O sono tardava a aparecer. Deitada na cama, eu rolava de um lado para o outro naquela noite cinzenta. Lembro, como se fosse hoje, que um sentimento de desconsideração se apoderou de mim e deixou-me chateada com o mundo. Parecia que o Márcio esquecera o epicentro do mês de Junho, o relógio marcava duas horas da manhã e até àquela hora da matina o meu telemóvel não tocava. Junho é o mês em que se assinala uma das datas mais importantes da minha vida, o dia do meu aniversário. Os meus dezassete anos de idade acabavam de ser atingidos e faltava-me apenas um ano para atingir a maioridade aos olhos da lei angolana.
Desconheço o nativo angolano que não aprecie um bom convívio e os britânicos não ficam atrás, porém, não perspectivei comemoração alguma. Nunca fui boa a celebrar aniversários. Recebi imensas ligações, começando pela chamada dos meus avôs, que acabaram por completar o meu dia. Eles mostraram o seu amor por mim e desejaram-me as melhores coisas que existem neste mundo: paz, amor e felicidade. O único problema do meu dia era a angústia que surgia no meu coração quando os meus avôs me diziam que faltava apenas um ano para realizar a minha mudança para o Reino Unido. O meu avô falava sempre com os meus pais. Já a minha avó, apenas com o meu pai, que estava na Inglaterra com eles a tratar de negócios. E assim o meu pai não participou em mais um dos meus aniversários. Sempre ouvi que as mulheres se dão melhor com os pais e não com as mães e, só para provar que esta teoria é verídica, eu era a admiradora número um do meu pai, ainda que ele fosse tão ausente.
A minha mãe nem parecia querer ter uma filha. A maioria esmagadora do universo feminino sonha em ter uma filha, mas ela parecia ser o oposto. Em pleno dia do meu aniversário, ela apenas preocupava-se com a sua imagem e com o seu trabalho. Os meus pais eram autênticos narcisistas. Triste, não comemorei o meu próprio aniversário, estava cansada de comemorar aniversários sob tanta falsidade, estava farta de simular sorrisos para esconder os problemas que aterrorizavam o íntimo da minha família. O melhor mesmo foi ver que o meu amor não se esqueceu do meu aniversário, pois foi o primeiro a dar-me um presente. Todo mundo conseguia ver o quanto ele fazia-me feliz. É algo de outro mundo quando encontramos alguém que, além de nos fazer bem, dá-nos toda a atenção desejada. O Márcio conversou com a Evandra e ela deu-lhe a melhor de todas as ajudas. Ele veio acompanhado de uma caixa dourada que enche os olhos ao primeiro olhar, dentro dela estava um lindo vestido acompanhado de um urso enorme. Algo aparentemente clichê fez-me acreditar que tinha o namorado mais romântico do mundo. Sem palavras, senti-me a Cinderela sem os sapatos de cristal e fiquei com a sensação de ter encontrado o meu "príncipe encantado" sobre a árdua realidade.
Tudo fiz, tudo esperei em nome da paixão, tanto que em momento algum esperei enfrentar os sinais de escuridão no amor. Na vida, o difícil é admitir que no amor as coisas não são apenas rosas, sendo que todos nós temos de passar pelo pior para chegar ao melhor. O amor é feito de altos e baixos e aproximava-se a minha hora de vivenciar o pior no ciclo do amor. Quanto mais passava o tempo, mais o meu sentimento aumentava e esse sentimento fazia-me querer a atenção do Márcio a todo o instante. É confortável falar com a pessoa que faz bem ao nosso coração. Tudo em nós já foi tão recíproco, que os nossos corações completavam um ao outro e aquele perfeito encaixe completava a minha vida.
Os sinais de escuridão no nosso relacionamento surgiram quando, infelizmente, o Márcio começou a sentir-se sufocado. Era cedo demais para perceber que muitos dos relacionamentos não resultam por causa da cobrança excessiva que fazemos uns aos outros. No fundo, nós esperamos que o parceiro seja uma cópia exacta dos nossos anseios e, principalmente, das nossas necessidades emocionais. As minhas atitudes fragilizavam a nossa relação, deixei o Márcio sob pressão e, sem perceber, aos poucos o sufoquei. Existem relacionamentos em que o amor age a favor dos dois, e existem outros tantos em que aquele que mais demonstrar os seus sentimentos será o mais desgastado da relação. Um relacionamento a dois jamais pode ser singular, pois o amor exige total dedicação e força de vontade de ambas as partes.
O Márcio começou a afastar-se de mim quando percebeu que dificilmente daríamos o próximo passo, que era ter-me na cama. Não era a hora certa para mim, não podia perder a minha virgindade em torno de tanta insegurança, o meu maior desejo era perder a minha virgindade na minha noite de núpcias, tal como mandam as leis de Deus. Sem explicação alguma, começamos a viver mudanças e apenas eu mandava mensagens enquanto ele limitava-se a encurtar o máximo possível as nossas conversas:
- Bom dia, meu amor!
- Bom dia, Marie!
A minha imaturidade impossibilitava toda e qualquer compreensão da minha própria situação. Já havíamos passado da fase dos sinais de fogo, estávamos à beira de entrar para os sinais de escuridão do relacionamento e estes vêm acompanhados dos primeiros sintomas do desgaste de um relacionamento amoroso. Admito que não tinha o amor-próprio que me era exigido naquela situação, não tinha a maturidade suficiente para amar a mim mesma antes e esperava ser amada. Amar por dois, é realmente possível e espiritualmente devastador. Todas as vezes que amei por dois, sofri uma violenta queda e piorei a minha instabalidade emocional. O Márcio aos poucos se cansava de mim, revestida de ingenuidade continuei a enviar mensagens para ele, ainda que me deparasse com o seu desinteresse. A osxcilação do amor-próprio faz-nos pensar que o amor tende a não ser recíproco nas demasiadas vezes que o buscamos e acabamos por acreditar que devemos cultivar a arte da conquista. Saiba que são raras as vezes em que a arte da conquista resulta, o amor não é planeado, o sentimento simplesmente acontece. O melhor para mim seria cessar a minha insistência mas, no entanto, o apego dificilmente nos permite parar de insistir naquilo que nos magoa. Estar apegada, é mergulhar em um ciclo vicioso de mediocridade sentimental e receber constantes migalhas.
A minha insistência colocou o gráfico da nossa relação em declínio e, lentamente, as coisas começaram a se degradar. O meu namorado não prestava atenção em mim. Na escola, já nem ficávamos juntos a toda hora como outrora a gente viveu, o meu pobre coração entrou em desespero e aos poucos fui consumida por este sentimento. Do dia para a noite, como da água para o vinho, tudo mudou e comecei uma luta contra uma correnteza que me conduzia para cada vez mais longe do Márcio, dia após dia. Na tentativa de melhorar a situação, decidi tomar uma atitude e fiz-lhe algumas perguntas por mensagem:- Meu amor, por que tudo isso? O que se passa? Estás a gostar de outra rapariga?Com tamanho desamor, o Márcio respondeu à minha mensagem:- Estou um tanto quanto cansado do nosso relacionamento e acho melhor terminarmos ou darmos um tempo.Por mim — a frase dar um tempo — é o mesmo que terminar o relacionamento. Quando as coisas correm bem na
Sábado.Assim que despertei, a minha mãe entrou no meu quarto e de imediato convidou-me para irmos às compras. Achei estranho, primeiro porque ela nunca me convidava para sair e segundo porque não tínhamos o vínculo de amizade entre mãe e filha. Mesmo assim, concordei por sentir que a minha mãe quis arranjar uma forma de compensar o tempo perdido.Cuidei da minha higiene pessoal de forma demorada, fiquei presa ao espelho durante minutos e minutos a olhar para o meu reflexo, não conseguia parar de pensar em tudo o que havia acontecido e, de hora em hora, perguntava a mim mesma se aguentaria continuar a suportar.- Marie, despacha-te! – gritava a minha mãe.- Já vou, mãe! Dá-me só mais um minuto.Passaram-se alguns minutos, coloquei a roupa e encontrei-a na cozinha. Estava sem fome, mas a minha mãe exigiu que eu comesse uma fruta. A fome se vai quando a tristeza invade a alma e o coração.No Angola Shopping Center,
Chegara o dia de ver os resultados finais. Muito cedo fui despertada pela minha mãe, larguei o conforto da minha cama e em seguida tratei da minha higiene pessoal. Não tive tempo de me alimentar, de tão nervosa que estava. Com o senhor Jacinto ao volante, dirigimo-nos ao Colégio Nobre o mais rápido que podíamos e, chegando à escola, saudei todo mundo.- Bom dia! Desculpe por lhe interromper, tia, vim cá ver os meus resultados finais.- As pautas estão no andar de cima, menina, sou senhora secretária e não sua tia.- Ok. Peço desculpas, senhora secretária, não foi minha intenção faltar-lhe com o respeito.Tratei a funcionária da Secretaria por tia, porque a minha mãe sempre me disse que é um bom costume angolano respeitar as pessoas mais velhas, sendo parente ou não, desde que seja uma pessoa mais velha devemos tratar por tio/a e fui maltratada por ser educada.Ansiosa e bastante receosa, vi o meu nome e constatei que fui ao recurso. I
Terça-feira.Um novo dia e uma nova motivação. Fazer bem o último exame era o meu principal objectivo do dia. A determinação de transitar e atingir as novas metas era o que me deixava motivada. Despertei ao meio da madrugada, o enorme medo de desapontar os meus pais assombrava-me a cada minuto. Agarrei-me aos cadernos e apenas deixei de olhar para a matéria quando já estava quase a atrasar-me para o exame. Fiz a higiene pessoal. Rapidamente desci, comi apenas um pedaço de bolo e fui endiabrada para a escola.- Bom dia, senhor Jacinto! Como está? - Estou muito bem. E a menina Marie, como está?- Estou bem e totalmente pronta para a prova. Podemos ir. Por favor, acelere. Não me posso atrasar.- Está bem, menina.Mesmo no carro, eu não parava de ler a matéria de Geografia, a enorme pressão que estava sobre mim fazia-me ser dura comigo mesma. Eu não tinha um minuto de descanso sequer, pois aquele era o resultado da minha
No dia seguinte, acordei com uma excelente disposição. Abri os olhos da Evandra com o intuito de tirar-lhe o sono, mas mesmo assim ela não acordava. Usei um dos vários métodos para acordar alguém, e gritei bem alto.- Vá, acorda, dorminhoca!Ela não se demorou, acordou e atirou-me com um travesseiro. A seguir, começamos uma guerra de travesseiros que nos tornava cada vez mais crianças. Até a minha mãe subir para o meu quarto e gritar bem alto.- Meninas, parem já com isto! Vocês são crescidas demais para este tipo de brincadeiras.As palavras da minha mãe deram-me a prova de que a mente da maioria dos pais é demasiadamente complexa, pois quando as crianças agem como adultas, os pais reclamam e alegam precocidade, e quando finalmente agem como crianças, também reclamam. Ficamos em silêncio na presença da minha mãe e, quando ela saiu, matamo-nos de rir. As amizades femininas são tão íntimas que a minha melhor amiga e eu tomávamos banho jun
20 de Dezembro, o dia da partida.Nos dias anteriores, passei quase todas às noites em branco a estudar imenso para os exames, e na noite anterior o sono perdera moradia na minha cama por causa da minha ansiedade de viajar o quanto antes. Saímos de casa com o senhor Jacinto rumo ao Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro. Lembro que ao longo do trajecto eu me despedia da minha Kianda aos poucos. No Aeroporto, a ansiedade continuava a exercer um tamanho domínio sobre mim, enquanto aguardávamos pela hora de partida do nosso voo. De hora em hora, consultava o relógio e contava os minutos para a nossa viagem. Três horas antes, já estávamos no aeroporto, porque a pontualidade é uma das principais aliadas do meu pai. Passadas algumas horas, ouvimos a chamada de embarque para o nosso voo, porém não adiantava estar mais ansiosa, pois muitos são os quilômetros que separam Luanda de Londres.8 horas de viagem, suscitaram um enorme cansaço em mim, adormeci durante a viagem e des
Dia 22 de Dezembro.Em tão pouco tempo fiquei gripada e enfebrada, pela mudança de clima. Por causa dessa congestão nas minhas vias respiratórias, a minha avó mimava-me cada vez mais. Acordei, e ela entrou logo cedo no meu quarto com o convite de irmos aproveitar o dia. Sem precisar da ajuda de um analista, aos poucos os dois implantavam em mim uma reeducação afectiva. Arrumei-me o mais rápido possível, eu estava desejosa por sair com a minha avó.A conversa da noite passada surtiu um efeito positivo em todos nós, excepto aquela notícia da doença do meu avô. Mesmo assim, a minha boa disposição era visível, estar positivo atrai coisas positivas e a minha família precisava estar positiva. Cheguei à mesa e encontrei um pequeno-almoço reforçado: ovos, bacon, tomate, salsichas e feijão com molho. Parecia tudo muito gorduroso, mas não dava para manter a forma, porque a minha avó acordou cedo e fez tudo com muito amor. O meu avô estava no jardim a conversar com o meu pai, e a m
Dia 24 de Dezembro, véspera de Natal.Mais um dia! Eu acordei, abri as janelas do meu quarto e dei de cara com um dia ensolarado, quase que pela primeira vez. Faziam dias que eu não olhava para o sol ao acordar.Passei quase todo o dia trancada no quarto, por tédio e inércia. À tarde desci para almoçar e retornei ao quarto, é estranho, mas existem dias em que abunda esta vontade. Tudo parece perder o sentido, é como se nada me cativasse lá fora. E ficar no meu quarto, no meu canto, a ouvir música é uma das minhas terapias para superar os dias cinzentos.Julgo que a paciência é mais do que necessária na compreenção dos recém adultos do mundo actual. No meu caso, eu trocava tudo para ficar no meu quarto, evitava questionamentos, gostava de estar no meu universo paralelo. O mais difícil de compreender é que