Como se tratasse de um sonho, eu acordei em uma cama de casal em um quarto enorme, e com uma poltrona junto da cômoda que me faz olhar para o meu reflexo no espelho sempre que eu me sento nela. As janelas sanfonadas deste quarto são enormes, a vista é incrível, consigo sempre ver o céu, as nuvens, o sol e uma linda avenida junto ao mar, assim que abro as cortinas. Dentro do baú está alguém que eu não vejo há muito tempo, o único que sabe tudo sobre mim, o meu diário.
O céu nublado anunciou um novo amanhecer na tumultuosa cidade de Luanda. Logo ao acordar, levantei da minha cama, direcionei-me para o espelho e olhei para o meu reflexo. Ainda presa no meu reflexo, apreciei a minha pele mestiça e admirei os meus olhos castanhos. A maior parte da humanidade é refém do mito da raça ariana que originou a obsessão por olhos azuis, mas eu não me arrependo de não ter nascido com os olhos azuis, sempre amei os meus olhos castanhos como a cor do mel e o meu um metro e oitenta e dois centímetros de altura que alimentava o meu sonho adolescente de ser uma modelo das passarelas internacionais. Quanto ao cabelo, o meu cabelo crespo herdado da família da minha mãe fazia-me sentir única e natural. Sou filha de um homem de raça branca e de uma mulher de raça negra. Todavia, nunca precisei de ver ou ler artigos sobre negritude. Longe da perfeição, os meus pais e eu dialogamos muito sobre a minha condição racial e isto algumas vezes já me fez sentir que não sou branca como o meu pai e muito menos negra como a minha mãe. Uma pessoa parda é uma pessoa negra. A verdade é que eu podia tudo, menos viver uma ilusão racial, porque apesar de todos os benefícios raciais atribuídos aos seres humanos com o tom de pele mais claro no meu país, eu precisei admitir a tempo certo que na realidade sem camuflagens sou negra.
Durante a minha fase adolescente, quase todos tiveram uma descrição simples e superficial sobre mim. Sempre fui vista como uma rapariga demasiadamente tímida, mas aquela concepção era uma conclusão rasa e precipitada. Sempre estive longe de ser uma rapariga tímida, em uma análise correcta. Definitivamente, sou uma mulher reservada e bastante selectiva. Naquela época, expressava-me abertamente apenas nas minhas conversas com a Evandra, a minha melhor amiga.
Diferente da maioria do povo angolano, tenho apenas um nome próprio, porque, para o meu pai, um segundo nome arruinaria a homenagem feita para a minha avó, Marieth. Filha de um pai inglês e de uma mãe angolana que nasceu em Benguela, sou uma angolana de ascendência britânica que nasceu em Luanda no actual distrito da Maianga. Foi no distrito da Maianga onde passei toda a minha infância. Anos depois, mudamos para o Talatona, lugar onde conheci o Márcio, um rapaz moreno, alto e bonito, com covinhas nas bochechas. Aparentemente, o Márcio era diferente de todos os outros rapazes, apesar de supostamente o odiar, me apaixonei por ele e senti o acelerar dos batimentos do meu coração. Perdi o norte, as minhas pernas ficaram bambas de tão trêmulas que estavam, em suma, era uma junção de sensações e sentimentos, que pensei ter encontrado o amor da minha vida naquele momento. Apesar de sentir o desabrochar daquele sentimento puro, lembro que entrei em um período de implicância com o Márcio. Nas aulas, nos corredores da escola, no refeitório, não importava o sítio. Ele e eu implicávamos um com o outro a partir do momento que passávamos a respirar o mesmo ar.A vida é realmente feita de acasos. Tive a prova deste adágio quando, no meu primeiro dia de aulas no Colégio Nobre, vi o Márcio, o rapaz que conheci no Talatona, sentado na minha sala de aulas. O nosso primeiro contacto foi um simples e tímido "oi", movido pela minha timidez, timidez esta que surgia apenas quando me deparava com ele. O Colégio Nobre era o meio acadêmico mais frequentado pela alta sociedade angolana. Em outras palavras, é lá onde estudavam os riquinhos da cidade. Um facto verídico que a maioria dos pais desconhece é que escolas deste tipo costumam ser um poço de influências negativas para os jovens. Os ricos do meu país investem em construções de escolas privadas caríssimas, com mensalidades cinco vezes superiores ao salário mínimo de um país rico e pobre instituicionalmente. O ensino nestas escolas é de qualidade, mas a futilidade mora nelas também, onde muitos vão apenas para cumprir formalidades, e outros vão para exibir as suas roupas novas. Alg
Na última sexta-feira do mês de Fevereiro daquele ano, lembro que terminamos as aulas cedo e fomos todos para a minha casa fazer o trabalho da disciplina de História. Assim que chegamos, quase todos espantaram-se com a nossa residência, quando viram obras de arte caríssimas, africanas e ocidentais, mármore por toda casa e todo o resto que compõe uma vivenda luxuosa. Todos pareciam maravilhados, excepto o Márcio que é um fidalgo nato.O término do trabalho foi acompanhado de um delicioso bolo de chocolate, daqueles que só a dona Isilda sabe fazer. Todos foram-se embora, lembro que apenas o Márcio permaneceu em minha casa, por ter ido ao quarto de banho. Minutos depois, o destino e a vida decidiram aplicar a lei do acaso, ou seja, a famosa coincidência. A dona Isilda estava na área de serviço e eu estava na sala de estar no momento em que o Márcio saiu do recinto e perguntou-me se todos já se tinham ido embora. Eu respondi que sim, sem olhar nos seus olhos, eu tentava disfar
O sono tardava a aparecer. Deitada na cama, eu rolava de um lado para o outro naquela noite cinzenta. Lembro, como se fosse hoje, que um sentimento de desconsideração se apoderou de mim e deixou-me chateada com o mundo. Parecia que o Márcio esquecera o epicentro do mês de Junho, o relógio marcava duas horas da manhã e até àquela hora da matina o meu telemóvel não tocava. Junho é o mês em que se assinala uma das datas mais importantes da minha vida, o dia do meu aniversário. Os meus dezassete anos de idade acabavam de ser atingidos e faltava-me apenas um ano para atingir a maioridade aos olhos da lei angolana.Desconheço o nativo angolano que não aprecie um bom convívio e os britânicos não ficam atrás, porém, não perspectivei comemoração alguma. Nunca fui boa a celebrar aniversários. Recebi imensas ligações, começando pela chamada dos meus avôs, que acabaram por completar o meu dia. Eles mostraram o seu amor por mim e desejaram-me as melhores coisas que existem neste mundo: paz
A minha insistência colocou o gráfico da nossa relação em declínio e, lentamente, as coisas começaram a se degradar. O meu namorado não prestava atenção em mim. Na escola, já nem ficávamos juntos a toda hora como outrora a gente viveu, o meu pobre coração entrou em desespero e aos poucos fui consumida por este sentimento. Do dia para a noite, como da água para o vinho, tudo mudou e comecei uma luta contra uma correnteza que me conduzia para cada vez mais longe do Márcio, dia após dia. Na tentativa de melhorar a situação, decidi tomar uma atitude e fiz-lhe algumas perguntas por mensagem:- Meu amor, por que tudo isso? O que se passa? Estás a gostar de outra rapariga?Com tamanho desamor, o Márcio respondeu à minha mensagem:- Estou um tanto quanto cansado do nosso relacionamento e acho melhor terminarmos ou darmos um tempo.Por mim — a frase dar um tempo — é o mesmo que terminar o relacionamento. Quando as coisas correm bem na
Sábado.Assim que despertei, a minha mãe entrou no meu quarto e de imediato convidou-me para irmos às compras. Achei estranho, primeiro porque ela nunca me convidava para sair e segundo porque não tínhamos o vínculo de amizade entre mãe e filha. Mesmo assim, concordei por sentir que a minha mãe quis arranjar uma forma de compensar o tempo perdido.Cuidei da minha higiene pessoal de forma demorada, fiquei presa ao espelho durante minutos e minutos a olhar para o meu reflexo, não conseguia parar de pensar em tudo o que havia acontecido e, de hora em hora, perguntava a mim mesma se aguentaria continuar a suportar.- Marie, despacha-te! – gritava a minha mãe.- Já vou, mãe! Dá-me só mais um minuto.Passaram-se alguns minutos, coloquei a roupa e encontrei-a na cozinha. Estava sem fome, mas a minha mãe exigiu que eu comesse uma fruta. A fome se vai quando a tristeza invade a alma e o coração.No Angola Shopping Center,
Chegara o dia de ver os resultados finais. Muito cedo fui despertada pela minha mãe, larguei o conforto da minha cama e em seguida tratei da minha higiene pessoal. Não tive tempo de me alimentar, de tão nervosa que estava. Com o senhor Jacinto ao volante, dirigimo-nos ao Colégio Nobre o mais rápido que podíamos e, chegando à escola, saudei todo mundo.- Bom dia! Desculpe por lhe interromper, tia, vim cá ver os meus resultados finais.- As pautas estão no andar de cima, menina, sou senhora secretária e não sua tia.- Ok. Peço desculpas, senhora secretária, não foi minha intenção faltar-lhe com o respeito.Tratei a funcionária da Secretaria por tia, porque a minha mãe sempre me disse que é um bom costume angolano respeitar as pessoas mais velhas, sendo parente ou não, desde que seja uma pessoa mais velha devemos tratar por tio/a e fui maltratada por ser educada.Ansiosa e bastante receosa, vi o meu nome e constatei que fui ao recurso. I
Terça-feira.Um novo dia e uma nova motivação. Fazer bem o último exame era o meu principal objectivo do dia. A determinação de transitar e atingir as novas metas era o que me deixava motivada. Despertei ao meio da madrugada, o enorme medo de desapontar os meus pais assombrava-me a cada minuto. Agarrei-me aos cadernos e apenas deixei de olhar para a matéria quando já estava quase a atrasar-me para o exame. Fiz a higiene pessoal. Rapidamente desci, comi apenas um pedaço de bolo e fui endiabrada para a escola.- Bom dia, senhor Jacinto! Como está? - Estou muito bem. E a menina Marie, como está?- Estou bem e totalmente pronta para a prova. Podemos ir. Por favor, acelere. Não me posso atrasar.- Está bem, menina.Mesmo no carro, eu não parava de ler a matéria de Geografia, a enorme pressão que estava sobre mim fazia-me ser dura comigo mesma. Eu não tinha um minuto de descanso sequer, pois aquele era o resultado da minha
No dia seguinte, acordei com uma excelente disposição. Abri os olhos da Evandra com o intuito de tirar-lhe o sono, mas mesmo assim ela não acordava. Usei um dos vários métodos para acordar alguém, e gritei bem alto.- Vá, acorda, dorminhoca!Ela não se demorou, acordou e atirou-me com um travesseiro. A seguir, começamos uma guerra de travesseiros que nos tornava cada vez mais crianças. Até a minha mãe subir para o meu quarto e gritar bem alto.- Meninas, parem já com isto! Vocês são crescidas demais para este tipo de brincadeiras.As palavras da minha mãe deram-me a prova de que a mente da maioria dos pais é demasiadamente complexa, pois quando as crianças agem como adultas, os pais reclamam e alegam precocidade, e quando finalmente agem como crianças, também reclamam. Ficamos em silêncio na presença da minha mãe e, quando ela saiu, matamo-nos de rir. As amizades femininas são tão íntimas que a minha melhor amiga e eu tomávamos banho jun