— E aí? Está muito ruim? — Giovani puxou uma cadeira próxima e sentou-se ao lado da amiga, colocando sobre a mesa a bebida preferida dela: café com calda de chocolate e leite, quanto mais espumoso melhor.
— O que você acha? — Daisy tinha os olhos fixos na tela do computador, tentando exibir uma postura indiferente, quando, na realidade, a vergonha havia se instalado por todos os lados desde o incidente. Sentiu o aroma do seu vício e aceitou desviar um pouco sua atenção.
— Não acho que...
— Giovani — ela interpelou o comentário sem sentido, afinal poderia fingir desinteresse, mas estava longe de ser uma pessoa surda. Os buchichos flutuavam ao redor dela.
— Certo. Desculpe. — Ambos saborearam suas bebidas, Giovani com seu café bem forte e amargo.
— Dois dias já se passaram, e ainda sou o assunto do momento.
— Se quiser, posso mudar isso, talvez andar com a braguilha aberta ou enviar algum vídeo de sacanagem no grupo dos funcionários.
— Você já fez isso. — Havia um tom de resignação inconfundível na voz da amiga.
Não foi um dos melhores momentos da vida do melhor programador da empresa, mas, em sua defesa, recebeu vários apoiadores e seguidores após o pequeno descuido. Bebida e celulares definitivamente não combinavam.
— Desculpe por não a ajudar naquela hora, na verdade acabei piorando.
— Está tudo bem, Giovani. Você não teve culpa, e nós sabemos muito bem que não dá para mudar os fatos. — Nem mesmo o doce de sua bebida conseguia diminuir a vergonha da sua “bexiga solta”.
Quanto mais tentava lutar contra a realidade, mais Daisy se machucava. Essa era a verdade da situação, um fato que ela nunca desejou e de que, infelizmente, não conseguia se livrar.
Senhor Lair, pai de Daisy, costumava chamar de dom, uma aptidão passada de pai para filha sem qualquer justificativa ou uma sequência lógica. Afinal, dentre as quatro irmãs, somente a assistente de pesquisa de uma plataforma de streaming foi “abençoada” com aquela habilidade.
— Por que eu, pai? — Essa foi a primeira pergunta entre as demais que viriam com o tempo, ainda no auge dos seus sete anos.
— Não sei, filha. — O senhor encarou o rosto da filha mais nova, reconhecendo os traços da incredulidade com a situação, algo que acontecera com ele muitos anos antes, quando tivera o primeiro contato com a herança de família.
— Para que serve isso? Como faço para parar? O que os outros irão dizer? Por que não aconteceu com as minhas irmãs? — As mãos estavam enganchadas na cintura fina, numa pose de pura imaturidade, a face úmida pelas lágrimas derramadas.
— Daisy, venha aqui, minha menina. — Como a mais obediente da turma, ela seguiu o comando. Os olhos cor de mel, herdados do pai e motivo de orgulho, exibiam pontos vermelhos devido ao choro excessivo. — Não tenho respostas para todas as suas perguntas. Assim como você, também não entendo muito bem como funciona, mesmo depois de todos esses anos. Seus tios, meus irmãos, também não receberam esse dom. Na verdade, ninguém da nossa família sabe exatamente como surgiu e o motivo.
— Mas eu não quero isso, pai. Não tem como parar?
— Eu também não queria, Daisy, e infelizmente não tem como parar. Há anos procuramos respostas, fazemos pesquisas, e ainda não encontramos nada. Assim como eu, seu avô, sua bisavó e tantos outros que já passaram pelo que você está sentindo agora, temos somente que aprender a lidar com as consequências, às vezes boas, outras não.
— Como hoje... — Baixou a cabeça, escondendo a vergonha e a decorrência daquela aptidão ilógica.
— Exatamente. — Ergueu o rosto da filha com delicadeza. Seu pai fizera o mesmo gesto com ele, lembrou-se.
— Eu sabia o que iria acontecer, tentei me esconder, até mesmo mudei os meus horários, mesmo assim levei uma bolada que nem sei de onde veio e perdi o meu dente. Olha aqui! — Apontou para a famosa “janela” na boca de uma criança e permitiu que o choro recomeçasse.
Lair a trouxe para dentro do seu abraço, aceitando aquele drama em excesso. O dente em questão nem deveria estar mais ali, pensou. Já passara da hora de trocar pelos mais resistentes, e a bola desgovernada tinha surgido para fazer esse trabalho.
No entanto, não era esse fato que trazia lágrimas e mais lágrimas para a menina de sete anos, e sim o que implicava todo aquele movimento. E, infeliz ou felizmente, o senhor de compleição forte e coração gentil conhecia muito bem aquela parte.
Assim como o pai, Daisy teve suas primeiras visões por volta dos seis anos. De início, pensou se tratar de um sonho iguais àqueles a que assistia nos desenhos. Depois, estranhou que esses tais “sonhos” se concretizassem. Achou “legal” e, até certo ponto, divertido. Por um tempo, guardou segredo da família, pois, dentro de sua lógica infantil, parecia ter superpoderes, e eles deveriam ficar escondidos.
Contudo, nem todos os acontecimentos foram tão cômicos como imaginava; alguns bem trágicos, principalmente para uma menina que mal compreendia muito bem o que aquele dom representava.
Finalmente, depois de um evento bem calamitoso ocorrido na porta da escola, o qual ela até tentou desviar, compreendeu que necessitava de ajuda. Naquele dia, uma pomba bem-posicionada trouxe gargalhadas dos coleguinhas de sala e lágrimas de Daisy.
E, mesmo após tantos anos, com a compreensão quase completa com relação ao seu dom, Daisy, às vezes, voltava a ser aquela menininha chorosa sentado no colo do pai, quando não coberta de vergonha, como no caso do banheiro ocupado.
Daisy não era tão irresponsável quanto sua irmã mais velha costumava afirmar. Tudo bem que às vezes falhas aconteciam, mas, em sua defesa, chegar atrasada ao trabalho fazia parte da sua função dentro da empresa. É lógico que seu cargo se restringia à realização de serviços de pesquisa por e-mail, telefone e elaboração de planilhas e gráficos. Trocar o sono por horas e horas assistindo à sua série favorita não condizia com suas obrigações. No entanto, antes de ser funcionária, ela também era cliente. Então...— Outra vez, Daisy? — A chefe tentou soar como uma general repreendendo seu soldado. Tudo um fingimento, é claro. Lígia era uma pessoa que exibia uma postura rígida, mas tinha um coração tão caloroso quanto um dia de verão.— Desculpe
Novamente, o final daquela visão foi constrangedor, uma mistura de vergonha alheia com lágrimas e risadas em excesso. No entanto, havia uma diferença quase palpável e satisfatória que deixou Daisy com o coração acelerado.Na verdade, bastou somente a união de algumas palavras – “previsão”, “futuro”, “lenda” e “dom” – para que a irmã nem mais nova ou a mais velha permitisse que a esperança dominasse suas emoções— Gio... — A voz soou num sussurro crescente.— O que foi dessa vez? — Segurou a amiga pelos ombros, virando-a em sua direção.— Gio...! — O som era cada vez mais alto e ambicioso.— Desembucha, garota!— Um cara falando ao telefone sobre lenda, dom, futuro.... — O discurso desarranjado e esperançoso saía
Quando chegou em casa, Daisy sentia-se frustrada com o rumo dos acontecimentos. Na verdade, sendo sincera consigo mesma, sua incompetência dominava todos os seus pensamentos. Ela possuía uma missão simples e objetiva: procurar pistas. No entanto, nada além de uma possível coincidência conseguiu contar para Giovani.— Acho que foi nele que esbarrei na entrada do elevador.— E você não se lembra do rosto da pessoa? — Mesmo que estivesse do outro lado da linha, ela conseguiu detectar a incredulidade na voz do amigo.— Estava com tanta pressa que nem me importei com isso.— Então voltamos ao ponto de partida. Um homem, palavras soltas e as suas desconfianças. Talvez não lhe reste alternativa, a não ser ele aparecer novamente em suas visões.Sim, ela pensou em responder. No fundo, até verbalizou essa constataç&atil
Quatro irmãs e uma casa de porte médio. Dessa forma, não sobrava muito espaço para privacidade. Ir ao banheiro com tranquilidade ou até mesmo individualidade era algo digno de ser descrito numa ata de reunião de diretoria.No entanto, ao longo dos anos de convivência imposta, alguns macetes foram se enquadrando na rotina das meninas Kim Lopez. Assim como a união dos sobrenomes dos pais, elas aprenderam que a individualidade de roupas, acessórios, maquiagens ou qualquer outro item de uso pessoal não combinaria com aquela dinâmica. Claro que cada uma possuía seu gosto, e somente esse detalhe lhes dava algum tipo de egoísmo em seus pertences— Você sabe onde estão aqueles tênis vinho com listras brancas? — a irmã três anos mais velha que Daisy e dois anos mais nova que a primogênita perguntou enquanto vasculhava o guarda-roupa.
— Está tudo bem? — A respiração elevada e a falta de resposta deixaram Daisy apreensiva. — Ei, você está bem? Consegue estender sua mão? Assim posso ir até você. — Aproximou-se com cautela, procurando a dona daquela agitação até encontrar mãos frias e úmidas.— Desculpe. — Escorada num dos cantos do elevador, a aflita funcionária tentava manter a calma. A voz saía pausadamente, como se o simples fato de falar requeresse mais do que a sua vontade. — Tenho fobia de lugares fechados.De repente, as luzes voltaram a iluminar o local. Daisy pôde ver com bastante clareza como a moça, que parecia uma menina ainda no auge da sua adolescência, estava muito pior do que ela imaginara.— Não é melhor você se sentar um pouco? — A funcionária de cabelo claro negou com a cabe&c
Então o cara do suco se chama Saulo, Daisy pensou, enquanto Camila discorria sua rotina como assistente. De acordo com sua mais nova amiga, naquele andar trabalhavam os dois diretores recém-contratados. Como tudo ainda estava no clima de “lua de mel”, informações pessoais ou até mesmo detalhes mais objetivos sobre eles ou, mais especificamente, sobre o Saulo ainda eram desconhecidos.— Dizem que ele foi “roubado” — as aspas no ar e a voz sussurrada para enfatizar a palavra, mesmo que estivessem sozinhas na escada, deram um ar de cumplicidade entre as duas — de outro streaming.— Uau. Então ele dever ser muito bom mesmo.— Acredito que sim, mas, como faz pouco tempo que ele chegou, não posso confirmar.— Vamos torcer para ele ser um ótimo chefe. — Deu um tapinha na mão da assistente, um gesto adquirido de sua m&
Seria lindo e até um tanto romântico o resultado daquele esbarrão, se Camila não tivesse irrompido no encontro de Daisy e Saulo, exibindo toda a sua preocupação com o futuro dela, da pesquisadora e da camisa.Talvez, se estivessem sozinhos, eles teriam se assustado – como aconteceu –, depois tentariam se ajudar para limpar a bagunça e, quando a filha de Jina revelasse que também fora alvo daquele bendito suco de laranja, ambos gargalhariam da situação enquanto seus olhos se fixavam um no outro.Contudo, nada de romantismo os embalou, uma vez que Saulo proferiu seu descontentamento através de palavras impronunciáveis para aquele horário e local e correu para o banheiro.— Acho melhor você também limpar sua calça — Camila comentou antes de se dirigir até sua mesa e solicitar um funcionário da limpeza para cuidar
— Espera. Fiquei um pouco confuso. Você sujou a roupa do cara do suco, depois mentiu para ele, e ainda marcaram de se comer? — Giovani pegou os pedidos prontos feitos para a atendente da cafeteria localizada no térreo da empresa. Entregou o de Daisy, e caminharam juntos de volta para seu andar, pelas escadas.— Ninguém vai comer ninguém, seu pervertido. — Daisy já estava acostumada com os comentários um tanto singulares do amigo, mesmo assim olhou ao redor buscando curiosos. — Nós iremos comer juntos.— Mas você disse que a expressão no rosto dele, que eu não sei exatamente qual seria essa, provavelmente combina com o meu comentário. — Parou um pouco, segurando o braço da amiga, a confusão estampada na face bem-barbeada. Giovani era um homem lindo, carismático, mas, infelizmente, nem uma chama sequer, a menor possível, despert