A vida é realmente feita de acasos. Tive a prova deste adágio quando, no meu primeiro dia de aulas no Colégio Nobre, vi o Márcio, o rapaz que conheci no Talatona, sentado na minha sala de aulas. O nosso primeiro contacto foi um simples e tímido "oi", movido pela minha timidez, timidez esta que surgia apenas quando me deparava com ele. O Colégio Nobre era o meio acadêmico mais frequentado pela alta sociedade angolana. Em outras palavras, é lá onde estudavam os riquinhos da cidade. Um facto verídico que a maioria dos pais desconhece é que escolas deste tipo costumam ser um poço de influências negativas para os jovens.
Os ricos do meu país investem em construções de escolas privadas caríssimas, com mensalidades cinco vezes superiores ao salário mínimo de um país rico e pobre instituicionalmente. O ensino nestas escolas é de qualidade, mas a futilidade mora nelas também, onde muitos vão apenas para cumprir formalidades, e outros vão para exibir as suas roupas novas. Alguns dos alunos bolseiros que estudavam no Colégio Nobre com atestados de insuficiência econômica perdiam-se seguindo os alunos pertencentes à burguesia do país, e uma pequena parte dos alunos, vista como a minoria, estudava no verdadeiro sentido da palavra. Assim são feitas as escolas em Angola. É algo que quase ninguém presta atenção, porque quase ninguém vê, as coisas importantes são irrelevantes para o mundo actual.
A futilidade no Colégio Nobre sempre foi excessiva, e no meio desta imensidão de futilidades também havia espaço para o amor. Por falar em amor... as coisas com o Márcio começaram a fazer cada vez mais sentido quando calhámos no mesmo grupo de trabalho da disciplina de História, pelo facto de os nossos números serem próximos. Assim que soube que o Márcio faria parte do meu grupo, os batimentos do meu coração voltaram a acelerar daquela forma estranha. Era uma questão de dias para tê-lo bem mais próximo de mim, espontaneamente coloquei a minha casa à disposição para fazermos o trabalho. Confesso que foi algo instintivo, não sei o que me deu, por isso, que atire a primeira pedra quem nunca fez coisa do gênero.
O que mais havia à minha volta eram pessoas materialistas e consumistas, as pessoas superficiais possuem o nefasto poder de assombrar almas. Nasci e cresci rica, mas isto nem sempre é o paraíso que o mundo fantasia, pois quanto mais dinheiro possuímos, menos amigos verdadeiros temos. O dinheiro dos meus pais fazia com que a maioria das pessoas do Colégio Nobre lidasse comigo de forma diferente, por causa do meu estatuto social e da má interpretação racial que infelizmente dissipa a humanidade. No mundo capitalista em que vivemos, os princípios perdem cada vez mais a sua força costumeira e os valores materiais suplantam os valores morais. O pior é que as pessoas encaram isto de uma forma extremamente natural, é como se o mundo não estivesse a morrer aos poucos.
No seio da minha família, sempre fui filha única e, por este motivo, passar a maior parte do tempo sozinha era algo habitual. Algumas vezes eu ficava com a governanta de casa, a dona Isilda, que muitas vezes fez o papel de minha mãe, devido à ausência constante dos meus pais, que raramente tiveram tempo suficiente para mim. É impossível abordar sobre a minha família, sem antes descrever os meus pais. Meu pai chama-se Mark James Anthony, nascido em Londres, no Reino Unido, é um homem inescrupuloso no que concerne aos negócios, sendo ele um dos maiores accionistas do Angola Shopping Center e dono de outros vários negócios. Mas não me lembro de ter visto o meu pai a gastar somas de dinheiro em vão, dele eu apenas recebi o necessário. E quanto às outras coisas, ele raramente consome bebidas alcoólicas, não fuma cigarros nem charutos, o seu único vício é fazer dinheiro. Já a minha mãe é Rebeca Adriana de Sá Gomes Anthony, uma órfã, que se formou no Reino Unido e se tornou a Directora da faculdade de Economia da Universidade Autónoma de Angola, além disto, ela é parte do grupo composto pelos dez maiores economistas africanos, designados pela União Africana para o estudo de implementação de uma moeda única para a criação de uma poderosa economia africana.
Quanto ao casamento, os meus pais são casados apenas no Registo Civil, porque ambos sempre tiveram crenças religiosas opostas. A minha mãe é uma seguidora do cristianismo e o meu pai considera-se agnóstico por causa do seu amplo conhecimento filosófico e da sua insaciável vontade de aumentar os conhecimentos que o tornavam imune a qualquer dogma religioso. O meu pai dizia: o homem e somente o homem determina o seu destino.
Confesso que era assustador ouvir aquele discurso que confrontava os ensinamentos da minha doutrina religião. Ambos tiveram a sua formação feita na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Como toda a filha, sempre tive a curiosidade de saber como os meus pais se conheceram. A resposta cinge-se em um grande momento do destino, os dois esbarraram-se na entrada da universidade e quando baixaram-se para pegar os seus livros, olharam um para o outro e duas pessoas com propósitos semelhantes tornaram-se namorados e posteriormente meus genitores.
A minha mãe sempre esteve muito focada em ser uma profissional exemplar, tanto fez, que se tornou uma grande profissional e uma péssima mãe. Maus pais frustram bons filhos, o dinheiro torna-se irrelevante quando não vem acompanhado de amor e carinho. O meu âmago viveu afligido durante anos, as decepções assolavam o meu coração, as minhas mágoas eram enormes. Sempre tive tudo o que as outras adolescentes desejavam, mas o que eu realmente precisava era a atenção e o carinho dos meus pais. Os filhos são capazes de cometer erros que colocam em risco as suas próprias vidas, apenas para chamar a atenção dos pais. É uma chantagem emocional que começa desde a tenra idade, e em alguns casos os danos se tornam irreversíveis na idade adulta. É fulcral que os pais prestem mais atenção aos seus filhos. Os meus pais trabalhavam de uma forma tão excessiva que não tinham tempo para notar o óbvio. Durante muito tempo, a minha vivência foi incompleta por causa da falta da atenção deles, eu sentia-me sozinha e a solidão originava uma carência enorme que acabava comigo aos poucos. O meu pai não esteve comigo quando precisei que ele me ensinasse a andar de bicicleta, a minha mãe nunca prestou atenção em coisas ínfimas como a minha forma de brincar com as minhas bonecas. Ambos não se preocuparam com a educação da minha afectividade, tanto o meu pai como a minha mãe levaram-me para o meu primeiro dia de aulas quase que obrigados. Os meus pais nem sequer preocuparam-se em preparar-me para a fase da adolescência, simplesmente entrei para esta fase e fui vivendo. Eis o teorema da minha família: unidos e extremamente felizes nas luxuosas recepções aos ilustres convidados do meu pai e uma família infeliz assim que os visintantes cruzam a porta da rua.
Para mim a fase da adolescência é uma das principais fases, daquelas que definem a vida de um ser humano. No caso da mulher, é onde a mesma sofre uma das transformações mais importantes de toda a sua vida, com o surgimento da menarca (a primeira menstruação), e dói-me até hoje dizer que foi a dona Isilda que esteve ao meu lado quando eu tive o meu primeiro período. Senti-me muito mal naquela época por ver que ela foi a pessoa que me consciencializou que, a partir daquele momento, eu era quase uma mulher no verdadeiro sentido da palavra. Naquele instante, eu pensei que estava doente por não parar de sangrar e sentir muitas cólicas. Cheguei a pensar que tinha um possível ferimento no íntimo do meu corpo e por isto não parava de sangrar. Vendo toda a aflição que se instaurou em mim, a dona Isilda deu-me um abraço e enxugou as minhas lágrimas. Ganhei alguma calmaria quando ela me disse que aquelas dores no útero eram apenas cólicas menstruais e que aquele sangue era fruto de uma transformação que toda a mulher sofre quando atinge a fase menstrual. As lágrimas fizeram dos meus olhos um rio, era difícil cessar o choro com tanto sangue sobre mim.
A maior parte do meio adolescente já chegou a pensar que a menstruação é sinal de gravidez, isso é uma besteira, embora a realidade indique que este é o pensamento da maioria esmagadora das raparigas que atingem esta fase. A dona Isilda, por momentos, riu-se e disse-me que não era nada daquilo que eu estava a fantasiar, explicando tudo de uma forma tão amável que chegou a acalmar o meu coração. Depois daquele momento desconfortável, o sangue estancou e a dona Isilda pediu-me para sair e ir comprar os absorventes e outras coisas mais. Por outro lado, tinha em mim um receio enorme de estar só, então pedi-lhe para que não me deixasse só em momento algum. Dei-lhe a ideia de avisar a minha mãe para que ela voltasse a casa urgentemente e só depois disto ela sairia do trabalho. Pode parecer ingrato da minha parte, mas é da minha mãe que eu precisava. A minha mãe não apareceu, alegando estar em uma importante reunião de trabalho. O bom é que em momento algum a dona Isilda largou a minha mão. Horas depois, a minha mãe chegou a casa com alguns absorventes, mas o diálogo imprescindível sobre o surgimento do período menstrual não aconteceu. Com o tempo, fui aprendendo a utilizar o meu calendário íntimo. A minha mãe tinha o dever de começar a falar comigo sobre a sexualidade, mas não o fez.
Na última sexta-feira do mês de Fevereiro daquele ano, lembro que terminamos as aulas cedo e fomos todos para a minha casa fazer o trabalho da disciplina de História. Assim que chegamos, quase todos espantaram-se com a nossa residência, quando viram obras de arte caríssimas, africanas e ocidentais, mármore por toda casa e todo o resto que compõe uma vivenda luxuosa. Todos pareciam maravilhados, excepto o Márcio que é um fidalgo nato.O término do trabalho foi acompanhado de um delicioso bolo de chocolate, daqueles que só a dona Isilda sabe fazer. Todos foram-se embora, lembro que apenas o Márcio permaneceu em minha casa, por ter ido ao quarto de banho. Minutos depois, o destino e a vida decidiram aplicar a lei do acaso, ou seja, a famosa coincidência. A dona Isilda estava na área de serviço e eu estava na sala de estar no momento em que o Márcio saiu do recinto e perguntou-me se todos já se tinham ido embora. Eu respondi que sim, sem olhar nos seus olhos, eu tentava disfar
O sono tardava a aparecer. Deitada na cama, eu rolava de um lado para o outro naquela noite cinzenta. Lembro, como se fosse hoje, que um sentimento de desconsideração se apoderou de mim e deixou-me chateada com o mundo. Parecia que o Márcio esquecera o epicentro do mês de Junho, o relógio marcava duas horas da manhã e até àquela hora da matina o meu telemóvel não tocava. Junho é o mês em que se assinala uma das datas mais importantes da minha vida, o dia do meu aniversário. Os meus dezassete anos de idade acabavam de ser atingidos e faltava-me apenas um ano para atingir a maioridade aos olhos da lei angolana.Desconheço o nativo angolano que não aprecie um bom convívio e os britânicos não ficam atrás, porém, não perspectivei comemoração alguma. Nunca fui boa a celebrar aniversários. Recebi imensas ligações, começando pela chamada dos meus avôs, que acabaram por completar o meu dia. Eles mostraram o seu amor por mim e desejaram-me as melhores coisas que existem neste mundo: paz
A minha insistência colocou o gráfico da nossa relação em declínio e, lentamente, as coisas começaram a se degradar. O meu namorado não prestava atenção em mim. Na escola, já nem ficávamos juntos a toda hora como outrora a gente viveu, o meu pobre coração entrou em desespero e aos poucos fui consumida por este sentimento. Do dia para a noite, como da água para o vinho, tudo mudou e comecei uma luta contra uma correnteza que me conduzia para cada vez mais longe do Márcio, dia após dia. Na tentativa de melhorar a situação, decidi tomar uma atitude e fiz-lhe algumas perguntas por mensagem:- Meu amor, por que tudo isso? O que se passa? Estás a gostar de outra rapariga?Com tamanho desamor, o Márcio respondeu à minha mensagem:- Estou um tanto quanto cansado do nosso relacionamento e acho melhor terminarmos ou darmos um tempo.Por mim — a frase dar um tempo — é o mesmo que terminar o relacionamento. Quando as coisas correm bem na
Sábado.Assim que despertei, a minha mãe entrou no meu quarto e de imediato convidou-me para irmos às compras. Achei estranho, primeiro porque ela nunca me convidava para sair e segundo porque não tínhamos o vínculo de amizade entre mãe e filha. Mesmo assim, concordei por sentir que a minha mãe quis arranjar uma forma de compensar o tempo perdido.Cuidei da minha higiene pessoal de forma demorada, fiquei presa ao espelho durante minutos e minutos a olhar para o meu reflexo, não conseguia parar de pensar em tudo o que havia acontecido e, de hora em hora, perguntava a mim mesma se aguentaria continuar a suportar.- Marie, despacha-te! – gritava a minha mãe.- Já vou, mãe! Dá-me só mais um minuto.Passaram-se alguns minutos, coloquei a roupa e encontrei-a na cozinha. Estava sem fome, mas a minha mãe exigiu que eu comesse uma fruta. A fome se vai quando a tristeza invade a alma e o coração.No Angola Shopping Center,
Chegara o dia de ver os resultados finais. Muito cedo fui despertada pela minha mãe, larguei o conforto da minha cama e em seguida tratei da minha higiene pessoal. Não tive tempo de me alimentar, de tão nervosa que estava. Com o senhor Jacinto ao volante, dirigimo-nos ao Colégio Nobre o mais rápido que podíamos e, chegando à escola, saudei todo mundo.- Bom dia! Desculpe por lhe interromper, tia, vim cá ver os meus resultados finais.- As pautas estão no andar de cima, menina, sou senhora secretária e não sua tia.- Ok. Peço desculpas, senhora secretária, não foi minha intenção faltar-lhe com o respeito.Tratei a funcionária da Secretaria por tia, porque a minha mãe sempre me disse que é um bom costume angolano respeitar as pessoas mais velhas, sendo parente ou não, desde que seja uma pessoa mais velha devemos tratar por tio/a e fui maltratada por ser educada.Ansiosa e bastante receosa, vi o meu nome e constatei que fui ao recurso. I
Terça-feira.Um novo dia e uma nova motivação. Fazer bem o último exame era o meu principal objectivo do dia. A determinação de transitar e atingir as novas metas era o que me deixava motivada. Despertei ao meio da madrugada, o enorme medo de desapontar os meus pais assombrava-me a cada minuto. Agarrei-me aos cadernos e apenas deixei de olhar para a matéria quando já estava quase a atrasar-me para o exame. Fiz a higiene pessoal. Rapidamente desci, comi apenas um pedaço de bolo e fui endiabrada para a escola.- Bom dia, senhor Jacinto! Como está? - Estou muito bem. E a menina Marie, como está?- Estou bem e totalmente pronta para a prova. Podemos ir. Por favor, acelere. Não me posso atrasar.- Está bem, menina.Mesmo no carro, eu não parava de ler a matéria de Geografia, a enorme pressão que estava sobre mim fazia-me ser dura comigo mesma. Eu não tinha um minuto de descanso sequer, pois aquele era o resultado da minha
No dia seguinte, acordei com uma excelente disposição. Abri os olhos da Evandra com o intuito de tirar-lhe o sono, mas mesmo assim ela não acordava. Usei um dos vários métodos para acordar alguém, e gritei bem alto.- Vá, acorda, dorminhoca!Ela não se demorou, acordou e atirou-me com um travesseiro. A seguir, começamos uma guerra de travesseiros que nos tornava cada vez mais crianças. Até a minha mãe subir para o meu quarto e gritar bem alto.- Meninas, parem já com isto! Vocês são crescidas demais para este tipo de brincadeiras.As palavras da minha mãe deram-me a prova de que a mente da maioria dos pais é demasiadamente complexa, pois quando as crianças agem como adultas, os pais reclamam e alegam precocidade, e quando finalmente agem como crianças, também reclamam. Ficamos em silêncio na presença da minha mãe e, quando ela saiu, matamo-nos de rir. As amizades femininas são tão íntimas que a minha melhor amiga e eu tomávamos banho jun
20 de Dezembro, o dia da partida.Nos dias anteriores, passei quase todas às noites em branco a estudar imenso para os exames, e na noite anterior o sono perdera moradia na minha cama por causa da minha ansiedade de viajar o quanto antes. Saímos de casa com o senhor Jacinto rumo ao Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro. Lembro que ao longo do trajecto eu me despedia da minha Kianda aos poucos. No Aeroporto, a ansiedade continuava a exercer um tamanho domínio sobre mim, enquanto aguardávamos pela hora de partida do nosso voo. De hora em hora, consultava o relógio e contava os minutos para a nossa viagem. Três horas antes, já estávamos no aeroporto, porque a pontualidade é uma das principais aliadas do meu pai. Passadas algumas horas, ouvimos a chamada de embarque para o nosso voo, porém não adiantava estar mais ansiosa, pois muitos são os quilômetros que separam Luanda de Londres.8 horas de viagem, suscitaram um enorme cansaço em mim, adormeci durante a viagem e des