Tristan não sentia cansaço. O peso nos ombros não vinha da viagem, nem das batalhas vencidas dias antes. Era outra coisa — algo escuro, denso, pulsando em cada músculo. Ódio. Um ódio que queimava de dentro pra fora, como se quisesse devorar o mundo inteiro.
A vila estava diante dele. As casas de pedra, as mesmas que um dia ele protegeu com espada em punho, agora pareciam inimigas. Cada janela fechada, cada porta trancada… cúmplices. Traidores, todos eles. Nenhum tinha levantado a voz. Nenhum tinha impedido. Se ela sangrou, se ela chorou, foi com o silêncio de todos ao redor.
Uma sentinela no alto da torre mal teve tempo de tocar o sino antes de uma flecha atravessar sua garganta. O som abafado de seu corpo caindo despertou a vila com o gosto metálico do terror.
A multidão rugia como um mar em fúria. Gritos e vaias se erguiam na praça, o cheiro de fumaça já presente no ar. No centro, a estrutura da fogueira se erguia como um altar grotesco — troncos empilhados, trapos embebidos em óleo, cordas apertadas com brutalidade. E ali, amarrada, com os cabelos desgrenhados e a pele suja de terra e sangue seco, estava Helena.Os olhos dela varriam a multidão com um desespero surdo. O coração batia tão alto que era como se o mundo inteiro ouvisse. Mas ninguém ouvia. Ninguém via. Para eles, ela não era Helena. Era um monstro. Uma bruxa. Um espetáculo.O padre Mathias erguia os braços e gritava passagens sagradas, cuspindo condenação entre cada palavra.— Qu
A vila ardia em sombras e fumaça.Casas fechadas, portas escancaradas com pressa, barris tombados, sangue misturado à lama — tudo era sinal da guerra silenciosa que se espalhava como praga. Os gritos haviam diminuído, mas o ar ainda tremia com a tensão de algo prestes a explodir.Padre Mathias corria por vielas estreitas, a batina rasgada pela pressa, o rosto suado e manchado de fuligem. Seus olhos se reviravam de um lado para o outro como os de um rato encurralado.— Eles vão me matar… eles vão me matar… — murmurava para si, tropeçando nos próprios pés.Passou por trás da capela, onde alguns fiéis mortos jaziam. Evitou olhar. Sua fé agora era apenas medo. Fé de que pudesse escapar.Mas o destino já o observava.
A vila estava em ruínas.O céu parecia desabar em cinzas, o fogo consumindo o que um dia fora lar, mercado, capela. O estalo das chamas misturava-se aos gritos dos feridos, ao ranger de madeira cedendo, ao tilintar de espadas ainda em choque por aqui e por ali. O caos reinava — um caos sem glória, nascido do ódio, da injustiça e da retribuição.Tristan segurava Helena firme contra si enquanto avançavam pelas ruas sujas de sangue e fuligem. Ambos estavam cobertos de marcas — cortes, fuligem, poeira — mas vivos. Vivos e juntos.— Por aqui! — gritou Bryn ao longe, abrindo passagem entre destroços com sua lâmina. — A trilha leste está livre!Tristan montou rapidame
A noite caía pesada sobre o vilarejo, as sombras dançando nas paredes de madeira da pequena casa onde Helena se escondia. O vento uivava através das frestas da pequena casa de pedra, carregando consigo o cheiro de chuva e medo. Helena, encolhida atrás de um baú de madeira, pressionava as mãos pequenas contra os ouvidos, tentando abafar as vozes que ecoavam pela casa. Mas era impossível não ouvir.— Não podemos continuar assim, Wilhelm! — A voz da mãe soava cortante, desesperada. — Essa marca... Essa maldição... Ela vai trazer desgraça para todos nós!— Ela é só uma criança — retrucou o pai, mas a hesitação em sua voz era evidente. — Não sabemos se... se é mesmo o que dizem.— Abra os olhos! — A mãe interrompeu, a voz embargada pelo medo. — Todos sabem o que aquela marca significa. O padre Mathias viu! Ele mesmo disse que é obra do demônio. Como podemos manter isso sob nosso teto?Helena apertou ainda mais as mãos contra os ouvidos, como se pudesse afastar aquelas palavras. Os olhos ar
O sol nascente tingia o céu com tons dourados e alaranjados quando Helena abriu a pequena janela de madeira, deixando a brisa fresca da manhã invadir a cabana. O ar carregava o cheiro úmido da terra e o canto distante dos pássaros que despertavam junto com o dia.Durante anos, aquele lugar que fora um refúgio miserável se tornara seu lar. A estrutura que antes ameaçava desmoronar agora estava reforçada com tábuas novas e musgo removido das paredes. O teto, antes perfurado pela chuva, fora consertado com cuidado, impedindo que as águas tempestuosas invadissem seu abrigo. O chão de terra batida dera lugar a um revestimento de madeira rústica, e o cheiro de mofo foi substituído pelo aroma das ervas secando em pequenos feixes pendurados no teto.A lareira crepitava suavemente no canto da cabana, aquecendo a chaleira de ferro onde a água fervia para o chá da manhã. Em uma mesa simples, porém bem cuidada, repousavam pequenos potes de barro contendo ervas e unguentos que ela mesma preparava.
O calor do fogo na lareira tornava a cabana aconchegante enquanto Helena mexia uma panela de ferro sobre as chamas. O cheiro de ervas e legumes cozinhando preenchia o ar, e o suor já umedecia sua nuca. Cozinhar era uma tarefa simples, mas necessária, e ela se permitia aproveitar o momento em silêncio.Foi então que ouviu os animais. O balido alto das cabras, o mugido aflito de Branca e os grunhidos nervosos dos porcos. Seu coração acelerou. Esse tipo de alarde nunca era bom sinal.Limpando as mãos no avental, Helena se dirigiu à porta, o corpo tenso. Pegou uma faca que sempre deixava por perto—não que ela soubesse lutar, mas a mera sensação de ter algo nas mãos lhe dava uma falsa segurança. Respirou fundo antes de puxar a tranca e abrir a porta.O que viu fez seu estômago se revirar.Um homem estava parado ali, oscilando entre um passo e outro, como se o próprio corpo estivesse prestes a ceder. Ele era imenso—assustadoramente alto e absurdamente forte, mesmo com a armadura rachada e o
Helena ainda estava sentada no chão, recuperando o fôlego, quando seus olhos caíram sobre a armadura do guerreiro. Era um emaranhado de ferro pesado, rachado e coberto de sujeira e sangue seco. Se ele precisava de cuidados urgentes, a primeira coisa a fazer era se livrar daquilo.— Ótimo, mais trabalho para mim… — murmurou, passando a mão no rosto.Ela se aproximou e começou a desfazer as correias de couro que mantinham as peças unidas. Algumas estavam tão apertadas e rígidas que seus dedos doíam ao tentar afrouxá-las.— Quem foi que te vestiu, homem? Um ferreiro com raiva da humanidade?Depois de alguns minutos de luta, a primeira peça caiu com um baque surdo no chão de madeira. Seguiram-se os ombreiros e a couraça, revelando um peitoral coberto de hematomas, arranhões e cortes abertos. A pele quente, marcada por cicatrizes antigas, se esticava sobre músculos firmes.Helena parou. Engoliu em seco.Seu rosto esquentou no mesmo instante.— Isso não importa — murmurou para si mesma, vol
Helena acordou com um sobressalto ao ouvir um gemido grave e raivoso preencher a cabana. Antes que pudesse reagir, um grito ecoou pelo cômodo.— O que diabos você fez comigo?! — a voz do guerreiro saiu carregada de fúria. Ele tentou se mexer, mas seu corpo recusava-se a obedecer. — Meu corpo…! Eu não consigo me mover! O que você fez, maldita bruxa?!Os olhos dele ardiam com uma mistura de ódio e desespero. Helena cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha, impassível.— Leite de papoula — respondeu, com um sorriso sarcástico. — Você estava choramingando de dor, achei que um grande guerreiro como você não fosse tão sensível.Ele rosnou, os músculos se retesando apesar da dormência.— Veneno. Você me envenenou.Helena soltou uma risada curta, sacudindo a cabeça.— Sim, claro. Minha estratégia brilhante foi arrastar um homem do tamanho de um cavalo para dentro da minha casa, limpar seu sangue imundo do meu chão e depois matá-lo lentamente. Faz todo o sentido.Os olhos do guerreiro se estr