Existe uma maneira de, talvez, quebrar a corrente que sustenta esse dom. Não sei ao certo como fazer, mas, de acordo com os escritos encontrados ao longo dos anos, podemos reverter a sua origem.
Não tenho provas, além de algumas páginas amareladas de um diário surrado. Ninguém até hoje acreditou naqueles dizeres, mas sou uma pessoa mais confiante. Não. Otimista seria a palavra correta.
Naquelas linhas quase apagadas pelo tempo, uma lenda foi contada de maneira bem romantizada. Pergunto-me se esse desejo não passava dos anseios de alguma menina sonhadora. No entanto, não posso perder as esperanças, ou sofrerei nessa busca, assim como os destinatários dessa dádiva.
De acordo com a lenda, um dom especial e ao mesmo tempo desconfortável foi um castigo dado por um senhor de cabelo ralo e dentes falhos. Esse mesmo homem, desprovido de quaisquer condições financeiras ou higiênicas, um dia estava sentado ao lado de uma mulher delicada como uma nuvem de algodão, mas gananciosa como a fome de um bebê recém-nascido e que resmungava aos quatro ventos sua insatisfação com o mundo.
— Ele ainda será meu! Farei tudo o que for preciso... — Lágrimas grossas manchavam a face ruborizada pelo ódio.
— Ficar com alguém que não lhe pertence talvez não seja o ideal de felicidade. — As mãos imundas cavoucavam um saco de pão, procurando migalhas endurecidas.
— Quem falou que ele não me pertence? — Sem qualquer disfarce, aumentou a distância entre ela e o homem, que tinha o cabelo encoberto por uma touca manchada.
— Manter alguém obrigado ao seu lado talvez não seja o ideal de felicidade. — Colocou os farelos na boca, deixando um pequeno rastro na vasta barba branca.
— Ideal de felicidade? — O olhar de desdém percorreu o corpo daquele intruso de cima a baixo. — Justo você falando sobre isso?
— Não lhe pareço feliz? — Havia um quê de provocação em suas palavras.
— Sinceramente, não. Duvido que, se tivesse tido a chance de ter visto o seu futuro antes de chegar a esse ponto de agora, você o desejaria mesmo assim... — As unhas bem aparadas e coloridas estavam apontadas na direção daquela suposta felicidade. “Duvido que ele seja feliz”, pensou.
— E você? — Dobrou o saco de pão e o colocou no bolso que não estava rasgado. — Se tivesse o dom de ver o futuro, o que faria de diferente?
— Daria um jeito de mudar tudo o que não me agradasse.
Por um momento, eles se mantiveram em silêncio utópico, ambos se imaginando com aquele dom. A mulher sonhava em conquistar o mundo, e o senhor faminto ansiava por uma libertação. Ele sorriu ao se dar conta de que, enfim, encontrara aquilo que tanto procurara.
Olhou para o céu, dando-se conta de que as circunstâncias estavam a seu favor. A lua que era não lua, o sol que era não sol envoltos por um grupo de estrelas novas.
Sem pompa ou circunstância, colocou as mãos sujas sobre as limpas. Notou a aversão na face dela e permitiu um suspiro de puro alívio.
— Ei... — Puxou as mãos de prontidão e as levou ao nariz. Seu estômago se embrulhou no mesmo instante.
— Obrigado. — Aproveitou-se da estupefação alheia e se levantou num rompante. — Boa sorte! — foram suas últimas palavras antes de escapar dos insultos que ouviria.
Um tempo depois, a moça arrogante, depois de expressar felicidade pelas visões conquistadas após uma boa noite de sono, percebeu o quanto aquele dom não passava de uma mentira. Uma ilusão desconcertante.
Desesperada pela falta de compreensão de seus amigos e familiares e ignorante em como se livrar daquelas visões que em nada ajudavam, passou seus dias sentada no mesmo banco de antes.
Sua mente distorcida lhe presenteava flashs da conversa que tivera com o homem de aroma pungente. Algo naquele bate-papo estranho ocultava suas respostas.
Um belo dia, enquanto chorava escondida da família no banco marcado pela promessa de um futuro melhor, o tal homem sentou-se ao lado dela.
— Está feliz agora? Conseguiu alterar o seu futuro?
Um ou dois minutos foi o tempo necessário para reconhecer a pessoa que interrompera sua autolamentação. O asseio nublava as características que, por tempos, ficaram guardadas em sua mente. Sem barba, cabelo e dentes bem alinhados, casaco sem rasgos, e o aroma de limpeza o envolvia.
— Você... — Diferente de antes, ela diminuiu a distância entre eles, as unhas lascadas apontadas na direção daquele ser irreconhecível. — Por que fez isso comigo?
— Eu não fiz nada. — Tirou o saco de pão do bolso. Um aroma de especiarias preencheu suas narinas. — Só realizei o seu desejo.
— Não quero mais isso! Tira isso de mim! — A exigência chamou atenção dos transeuntes, mas ela não se importou. Não conseguia mais lidar com um futuro o qual não conseguia alterar.
— Um dia, quem sabe, alguém igual a você a ajudará nessa parte. Mas, até que isso aconteça, a sua ganância será repassada para seus filhos, os filhos dos seus filhos, os filhos dos filhos dos seus filhos, pela quantidade de tempo que durar a sua incompreensão dos fatos. — Levantou-se com destreza e, antes de partir, para evitar as questões e xingamentos, proferiu as palavras finais. — Todos serão obrigados a pagar pelo seu erro. Não há como escapar. O futuro não pertence a ninguém além dele próprio.
Quando fechou o livro deteriorado pelo tempo, suas mãos enluvadas deslizaram pela capa desgastada. O nome, antes tão vívido, agora não passava de letras esbranquiçadas. Nem mesmo as páginas internas conseguiram escapar dos anos que ficaram para trás. Poucas possuíam uma leitura sem a necessidade de uma boa atenção, outras estavam apagadas por completo. Na certa, havia mais informações importantes, algo que completasse aquela história. Peças não se encaixavam, e o ponto e vírgula na última página escrita lhe dava essa certeza.
No entanto, nem mesmo as falhas poderiam apagar o que já estava gravado em sua memória. Quantas e quantas vezes relera aquele diário? Inúmeras. Todas sempre acompanhadas por um misto de ansiedade e esperança.
Como costume, pegou aquele artefato encontrado após buscas e buscas ao longo dos anos e o guardou numa caixa feita exclusivamente para ele. A proteção necessária para manter, por mais algum tempo, a confiança intacta.
— Só mais um pouco. Aguente mais um pouco — Moacir sentenciou enquanto colocava a caixa no lugar sagrado e secreto antes de retirar as luvas.
Parecia fácil concluir a tarefa, quase como uma brincadeira de criança. E, na verdade, quantas vezes Daisy praticara aquela cena? Inúmeras. Às vezes, sozinha; outras, na presença das amigas, irmãs ou bonecas como parceiras.Bastava dar um passo por vez, manter os pés firmes, as mãos ao lado do corpo acompanhando o ritmo do caminhar determinado. Deixar ombros eretos, quadris encaixados, semblante neutro, olhar enigmático e respiração controlada. Um conjunto de detalhes que utilizava quando se imaginava desfilando numa passarela longa, sob os holofotes e os flashs das máquinas fotográficas criando pontos brilhantes como estrelas. Dessa forma, ou melhor, usufruindo da sua experiência infantil como modelo, bastava somente seguir o protocolo e dominar os palcos.O seu objetivo se encontrava no final daquele corredor, cercado por vozes afoitas, olhares assombrados e uma pressa im
— E aí? Está muito ruim? — Giovani puxou uma cadeira próxima e sentou-se ao lado da amiga, colocando sobre a mesa a bebida preferida dela: café com calda de chocolate e leite, quanto mais espumoso melhor.— O que você acha? — Daisy tinha os olhos fixos na tela do computador, tentando exibir uma postura indiferente, quando, na realidade, a vergonha havia se instalado por todos os lados desde o incidente. Sentiu o aroma do seu vício e aceitou desviar um pouco sua atenção.— Não acho que...— Giovani — ela interpelou o comentário sem sentido, afinal poderia fingir desinteresse, mas estava longe de ser uma pessoa surda. Os buchichos flutuavam ao redor dela.— Certo. Desculpe. — Ambos saborearam suas bebidas, Giovani com seu café bem forte e amargo.— Dois dias já se passaram, e ainda sou o assunto do momento.
Daisy não era tão irresponsável quanto sua irmã mais velha costumava afirmar. Tudo bem que às vezes falhas aconteciam, mas, em sua defesa, chegar atrasada ao trabalho fazia parte da sua função dentro da empresa. É lógico que seu cargo se restringia à realização de serviços de pesquisa por e-mail, telefone e elaboração de planilhas e gráficos. Trocar o sono por horas e horas assistindo à sua série favorita não condizia com suas obrigações. No entanto, antes de ser funcionária, ela também era cliente. Então...— Outra vez, Daisy? — A chefe tentou soar como uma general repreendendo seu soldado. Tudo um fingimento, é claro. Lígia era uma pessoa que exibia uma postura rígida, mas tinha um coração tão caloroso quanto um dia de verão.— Desculpe
Novamente, o final daquela visão foi constrangedor, uma mistura de vergonha alheia com lágrimas e risadas em excesso. No entanto, havia uma diferença quase palpável e satisfatória que deixou Daisy com o coração acelerado.Na verdade, bastou somente a união de algumas palavras – “previsão”, “futuro”, “lenda” e “dom” – para que a irmã nem mais nova ou a mais velha permitisse que a esperança dominasse suas emoções— Gio... — A voz soou num sussurro crescente.— O que foi dessa vez? — Segurou a amiga pelos ombros, virando-a em sua direção.— Gio...! — O som era cada vez mais alto e ambicioso.— Desembucha, garota!— Um cara falando ao telefone sobre lenda, dom, futuro.... — O discurso desarranjado e esperançoso saía
Quando chegou em casa, Daisy sentia-se frustrada com o rumo dos acontecimentos. Na verdade, sendo sincera consigo mesma, sua incompetência dominava todos os seus pensamentos. Ela possuía uma missão simples e objetiva: procurar pistas. No entanto, nada além de uma possível coincidência conseguiu contar para Giovani.— Acho que foi nele que esbarrei na entrada do elevador.— E você não se lembra do rosto da pessoa? — Mesmo que estivesse do outro lado da linha, ela conseguiu detectar a incredulidade na voz do amigo.— Estava com tanta pressa que nem me importei com isso.— Então voltamos ao ponto de partida. Um homem, palavras soltas e as suas desconfianças. Talvez não lhe reste alternativa, a não ser ele aparecer novamente em suas visões.Sim, ela pensou em responder. No fundo, até verbalizou essa constataç&atil
Quatro irmãs e uma casa de porte médio. Dessa forma, não sobrava muito espaço para privacidade. Ir ao banheiro com tranquilidade ou até mesmo individualidade era algo digno de ser descrito numa ata de reunião de diretoria.No entanto, ao longo dos anos de convivência imposta, alguns macetes foram se enquadrando na rotina das meninas Kim Lopez. Assim como a união dos sobrenomes dos pais, elas aprenderam que a individualidade de roupas, acessórios, maquiagens ou qualquer outro item de uso pessoal não combinaria com aquela dinâmica. Claro que cada uma possuía seu gosto, e somente esse detalhe lhes dava algum tipo de egoísmo em seus pertences— Você sabe onde estão aqueles tênis vinho com listras brancas? — a irmã três anos mais velha que Daisy e dois anos mais nova que a primogênita perguntou enquanto vasculhava o guarda-roupa.
— Está tudo bem? — A respiração elevada e a falta de resposta deixaram Daisy apreensiva. — Ei, você está bem? Consegue estender sua mão? Assim posso ir até você. — Aproximou-se com cautela, procurando a dona daquela agitação até encontrar mãos frias e úmidas.— Desculpe. — Escorada num dos cantos do elevador, a aflita funcionária tentava manter a calma. A voz saía pausadamente, como se o simples fato de falar requeresse mais do que a sua vontade. — Tenho fobia de lugares fechados.De repente, as luzes voltaram a iluminar o local. Daisy pôde ver com bastante clareza como a moça, que parecia uma menina ainda no auge da sua adolescência, estava muito pior do que ela imaginara.— Não é melhor você se sentar um pouco? — A funcionária de cabelo claro negou com a cabe&c
Então o cara do suco se chama Saulo, Daisy pensou, enquanto Camila discorria sua rotina como assistente. De acordo com sua mais nova amiga, naquele andar trabalhavam os dois diretores recém-contratados. Como tudo ainda estava no clima de “lua de mel”, informações pessoais ou até mesmo detalhes mais objetivos sobre eles ou, mais especificamente, sobre o Saulo ainda eram desconhecidos.— Dizem que ele foi “roubado” — as aspas no ar e a voz sussurrada para enfatizar a palavra, mesmo que estivessem sozinhas na escada, deram um ar de cumplicidade entre as duas — de outro streaming.— Uau. Então ele dever ser muito bom mesmo.— Acredito que sim, mas, como faz pouco tempo que ele chegou, não posso confirmar.— Vamos torcer para ele ser um ótimo chefe. — Deu um tapinha na mão da assistente, um gesto adquirido de sua m&