CAPÍTULO 2

A vida é realmente feita de acasos. Tive a prova deste adágio quando, no meu primeiro dia de aulas no Colégio Nobre, vi o Márcio, o rapaz que conheci no Talatona, sentado na minha sala de aulas. O nosso primeiro contacto foi um simples e tímido "oi", movido pela minha timidez, timidez esta que surgia apenas quando me deparava com ele. O Colégio Nobre era o meio acadêmico mais frequentado pela alta sociedade angolana. Em outras palavras, é lá onde estudavam os riquinhos da cidade. Um facto verídico que a maioria dos pais desconhece é que escolas deste tipo costumam ser um poço de influências negativas para os jovens.  

Os ricos do meu país investem em construções de escolas privadas caríssimas, com mensalidades cinco vezes superiores ao salário mínimo de um país rico e pobre instituicionalmente. O ensino nestas escolas é de qualidade, mas a futilidade mora nelas também, onde muitos vão apenas para cumprir formalidades, e outros vão para exibir as suas roupas novas. Alguns dos alunos bolseiros que estudavam no Colégio Nobre com atestados de insuficiência econômica perdiam-se seguindo os alunos pertencentes à burguesia do país, e uma pequena parte dos alunos, vista como a minoria, estudava no verdadeiro sentido da palavra. Assim são feitas as escolas em Angola. É algo que quase ninguém presta atenção, porque quase ninguém vê, as coisas importantes são irrelevantes para o mundo actual.

A futilidade no Colégio Nobre sempre foi excessiva, e no meio desta imensidão de futilidades também havia espaço para o amor. Por falar em amor... as coisas com o Márcio começaram a fazer cada vez mais sentido quando calhámos no mesmo grupo de trabalho da disciplina de História, pelo facto de os nossos números serem próximos. Assim que soube que o Márcio faria parte do meu grupo, os batimentos do meu coração voltaram a acelerar daquela forma estranha. Era uma questão de dias para tê-lo bem mais próximo de mim, espontaneamente coloquei a minha casa à disposição para fazermos o trabalho. Confesso que foi algo instintivo, não sei o que me deu, por isso, que atire a primeira pedra quem nunca fez coisa do gênero.

O que mais havia à minha volta eram pessoas materialistas e consumistas, as pessoas superficiais possuem o nefasto poder de assombrar almas. Nasci e cresci rica, mas isto nem sempre é o paraíso que o mundo fantasia, pois quanto mais dinheiro possuímos, menos amigos verdadeiros temos. O dinheiro dos meus pais fazia com que a maioria das pessoas do Colégio Nobre lidasse comigo de forma diferente, por causa do meu estatuto social e da má interpretação racial que infelizmente dissipa a humanidade. No mundo capitalista em que vivemos, os princípios perdem cada vez mais a sua força costumeira e os valores materiais suplantam os valores morais. O pior é que as pessoas encaram isto de uma forma extremamente natural, é como se o mundo não estivesse a morrer aos poucos.

No seio da minha família, sempre fui filha única e, por este motivo, passar a maior parte do tempo sozinha era algo habitual. Algumas vezes eu ficava com a governanta de casa, a dona Isilda, que muitas vezes fez o papel de minha mãe, devido à ausência constante dos meus pais, que raramente tiveram tempo suficiente para mim. É impossível abordar sobre a minha família, sem antes descrever os meus pais. Meu pai chama-se Mark James Anthony, nascido em Londres, no Reino Unido, é um homem inescrupuloso no que concerne aos negócios, sendo ele um dos maiores accionistas do Angola Shopping Center e dono de outros vários negócios. Mas não me lembro de ter visto o meu pai a gastar somas de dinheiro em vão, dele eu apenas recebi o necessário. E quanto às outras coisas, ele raramente consome bebidas alcoólicas, não fuma cigarros nem charutos, o seu único vício é fazer dinheiro. Já a minha mãe é Rebeca Adriana de Sá Gomes Anthony, uma órfã, que se formou no Reino Unido e se tornou a Directora da faculdade de Economia da Universidade Autónoma de Angola, além disto, ela é parte do grupo composto pelos dez maiores economistas africanos, designados pela União Africana para o estudo de implementação de uma moeda única para a criação de uma poderosa economia africana.

Quanto ao casamento, os meus pais são casados apenas no Registo Civil, porque ambos sempre tiveram crenças religiosas opostas. A minha mãe é uma seguidora do cristianismo e o meu pai considera-se agnóstico por causa do seu amplo conhecimento filosófico e da sua insaciável vontade de aumentar os conhecimentos que o tornavam imune a qualquer dogma religioso. O meu pai dizia: o homem e somente o homem determina o seu destino.

Confesso que era assustador ouvir aquele discurso que confrontava os ensinamentos da minha doutrina religião. Ambos tiveram a sua formação feita na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Como toda a filha, sempre tive a curiosidade de saber como os meus pais se conheceram. A resposta cinge-se em um grande momento do destino, os dois esbarraram-se na entrada da universidade e quando baixaram-se para pegar os seus livros, olharam um para o outro e duas pessoas com propósitos semelhantes tornaram-se namorados e posteriormente meus genitores. 

A minha mãe sempre esteve muito focada em ser uma profissional exemplar, tanto fez, que se tornou uma grande profissional e uma péssima mãe. Maus pais frustram bons filhos, o dinheiro torna-se irrelevante quando não vem acompanhado de amor e carinho. O meu âmago viveu afligido durante anos, as decepções assolavam o meu coração, as minhas mágoas eram enormes. Sempre tive tudo o que as outras adolescentes desejavam, mas o que eu realmente precisava era a atenção e o carinho dos meus pais. Os filhos são capazes de cometer erros que colocam em risco as suas próprias vidas, apenas para chamar a atenção dos pais. É uma chantagem emocional que começa desde a tenra idade, e em alguns casos os danos se tornam irreversíveis na idade adulta. É fulcral que os pais prestem mais atenção aos seus filhos. Os meus pais trabalhavam de uma forma tão excessiva que não tinham tempo para notar o óbvio. Durante muito tempo, a minha vivência foi incompleta por causa da falta da atenção deles, eu sentia-me sozinha e a solidão originava uma carência enorme que acabava comigo aos poucos. O meu pai não esteve comigo quando precisei que ele me ensinasse a andar de bicicleta, a minha mãe nunca prestou atenção em coisas ínfimas como a minha forma de brincar com as minhas bonecas. Ambos não se preocuparam com a educação da minha afectividade, tanto o meu pai como a minha mãe levaram-me para o meu primeiro dia de aulas quase que obrigados. Os meus pais nem sequer preocuparam-se em preparar-me para a fase da adolescência, simplesmente entrei para esta fase e fui vivendo. Eis o teorema da minha família: unidos e extremamente felizes nas luxuosas recepções aos ilustres convidados do meu pai e uma família infeliz assim que os visintantes cruzam a porta da rua.

Para mim a fase da adolescência é uma das principais fases, daquelas que definem a vida de um ser humano. No caso da mulher, é onde a mesma sofre uma das transformações mais importantes de toda a sua vida, com o surgimento da menarca (a primeira menstruação), e dói-me até hoje dizer que foi a dona Isilda que esteve ao meu lado quando eu tive o meu primeiro período. Senti-me muito mal naquela época por ver que ela foi a pessoa que me consciencializou que, a partir daquele momento, eu era quase uma mulher no verdadeiro sentido da palavra. Naquele instante, eu pensei que estava doente por não parar de sangrar e sentir muitas cólicas. Cheguei a pensar que tinha um possível ferimento no íntimo do meu corpo e por isto não parava de sangrar. Vendo toda a aflição que se instaurou em mim, a dona Isilda deu-me um abraço e enxugou as minhas lágrimas. Ganhei alguma calmaria quando ela me disse que aquelas dores no útero eram apenas cólicas menstruais e que aquele sangue era fruto de uma transformação que toda a mulher sofre quando atinge a fase menstrual. As lágrimas fizeram dos meus olhos um rio, era difícil cessar o choro com tanto sangue sobre mim.

A maior parte do meio adolescente já chegou a pensar que a menstruação é sinal de gravidez, isso é uma besteira, embora a realidade indique que este é o pensamento da maioria esmagadora das raparigas que atingem esta fase. A dona Isilda, por momentos, riu-se e disse-me que não era nada daquilo que eu estava a fantasiar, explicando tudo de uma forma tão amável que chegou a acalmar o meu coração. Depois daquele momento desconfortável, o sangue estancou e a dona Isilda pediu-me para sair e ir comprar os absorventes e outras coisas mais. Por outro lado, tinha em mim um receio enorme de estar só, então pedi-lhe para que não me deixasse só em momento algum. Dei-lhe a ideia de avisar a minha mãe para que ela voltasse a casa urgentemente e só depois disto ela sairia do trabalho. Pode parecer ingrato da minha parte, mas é da minha mãe que eu precisava. A minha mãe não apareceu, alegando estar em uma importante reunião de trabalho. O bom é que em momento algum a dona Isilda largou a minha mão. Horas depois, a minha mãe chegou a casa com alguns absorventes, mas o diálogo imprescindível sobre o surgimento do período menstrual não aconteceu. Com o tempo, fui aprendendo a utilizar o meu calendário íntimo. A minha mãe tinha o dever de começar a falar comigo sobre a sexualidade, mas não o fez.

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