seja, eu não deveria ter preocupações, mas por que me sinto incomodado?Diferente de Lugi, não tenho qualquer motivo para me preocupar com ela, ainda que tenha sido aquele que decidiu que a traria para dentro do território da nossa matilha. Kanoi me deu mais de uma opção, apenas escolhi a que pareceu certa.Não, se eu for sincero, não tem isso de certo nas opções para o que faria com a grávida. A minha mente escolheu por salvá-la sem que houvesse nada que pudesse garantir que não é um perigo para os nossos lobos, da forma como Lugi me avisou.Talvez eu tenha sorte de o meu amigo não ter sido ainda mais invasivo com as suas palavras, porque poderia ter explanado o quanto a minha loucura me demoveu na direção dessa escolha.Um ataque de loucura é a única explicação para o que fiz naquele momento, também pode explicar o que est
CeyasTento me erguer o mais rápido que consigo após ter sido pego tão diretamente pelo seu ataque. Ele falou sério quando mencionou que quebraria os meus ossos. Sinto a dor correr através dos meus músculos enquanto eles se ajustam até que a cura ponha os ossos no lugar.— Eu não sei qual é a sua intenção aqui, mas não conseguirá o que quer — atesto, ouvindo o som dos meus ossos se reunindo onde pertencem. Apoio a palma da mão na boca, limpando o sangue que subiu pela garganta e escapou. — Coloque a mulher no chão.— Não — diz o bruxo, lançando mais uma onda de ar na minha direção, e meu corpo é pressionado novamente contra a madeira da casa.Mais do que o som dos meus ossos se partindo, escuto o trincar da madeira, que se torna mais alto, quase tomando toda a minha atenção. Se eu não pudesse ver a mulher sendo mantida pelo homem, quem sabe faria menos esforço contra a sua magia. Contudo, me pego sendo impelido a me esforçar grandemente.Espero que ele mantenha o foco em mim. Lugi deve
Ceyas— Pode me explicar como um feiticeiro conseguiu passar despercebido? — pergunta meu amigo, Lugi, para Kanoi. A estranha foi trazida até nós ao amanhecer, e eu me certifiquei de posicionar os lobos de forma estratégica, em pontos onde poderiam nos apoiar caso um novo ataque acontecesse.— Seus sentidos podem ser enganados, dependerá da habilidade que o bruxo possui — responde Kanoi, mantendo-se sentada no sofá como se não houvesse nada que pudesse fazer, já que não pode arrancar informações de um morto.No entanto, como poderíamos tentar prendê-lo quando ele representava um risco óbvio à nossa segurança? Além disso, ele queria levar a mulher embora. Ela, que ainda não acordou, mesmo com Kanoi dizendo que o remédio dela resolveria o que a acomete a ponto de deixá-la inconsciente.— O que faremos agora, já que não sabemos o que ele queria? Bem, temos uma parte da resposta — articula Lugi, apontando para o andar de cima, onde a estranha repousa tranquilamente.Mais de uma vez, até am
CeyasEstou me xingando mentalmente, porém, continuo indo na direção do quarto da minha hóspede adormecida. A mulher com certeza recebe mais visitas do que eu, uma vez que traz tantas preocupações para pessoas diferentes.Ouvi Lewyn saindo do cômodo, provavelmente para encontrar algo para comer, dado que fica do lado dela, como se ela pudesse saber os exatos momentos em que ele não está. Sinceramente, não o entendo, mas também não me compreendo neste instante.Dessa vez, não hesito muito em abrir a porta, apenas giro a maçaneta e a abro ligeiro. Como pensei na outra noite, essa é minha casa, posso ir exatamente para onde eu quiser, na hora que desejar.Contudo, algo deve estar contra mim nos últimos dias.Antes que toda a porta fosse aberta, senti o meu corpo ser empurrado para trás pela palma da mão me pressionando com tanta força que tenho certeza de que minhas costelas trincaram.Meio cambaleante, ousei olhar para a pessoa à minha frente, e ela mostrou as suas presas com muito entus
CeyasPensei que, depois do ocorrido, Lewyn pudesse tentar escapar, mas ele apenas a colocou no quarto, ignorando todo o estrago feito por Lugi. Não vai ser fácil consertar essa parede sem fazer uma bagunça.O homem ao meu lado pede que eu não o critique, uma vez que fez tudo o que precisava para me ajudar. Mesmo que não pedisse, não é minha intenção. Odeio que tudo ao meu redor esteja transcorrendo de uma maneira tão absurda.É tudo influência dessa mulher?Com uma expressão fechada, fria e impassível de emoções, Lewyn se aproxima de nós. Ele é muito diferente do rosto que vi sorrir de forma tão límpida enquanto a observava.— Devemos conversar aqui? — pergunta ele. — Prefiro não me afastar tanto dela.— Caralho, que merda está acontecendo com você? — inquiro Lugi. Sua ignorância não muda a maneira como Lewyn o observa, porque, aparentemente, o tom de nossas palavras não altera como ele as compreende.Coloco uma mão sobre o peito dele, evitando que avance no sujeito inexpressivo à min
CeyasDemorou um pouco mais de tempo do que eu esperava para que Lugi voltasse a se aproximar de nós. Contudo, na sua posição, não poderia simplesmente ignorar o que aconteceu. É preciso que ele também saiba tudo o que Lewyn tem a dizer.— É melhor que dessa vez você fale tudo o que sabe — ordena Lugi, esquecendo-se de todos os momentos em que usava sua fala mansa com o homem, apenas esperando que as suas emoções fossem escutadas, quando, na verdade, talvez ele nem pudesse percebê-las.— Posso resumir — declara Lewyn. — Meu pai, assim como uma dezena de outros, queria aprender sobre o que faria os lobos evoluírem. Para isso, ele usou tudo o que tinha: sua magia, sua esposa, seus filhos, mulheres inocentes, mendigos, o que estivesse à disposição.— Seu pai não é um lupino? — pergunto, olhando de canto para Lugi. No entanto, neste momento, parece que ele consegue se controlar muito melhor do que antes, quem sabe por absorver o impacto inicial.— Não, ele era um bruxo. Minha mãe era uma l
CeyasApós as revelações de Lewyn, não temos tantas informações quanto imaginávamos, uma vez que ele não tem ideia de como a sua irmã sobreviveu todos esses anos, e muito menos podia senti-la.— Sentiu ela morrer? — investigo. — Pode ter se enganado. Era uma criança.— Se tivesse um luparck, saberia que não tem como se enganar — me responde ligeiro. — Da mesma forma que sei que o sangue dela está correndo muito lentamente nas veias, apesar do nível de cura que possui, eu saberia que o seu coração parou. O que senti naquele momento… nada do que vivi depois me fez esquecer — atesta.— Sabemos quem ela é agora — replica Lugi, como se não houvesse nada mais pelo que devêssemos nos alegrar nesta ocasião, uma vez que a vida dela antes de Lewyn e depois do momento em que a viu morrer ainda são obscuros.— Ela não é um lobo puro? — inquiro para Lewyn.— Não, embora seja difícil saber que traços ele pôde acrescentar à existência dela com as suas maluquices — declara, me dando uma resposta objet