Parecia fácil concluir a tarefa, quase como uma brincadeira de criança. E, na verdade, quantas vezes Daisy praticara aquela cena? Inúmeras. Às vezes, sozinha; outras, na presença das amigas, irmãs ou bonecas como parceiras.
Bastava dar um passo por vez, manter os pés firmes, as mãos ao lado do corpo acompanhando o ritmo do caminhar determinado. Deixar ombros eretos, quadris encaixados, semblante neutro, olhar enigmático e respiração controlada. Um conjunto de detalhes que utilizava quando se imaginava desfilando numa passarela longa, sob os holofotes e os flashs das máquinas fotográficas criando pontos brilhantes como estrelas. Dessa forma, ou melhor, usufruindo da sua experiência infantil como modelo, bastava somente seguir o protocolo e dominar os palcos.
O seu objetivo se encontrava no final daquele corredor, cercado por vozes afoitas, olhares assombrados e uma pressa imoderada. Tudo culpa da data que o calendário exibia. Entretanto, Daisy possuía, naquele momento, outra preocupação, uma bem mais exigente e dominadora: escapar da tragédia que havia “visto” menos de dez minutos antes.
Ver talvez não fosse o termo correto, mas, infelizmente, ela não conseguia pensar ou denominar de outra maneira o que costumava acontecer com a moça bonita de olhos cor de mel.
— Tem algo legal ali na frente? — Giovani, seu colega de trabalho e o único que conhecia o tal “ver”, ou, melhor dizendo, acreditava naquela loucura, parou ao lado dela, seguindo o seu olhar.
— Minha dignidade. — Um suspiro de pura desolação combinava com seus ombros curvados.
— Hum. Pelo jeito não será agradável. — Ele se colocou em frente à amiga. Bem mais alto do que a moça de cabelo negros e lisos, exibiu um sorriso de pura compaixão.
— Nem um pouco.
— E se você tentar mudar o final? — Colocou as mãos sobre os ombros da amiga, dando um aperto firme.
— Não adianta. Posso burlar o “sistema” — enfatizou a palavra com um gesto de seus dedos —, mas, de um jeito ou de outro, minha dignidade ficará bem diante daquela porta.
— Estarei por perto?
— Parcialmente — respondeu quase em um sussurro.
— Como assim?
— Sua voz...
Giovani não compreendia muito bem o que implicava o “ver” na vida de Daisy e tão pouco entendia o processo. Na verdade, se não tivesse presenciado aquele tipo de acontecimento em outras ocasiões, poderia fazer parte do time que teimava em desacreditar das palavras e ações dela.
— Mas não custa tentar, certo? O problema está na porta? — Ela concordou com a cabeça. — Então irei até lá para te esperar. O que preciso saber?
Daisy pensou por um momento. Ela já havia criado diversas estratégias para mudar um pouco o final dos acontecimentos, planos e mais planos detalhados ou simplórios, com o único intuito: afastar-se das cenas degradantes. Compreendia que, em algumas situações, fazia-se necessário acompanhar o jogo, principalmente quando o resultado a privilegiava. Contudo, quando vergonha alheia estava acoplada à equação, a ânsia em mudar algo que até então nunca conseguira lhe picava a pele, igualmente aos pernilongos que teimavam em castigá-la num dia de muita chuva e calor.
— Tudo bem. Não perderei nada tentando mais uma vez. Me espere em frente àquela porta — apontou o local em questão — e não deixe ninguém entrar. Entendeu? Custe o que custar, não permita que ninguém entre até eu chegar.
— Certo. Então... — Giovani arregaçou as mangas num gesto resoluto, mesmo que estivesse usando uma camisa polo — estou pronto.
A pianista nas horas vagas acompanhou o amigo seguindo pelo percurso que ela mesma faria em questão de segundos, desejando um final feliz pelo menos daquela vez. Seu corpo dava os primeiros sinais da suposta tragédia, tudo culpa de um problema de saúde em tratamento.
Com os olhos fixos nas costas largas de Giovani e na maneira como ele ignorava as supostas distrações, Daisy deu o primeiro passo. O peso da necessidade lhe causava calafrios pelo corpo franzino.
Colocou as duas mãos sobre o ventre num pedido de socorro. Seus passos seguiam a sequência como havia visto. Vozes a tentavam como uma velha amiga sincera, porém, determinada como uma guerreira em busca da medalha de bravura, ela se desviou das intempéries. Um misto de satisfação e esperança a dominava conforme Giovani abria aquele mar de vergonha.
Um pouco adiante dela, a porta mais importante do dia foi aberta, liberando o espaço. E Daisy deu um suspiro em agonia. Dores percorriam seu baixo-ventre. Mais uma vez a esperança cresceu, até que ela enxergou o exato momento em que a tentativa iniciava o processo de falha e desespero.
Uma funcionária prestativa em excesso atravessou o caminho de Giovani, dando-lhe um esbarrão poderoso. Esse ato por si só não seria capaz de prejudicar seu plano, mas um copo de café quente derramado entre os participantes daquele encontro trouxe outro tipo de agonia: gritos, desculpas e guardanapos solidários.
Daisy suspirou mais uma vez. A falta de dignidade a esperava. Não havia como fugir.
Uma pequena multidão de quatro outros funcionários se revezava em ajudar Giovani e a estabanada funcionária. Daisy seguiu o percurso. Mais alguns passos, e tudo aconteceria como previsto.
Entre pedidos de desculpas e “você se queimou?”, enxergou o amigo encarando-a num total desespero enquanto era carregado justamente para o lugar onde ninguém poderia adentrar a não ser ela. Pensou em correr, mas as dores unidas ao sentimento de completa incapacidade a impediram.
Quando, enfim, chegou em frente à porta tão esperada, seu corpo exibia um suor visível, e a necessidade pulsava no lugar específico.
Ela bateu com os nós dos dedos na folha de madeira escura. Ouviu um “já vai” seguido um segundo depois de “o trinco quebrou!”
Assim como previsto, Daisy tentou a maçaneta com ímpeto de um pugilista, implorou por ajuda. Outras pessoas se uniram ao acontecimento, quando sua lamúria se juntou às advindas das duas pessoas atrás da porta: Giovani e a funcionária do café.
O restante da cena se desenrolou em câmera lenta para Daisy, mas num ritmo correto para os demais. As dores no baixo-ventre se avolumaram, e nem mesmo a junção das pernas impediu o desastre.
Olhou ao redor numa completa aflição, mas, infelizmente, o resultado foi inevitável. O banheiro mais próximo encontrava-se em outro andar.
E foi assim que tudo aconteceu naquele dia. Uma premissa “vista” sem qualquer chance de ser alterada, questionada ou ludibriada.
A vida de Daisy funcionava daquela forma, e, pensando mais uma vez em como aquele “dom” parecia uma maldição e uma benção, ela sentiu os olhares questionadores em sua direção, quando sua bexiga ditou as regras.
— E aí? Está muito ruim? — Giovani puxou uma cadeira próxima e sentou-se ao lado da amiga, colocando sobre a mesa a bebida preferida dela: café com calda de chocolate e leite, quanto mais espumoso melhor.— O que você acha? — Daisy tinha os olhos fixos na tela do computador, tentando exibir uma postura indiferente, quando, na realidade, a vergonha havia se instalado por todos os lados desde o incidente. Sentiu o aroma do seu vício e aceitou desviar um pouco sua atenção.— Não acho que...— Giovani — ela interpelou o comentário sem sentido, afinal poderia fingir desinteresse, mas estava longe de ser uma pessoa surda. Os buchichos flutuavam ao redor dela.— Certo. Desculpe. — Ambos saborearam suas bebidas, Giovani com seu café bem forte e amargo.— Dois dias já se passaram, e ainda sou o assunto do momento.
Daisy não era tão irresponsável quanto sua irmã mais velha costumava afirmar. Tudo bem que às vezes falhas aconteciam, mas, em sua defesa, chegar atrasada ao trabalho fazia parte da sua função dentro da empresa. É lógico que seu cargo se restringia à realização de serviços de pesquisa por e-mail, telefone e elaboração de planilhas e gráficos. Trocar o sono por horas e horas assistindo à sua série favorita não condizia com suas obrigações. No entanto, antes de ser funcionária, ela também era cliente. Então...— Outra vez, Daisy? — A chefe tentou soar como uma general repreendendo seu soldado. Tudo um fingimento, é claro. Lígia era uma pessoa que exibia uma postura rígida, mas tinha um coração tão caloroso quanto um dia de verão.— Desculpe
Novamente, o final daquela visão foi constrangedor, uma mistura de vergonha alheia com lágrimas e risadas em excesso. No entanto, havia uma diferença quase palpável e satisfatória que deixou Daisy com o coração acelerado.Na verdade, bastou somente a união de algumas palavras – “previsão”, “futuro”, “lenda” e “dom” – para que a irmã nem mais nova ou a mais velha permitisse que a esperança dominasse suas emoções— Gio... — A voz soou num sussurro crescente.— O que foi dessa vez? — Segurou a amiga pelos ombros, virando-a em sua direção.— Gio...! — O som era cada vez mais alto e ambicioso.— Desembucha, garota!— Um cara falando ao telefone sobre lenda, dom, futuro.... — O discurso desarranjado e esperançoso saía
Quando chegou em casa, Daisy sentia-se frustrada com o rumo dos acontecimentos. Na verdade, sendo sincera consigo mesma, sua incompetência dominava todos os seus pensamentos. Ela possuía uma missão simples e objetiva: procurar pistas. No entanto, nada além de uma possível coincidência conseguiu contar para Giovani.— Acho que foi nele que esbarrei na entrada do elevador.— E você não se lembra do rosto da pessoa? — Mesmo que estivesse do outro lado da linha, ela conseguiu detectar a incredulidade na voz do amigo.— Estava com tanta pressa que nem me importei com isso.— Então voltamos ao ponto de partida. Um homem, palavras soltas e as suas desconfianças. Talvez não lhe reste alternativa, a não ser ele aparecer novamente em suas visões.Sim, ela pensou em responder. No fundo, até verbalizou essa constataç&atil
Quatro irmãs e uma casa de porte médio. Dessa forma, não sobrava muito espaço para privacidade. Ir ao banheiro com tranquilidade ou até mesmo individualidade era algo digno de ser descrito numa ata de reunião de diretoria.No entanto, ao longo dos anos de convivência imposta, alguns macetes foram se enquadrando na rotina das meninas Kim Lopez. Assim como a união dos sobrenomes dos pais, elas aprenderam que a individualidade de roupas, acessórios, maquiagens ou qualquer outro item de uso pessoal não combinaria com aquela dinâmica. Claro que cada uma possuía seu gosto, e somente esse detalhe lhes dava algum tipo de egoísmo em seus pertences— Você sabe onde estão aqueles tênis vinho com listras brancas? — a irmã três anos mais velha que Daisy e dois anos mais nova que a primogênita perguntou enquanto vasculhava o guarda-roupa.
— Está tudo bem? — A respiração elevada e a falta de resposta deixaram Daisy apreensiva. — Ei, você está bem? Consegue estender sua mão? Assim posso ir até você. — Aproximou-se com cautela, procurando a dona daquela agitação até encontrar mãos frias e úmidas.— Desculpe. — Escorada num dos cantos do elevador, a aflita funcionária tentava manter a calma. A voz saía pausadamente, como se o simples fato de falar requeresse mais do que a sua vontade. — Tenho fobia de lugares fechados.De repente, as luzes voltaram a iluminar o local. Daisy pôde ver com bastante clareza como a moça, que parecia uma menina ainda no auge da sua adolescência, estava muito pior do que ela imaginara.— Não é melhor você se sentar um pouco? — A funcionária de cabelo claro negou com a cabe&c
Então o cara do suco se chama Saulo, Daisy pensou, enquanto Camila discorria sua rotina como assistente. De acordo com sua mais nova amiga, naquele andar trabalhavam os dois diretores recém-contratados. Como tudo ainda estava no clima de “lua de mel”, informações pessoais ou até mesmo detalhes mais objetivos sobre eles ou, mais especificamente, sobre o Saulo ainda eram desconhecidos.— Dizem que ele foi “roubado” — as aspas no ar e a voz sussurrada para enfatizar a palavra, mesmo que estivessem sozinhas na escada, deram um ar de cumplicidade entre as duas — de outro streaming.— Uau. Então ele dever ser muito bom mesmo.— Acredito que sim, mas, como faz pouco tempo que ele chegou, não posso confirmar.— Vamos torcer para ele ser um ótimo chefe. — Deu um tapinha na mão da assistente, um gesto adquirido de sua m&
Seria lindo e até um tanto romântico o resultado daquele esbarrão, se Camila não tivesse irrompido no encontro de Daisy e Saulo, exibindo toda a sua preocupação com o futuro dela, da pesquisadora e da camisa.Talvez, se estivessem sozinhos, eles teriam se assustado – como aconteceu –, depois tentariam se ajudar para limpar a bagunça e, quando a filha de Jina revelasse que também fora alvo daquele bendito suco de laranja, ambos gargalhariam da situação enquanto seus olhos se fixavam um no outro.Contudo, nada de romantismo os embalou, uma vez que Saulo proferiu seu descontentamento através de palavras impronunciáveis para aquele horário e local e correu para o banheiro.— Acho melhor você também limpar sua calça — Camila comentou antes de se dirigir até sua mesa e solicitar um funcionário da limpeza para cuidar