Quem não tem cão, caça com suco!
Quem não tem cão, caça com suco!
Por: Cristina Valori
Prólogo

E o início foi assim...

Existe uma maneira de, talvez, quebrar a corrente que sustenta esse dom. Não sei ao certo como fazer, mas, de acordo com os escritos encontrados ao longo dos anos, podemos reverter a sua origem.

Não tenho provas, além de algumas páginas amareladas de um diário surrado. Ninguém até hoje acreditou naqueles dizeres, mas sou uma pessoa mais confiante. Não. Otimista seria a palavra correta.

Naquelas linhas quase apagadas pelo tempo, uma lenda foi contada de maneira bem romantizada. Pergunto-me se esse desejo não passava dos anseios de alguma menina sonhadora. No entanto, não posso perder as esperanças, ou sofrerei nessa busca, assim como os destinatários dessa dádiva.

De acordo com a lenda, um dom especial e ao mesmo tempo desconfortável foi um castigo dado por um senhor de cabelo ralo e dentes falhos. Esse mesmo homem, desprovido de quaisquer condições financeiras ou higiênicas, um dia estava sentado ao lado de uma mulher delicada como uma nuvem de algodão, mas gananciosa como a fome de um bebê recém-nascido e que resmungava aos quatro ventos sua insatisfação com o mundo.

— Ele ainda será meu! Farei tudo o que for preciso... — Lágrimas grossas manchavam a face ruborizada pelo ódio.

— Ficar com alguém que não lhe pertence talvez não seja o ideal de felicidade. — As mãos imundas cavoucavam um saco de pão, procurando migalhas endurecidas.

— Quem falou que ele não me pertence? — Sem qualquer disfarce, aumentou a distância entre ela e o homem, que tinha o cabelo encoberto por uma touca manchada.

— Manter alguém obrigado ao seu lado talvez não seja o ideal de felicidade. — Colocou os farelos na boca, deixando um pequeno rastro na vasta barba branca.

— Ideal de felicidade? — O olhar de desdém percorreu o corpo daquele intruso de cima a baixo. — Justo você falando sobre isso?

— Não lhe pareço feliz? — Havia um quê de provocação em suas palavras.

— Sinceramente, não. Duvido que, se tivesse tido a chance de ter visto o seu futuro antes de chegar a esse ponto de agora, você o desejaria mesmo assim... — As unhas bem aparadas e coloridas estavam apontadas na direção daquela suposta felicidade. “Duvido que ele seja feliz”, pensou.

— E você? — Dobrou o saco de pão e o colocou no bolso que não estava rasgado. — Se tivesse o dom de ver o futuro, o que faria de diferente?

— Daria um jeito de mudar tudo o que não me agradasse.

Por um momento, eles se mantiveram em silêncio utópico, ambos se imaginando com aquele dom. A mulher sonhava em conquistar o mundo, e o senhor faminto ansiava por uma libertação. Ele sorriu ao se dar conta de que, enfim, encontrara aquilo que tanto procurara.

Olhou para o céu, dando-se conta de que as circunstâncias estavam a seu favor. A lua que era não lua, o sol que era não sol envoltos por um grupo de estrelas novas.

Sem pompa ou circunstância, colocou as mãos sujas sobre as limpas. Notou a aversão na face dela e permitiu um suspiro de puro alívio.

— Ei... — Puxou as mãos de prontidão e as levou ao nariz. Seu estômago se embrulhou no mesmo instante.

— Obrigado. — Aproveitou-se da estupefação alheia e se levantou num rompante. — Boa sorte! — foram suas últimas palavras antes de escapar dos insultos que ouviria.

Um tempo depois, a moça arrogante, depois de expressar felicidade pelas visões conquistadas após uma boa noite de sono, percebeu o quanto aquele dom não passava de uma mentira. Uma ilusão desconcertante.

Desesperada pela falta de compreensão de seus amigos e familiares e ignorante em como se livrar daquelas visões que em nada ajudavam, passou seus dias sentada no mesmo banco de antes.

Sua mente distorcida lhe presenteava flashs da conversa que tivera com o homem de aroma pungente. Algo naquele bate-papo estranho ocultava suas respostas.

Um belo dia, enquanto chorava escondida da família no banco marcado pela promessa de um futuro melhor, o tal homem sentou-se ao lado dela.

— Está feliz agora? Conseguiu alterar o seu futuro?

Um ou dois minutos foi o tempo necessário para reconhecer a pessoa que interrompera sua autolamentação. O asseio nublava as características que, por tempos, ficaram guardadas em sua mente. Sem barba, cabelo e dentes bem alinhados, casaco sem rasgos, e o aroma de limpeza o envolvia.

— Você... — Diferente de antes, ela diminuiu a distância entre eles, as unhas lascadas apontadas na direção daquele ser irreconhecível. — Por que fez isso comigo?

— Eu não fiz nada. — Tirou o saco de pão do bolso. Um aroma de especiarias preencheu suas narinas. — Só realizei o seu desejo.

— Não quero mais isso! Tira isso de mim! — A exigência chamou atenção dos transeuntes, mas ela não se importou. Não conseguia mais lidar com um futuro o qual não conseguia alterar.

— Um dia, quem sabe, alguém igual a você a ajudará nessa parte. Mas, até que isso aconteça, a sua ganância será repassada para seus filhos, os filhos dos seus filhos, os filhos dos filhos dos seus filhos, pela quantidade de tempo que durar a sua incompreensão dos fatos. — Levantou-se com destreza e, antes de partir, para evitar as questões e xingamentos, proferiu as palavras finais. — Todos serão obrigados a pagar pelo seu erro. Não há como escapar. O futuro não pertence a ninguém além dele próprio.

Quando fechou o livro deteriorado pelo tempo, suas mãos enluvadas deslizaram pela capa desgastada. O nome, antes tão vívido, agora não passava de letras esbranquiçadas. Nem mesmo as páginas internas conseguiram escapar dos anos que ficaram para trás. Poucas possuíam uma leitura sem a necessidade de uma boa atenção, outras estavam apagadas por completo. Na certa, havia mais informações importantes, algo que completasse aquela história. Peças não se encaixavam, e o ponto e vírgula na última página escrita lhe dava essa certeza.

No entanto, nem mesmo as falhas poderiam apagar o que já estava gravado em sua memória. Quantas e quantas vezes relera aquele diário? Inúmeras. Todas sempre acompanhadas por um misto de ansiedade e esperança.

Como costume, pegou aquele artefato encontrado após buscas e buscas ao longo dos anos e o guardou numa caixa feita exclusivamente para ele. A proteção necessária para manter, por mais algum tempo, a confiança intacta.

 — Só mais um pouco. Aguente mais um pouco — Moacir sentenciou enquanto colocava a caixa no lugar sagrado e secreto antes de retirar as luvas.

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