Na última sexta-feira do mês de Fevereiro daquele ano, lembro que terminamos as aulas cedo e fomos todos para a minha casa fazer o trabalho da disciplina de História. Assim que chegamos, quase todos espantaram-se com a nossa residência, quando viram obras de arte caríssimas, africanas e ocidentais, mármore por toda casa e todo o resto que compõe uma vivenda luxuosa. Todos pareciam maravilhados, excepto o Márcio que é um fidalgo nato.
O término do trabalho foi acompanhado de um delicioso bolo de chocolate, daqueles que só a dona Isilda sabe fazer. Todos foram-se embora, lembro que apenas o Márcio permaneceu em minha casa, por ter ido ao quarto de banho. Minutos depois, o destino e a vida decidiram aplicar a lei do acaso, ou seja, a famosa coincidência. A dona Isilda estava na área de serviço e eu estava na sala de estar no momento em que o Márcio saiu do recinto e perguntou-me se todos já se tinham ido embora. Eu respondi que sim, sem olhar nos seus olhos, eu tentava disfarçar toda a tristeza que dissipava o meu âmago. O que nós não conseguimos compreender é que quanto mais tentamos ocultar a tristeza, mais as pessoas percebem que estamos tristes, e com o Márcio não foi diferente.Como? Eu não sei, mas o Márcio percebeu que a tristeza fazia parte do meu dia. De um jeito carinhoso e protector, ele perguntou-me o motivo do meu semblante cabisbaixo. Não passava pela minha mente dizer-lhe o motivo, ainda assim, ele olhou para mim e limpou a lágrima que estava no canto do meu olho.
– Marie, eu sei que não somos bons amigos – disse ele. - Mas mesmo consciente disto eu quero poder ajudar em seja lá o que for que esteja a acontecer. Estarei ao teu lado para o que tu precisares.Pela primeira vez, senti-me confortável com ele, foi a primeira vez que não implicamos um com o outro e, aos poucos, eu começava a notar que no fundo o ódio excessivo tinha uma explicação. A hora já começava a tardar, então tive de acompanhá-lo até à porta. No momento da despedida, um lado meu não quis que ele fosse embora e acho que a mente oposta também pensava o mesmo. Parecíamos estar em uma sintonia tão profunda, que não conseguíamos parar de olhar um para o outro, e quando era para ele dar-me um beijo no rosto, fechei os olhos e senti os meus lábios a serem beijados pelos lábios dele. Mulher alguma resiste a um beijo roubado. Chovia lá fora durante o acontecimento do meu primeiro beijo. Foi um momento único e marcante.Naquele exacto momento, senti que tudo girava à volta de nós, tudo estava perfeito até a dona Isilda sair e apanhar-nos em flagrante. Aproveitei-me do seu enorme carinho por mim e fiz-lhe prometer que ela não contaria nada para os meus pais. É paradoxal, mas ela deveria ter contado, talvez aquele facto fosse uma porta para o imprescindível diálogo sobre a sexualidade.
Antes que o sono batesse à minha porta, abri o meu diário e escrevi sobre o meu primeiro beijo:
Beijar pela primeira vez é uma sensação inesquecível.
Viajei para o mundo da lua, quando senti os lábios do Márcio nos meus. Com o passar do tempo, e com as coisas que temos estado a viver, o dono deste beijo está a tornar-se no único motivo do meu sorriso e na minha luz nas horas escuras.
Tive um final de semana recheado de pensamentos românticos, o amor definitivamente faz-nos ver o céu cor-de-rosa. Uma nova aurora surgiu, mal consegui pegar no sono naquela madrugada, a imagem do Márcio não saia dos meus pensamentos, lembro que dormi muito pouco e com alguma surpesa levantei cedo da cama para encarar o início de mais uma semana laboral de uma forma diferente, sendo que sempre fui do tipo de mulher que odeia as segundas-feiras, pois, a indisposição tomava conta de mim quando pensava em assistir às aulas e aturar as demais chatices do dia-a-dia. Fui ao encontro do meu motorista, o senhor Jacinto, que estava à minha espera no carro, como era habitual. O anormal é que eu estava tão feliz que nem parecia ser aquela segunda-feira em que normalmente eu acordava indisposta. O facto é que aquela segunda-feira foi diferente e muito especial, é que nada parecia capaz de alterar o meu ânimo, emigrei para o mundo da lua e de lá ninguém me podia tirar, era isso o que eu pensava na altura.
Ninguém podia estragar o meu conto de fadas, que ganhou forma quando cheguei ao colégio e vi o Márcio na sala, me aprumei especialmente para ele e o meu sorriso estava radiante de tão feliz que eu me sentia, mas fiquei triste em instantes, porque ele não me fez elogio algum. Os homens quase nunca reparam que as mulheres se tornam mais vaidosas quando estão apaixonadas por eles, é que um elogio basta para que a mulher se sinta a mais desejada de todas.
Depois das aulas, ficamos no refeitório, lá reparei que os nossos gostos musicais eram quase idênticos. E, em um clima romântico, descobrimos a particularidade de ambos sermos fãs daquela que era a minha banda favorita antes de ser desfeita, os mexicanos Rebeldes, todos achavam as suas canções românticas demais, mas, tal como eu, o Márcio era um grande fã deles. Tudo parecia um sonho que parecia não ter fim, quando ele me pediu para fechar os olhos e ofereceu-me uma rosa assim que os abri. Foi lindo quando olhamos olhos nos olhos, porém, infelizmente, não podíamos dar um outro beijo naquele instante, nenhum de nós quis arriscar uma suspensão. Confesso que no fundo eu estava desejosa por voltar a sentir o toque dos seus lábios nos meus, mas tive de conter os meus anseios. Sou uma mulher à moda antiga e acredito que uma mulher não deve demonstrar que quer um beijo por mais que o deseje. Os homens confundem facilmente as coisas, o pedido de um beijo por parte da mulher pode levar um homem a pensar horrores sobre a sua conduta, como também pode ser relativo, porém levo em conta que o mundo moderno é um mundo desrespeitoso na maioria das vezes. Seria sublime se o coração fosse facilmente suplantado pela razão, a realidade mesmo é que o coração quando quer não nos deixa em paz, por isso nós decidimos arriscar e fazer aquilo que o coração pedia tão intensamente, que era dar um beijo.
É algo especial quando vivemos uma paixão daquelas que deixam o coração a 320 km/hora como um veloz Lamborghini, que deixa as pernas trêmulas com a sua adrenalina. Mudei-me para as nuvens, pois parecia que aquele momento iria eternizar, e a partir daí comecei a acreditar que seríamos apenas nós dois contra o mundo
O sono tardava a aparecer. Deitada na cama, eu rolava de um lado para o outro naquela noite cinzenta. Lembro, como se fosse hoje, que um sentimento de desconsideração se apoderou de mim e deixou-me chateada com o mundo. Parecia que o Márcio esquecera o epicentro do mês de Junho, o relógio marcava duas horas da manhã e até àquela hora da matina o meu telemóvel não tocava. Junho é o mês em que se assinala uma das datas mais importantes da minha vida, o dia do meu aniversário. Os meus dezassete anos de idade acabavam de ser atingidos e faltava-me apenas um ano para atingir a maioridade aos olhos da lei angolana.Desconheço o nativo angolano que não aprecie um bom convívio e os britânicos não ficam atrás, porém, não perspectivei comemoração alguma. Nunca fui boa a celebrar aniversários. Recebi imensas ligações, começando pela chamada dos meus avôs, que acabaram por completar o meu dia. Eles mostraram o seu amor por mim e desejaram-me as melhores coisas que existem neste mundo: paz
A minha insistência colocou o gráfico da nossa relação em declínio e, lentamente, as coisas começaram a se degradar. O meu namorado não prestava atenção em mim. Na escola, já nem ficávamos juntos a toda hora como outrora a gente viveu, o meu pobre coração entrou em desespero e aos poucos fui consumida por este sentimento. Do dia para a noite, como da água para o vinho, tudo mudou e comecei uma luta contra uma correnteza que me conduzia para cada vez mais longe do Márcio, dia após dia. Na tentativa de melhorar a situação, decidi tomar uma atitude e fiz-lhe algumas perguntas por mensagem:- Meu amor, por que tudo isso? O que se passa? Estás a gostar de outra rapariga?Com tamanho desamor, o Márcio respondeu à minha mensagem:- Estou um tanto quanto cansado do nosso relacionamento e acho melhor terminarmos ou darmos um tempo.Por mim — a frase dar um tempo — é o mesmo que terminar o relacionamento. Quando as coisas correm bem na
Sábado.Assim que despertei, a minha mãe entrou no meu quarto e de imediato convidou-me para irmos às compras. Achei estranho, primeiro porque ela nunca me convidava para sair e segundo porque não tínhamos o vínculo de amizade entre mãe e filha. Mesmo assim, concordei por sentir que a minha mãe quis arranjar uma forma de compensar o tempo perdido.Cuidei da minha higiene pessoal de forma demorada, fiquei presa ao espelho durante minutos e minutos a olhar para o meu reflexo, não conseguia parar de pensar em tudo o que havia acontecido e, de hora em hora, perguntava a mim mesma se aguentaria continuar a suportar.- Marie, despacha-te! – gritava a minha mãe.- Já vou, mãe! Dá-me só mais um minuto.Passaram-se alguns minutos, coloquei a roupa e encontrei-a na cozinha. Estava sem fome, mas a minha mãe exigiu que eu comesse uma fruta. A fome se vai quando a tristeza invade a alma e o coração.No Angola Shopping Center,
Chegara o dia de ver os resultados finais. Muito cedo fui despertada pela minha mãe, larguei o conforto da minha cama e em seguida tratei da minha higiene pessoal. Não tive tempo de me alimentar, de tão nervosa que estava. Com o senhor Jacinto ao volante, dirigimo-nos ao Colégio Nobre o mais rápido que podíamos e, chegando à escola, saudei todo mundo.- Bom dia! Desculpe por lhe interromper, tia, vim cá ver os meus resultados finais.- As pautas estão no andar de cima, menina, sou senhora secretária e não sua tia.- Ok. Peço desculpas, senhora secretária, não foi minha intenção faltar-lhe com o respeito.Tratei a funcionária da Secretaria por tia, porque a minha mãe sempre me disse que é um bom costume angolano respeitar as pessoas mais velhas, sendo parente ou não, desde que seja uma pessoa mais velha devemos tratar por tio/a e fui maltratada por ser educada.Ansiosa e bastante receosa, vi o meu nome e constatei que fui ao recurso. I
Terça-feira.Um novo dia e uma nova motivação. Fazer bem o último exame era o meu principal objectivo do dia. A determinação de transitar e atingir as novas metas era o que me deixava motivada. Despertei ao meio da madrugada, o enorme medo de desapontar os meus pais assombrava-me a cada minuto. Agarrei-me aos cadernos e apenas deixei de olhar para a matéria quando já estava quase a atrasar-me para o exame. Fiz a higiene pessoal. Rapidamente desci, comi apenas um pedaço de bolo e fui endiabrada para a escola.- Bom dia, senhor Jacinto! Como está? - Estou muito bem. E a menina Marie, como está?- Estou bem e totalmente pronta para a prova. Podemos ir. Por favor, acelere. Não me posso atrasar.- Está bem, menina.Mesmo no carro, eu não parava de ler a matéria de Geografia, a enorme pressão que estava sobre mim fazia-me ser dura comigo mesma. Eu não tinha um minuto de descanso sequer, pois aquele era o resultado da minha
No dia seguinte, acordei com uma excelente disposição. Abri os olhos da Evandra com o intuito de tirar-lhe o sono, mas mesmo assim ela não acordava. Usei um dos vários métodos para acordar alguém, e gritei bem alto.- Vá, acorda, dorminhoca!Ela não se demorou, acordou e atirou-me com um travesseiro. A seguir, começamos uma guerra de travesseiros que nos tornava cada vez mais crianças. Até a minha mãe subir para o meu quarto e gritar bem alto.- Meninas, parem já com isto! Vocês são crescidas demais para este tipo de brincadeiras.As palavras da minha mãe deram-me a prova de que a mente da maioria dos pais é demasiadamente complexa, pois quando as crianças agem como adultas, os pais reclamam e alegam precocidade, e quando finalmente agem como crianças, também reclamam. Ficamos em silêncio na presença da minha mãe e, quando ela saiu, matamo-nos de rir. As amizades femininas são tão íntimas que a minha melhor amiga e eu tomávamos banho jun
20 de Dezembro, o dia da partida.Nos dias anteriores, passei quase todas às noites em branco a estudar imenso para os exames, e na noite anterior o sono perdera moradia na minha cama por causa da minha ansiedade de viajar o quanto antes. Saímos de casa com o senhor Jacinto rumo ao Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro. Lembro que ao longo do trajecto eu me despedia da minha Kianda aos poucos. No Aeroporto, a ansiedade continuava a exercer um tamanho domínio sobre mim, enquanto aguardávamos pela hora de partida do nosso voo. De hora em hora, consultava o relógio e contava os minutos para a nossa viagem. Três horas antes, já estávamos no aeroporto, porque a pontualidade é uma das principais aliadas do meu pai. Passadas algumas horas, ouvimos a chamada de embarque para o nosso voo, porém não adiantava estar mais ansiosa, pois muitos são os quilômetros que separam Luanda de Londres.8 horas de viagem, suscitaram um enorme cansaço em mim, adormeci durante a viagem e des
Dia 22 de Dezembro.Em tão pouco tempo fiquei gripada e enfebrada, pela mudança de clima. Por causa dessa congestão nas minhas vias respiratórias, a minha avó mimava-me cada vez mais. Acordei, e ela entrou logo cedo no meu quarto com o convite de irmos aproveitar o dia. Sem precisar da ajuda de um analista, aos poucos os dois implantavam em mim uma reeducação afectiva. Arrumei-me o mais rápido possível, eu estava desejosa por sair com a minha avó.A conversa da noite passada surtiu um efeito positivo em todos nós, excepto aquela notícia da doença do meu avô. Mesmo assim, a minha boa disposição era visível, estar positivo atrai coisas positivas e a minha família precisava estar positiva. Cheguei à mesa e encontrei um pequeno-almoço reforçado: ovos, bacon, tomate, salsichas e feijão com molho. Parecia tudo muito gorduroso, mas não dava para manter a forma, porque a minha avó acordou cedo e fez tudo com muito amor. O meu avô estava no jardim a conversar com o meu pai, e a m