ANDREW
A solidão era sempre a minha melhor companhia. Havia vozes demais falando dentro da minha cabeça e do meu coração, tantas que se tornava quase insuportável, às vezes, estar com outras pessoas. Eu sentia como se não pertencesse a lugar algum; como se a imagem do bastardo, impuro e indigno me seguisse por onde quer que eu fosse.
E eu poderia jurar que isso nunca me incomodou. Se eu tivesse descoberto de onde vinha quando era criança, talvez as coisas fossem diferentes. Talvez, suportar aquele tipo de comentário na escola, especialmente os que ofendiam a minha mãe, pudesse ter me causado problemas, mas quando se tem quinze anos e já passou por todas as coisas que eu passei, esse tipo de ofensa não nos atinge mais.
Minha mãe estava muito doente quando decidiu me contar quem era o meu pai. Não fiquei nem um pouco deslumbrado quando descobri que havia sangue real correndo pelas minhas veias. Fiquei puto. Principalmente porque sabia que dali em diante minha vida se tornaria um inferno. Na verdade, minha mãe me avisou isso. Ela disse que demorou tanto para me contar a verdade, porque imaginava que no momento em que fosse revelada a existência de um filho bastardo do rei, este garoto jamais teria paz.
Ela não poderia estar mais certa.
Desde o início, fui alertado de que jamais poderia assumir o trono, mesmo sendo mais velho do que Richard, o que me fez dar graças a Deus. Eu não queria aquela responsabilidade. Mas também me avisaram que eu jamais seria visto como um membro legítimo da realeza, porque sangue bastardo sempre correria pelas minhas veias. Novamente, estava pouco me lixando para isso. A única coisa que me incomodava era que dissessem que o sangue da minha mãe era menos nobre do que o daquelas pessoas, porque era a maior inverdade que já me contaram. Nunca naquele mundo houvera alguém tão corajoso, tão forte e tão digno quanto ela.
Porém, pela primeira vez na minha existência, a vontade de pertencer a algum lugar começava a me incomodar. Pela primeira vez, invejei o fato de Richard ser o herdeiro ao trono. Pela primeira vez... eu almejei estar no lugar dele. Por causa dela. A única coisa que eu realmente desejava na vida.
Eu sabia que era um tolo. Jillian sempre esteve ali, e ela nunca fez distinção por eu ser um bastardo. Tanto que quando eu entrei para a família, ela me recebeu de braços abertos, oferecendo sua amizade, daquele jeito doce que sempre me encantou. Foi ela que convenceu Richard de que seria legal ter um irmão e que nós poderíamos ser amigos. Só que eu estraguei tudo. O peso de ser quem eu era acabou me tornando uma pessoa introspectiva, quase sombria, e eu nunca me achei digno de nada. Nem mesmo de tentar conquistar a garota que ganhou meu coração desde a primeira vez em que a vi.
Ela sempre foi uma coisinha linda, mas conforme foi desabrochando, eu me via mais e mais perdido. Todas as vezes que jurava que iria tentar uma aproximação, desistia, imaginando que depois de ter estabelecido uma distância tão grande entre nós, jamais poderia trazê-la de volta. E agora, eu via as poucas chances que poderia ter serem levadas com o vento.
Naquela noite, ela se comprometeria com o meu irmão, e eu a perderia para sempre. Exatamente por isso, precisei espairecer um pouco.
Saí com a moto meio sem rumo, vagando pela cidade. Não tinha pretensões de voltar até ter a certeza de que o jantar estaria terminado. Seria uma indelicadeza, é claro, já que eu era irmão do noivo, mas nunca fui conhecido por ser um homem gentil ou firme aos estúpidos protocolos da sociedade. Porém...
Ah, merda! Eu só queria vê-la. Podia parecer estúpido da minha parte, mas aquelas eram as poucas chances que me restavam para ficar perto de Jillian.
Só não contava chegar e encontrar as mãos imundas de Frederik nela.
Frederik sempre foi a principal erva daninha da família. Ou melhor, de toda a nobreza. A maioria das pessoas ou me tratava com o mínimo de educação ou simplesmente me ignorava. Com exceção do meu pai e de Richard, que não faziam muita distinção por causa da minha condição, o resto apenas me tolerava. A única pessoa que parecia ter prazer em me importunar era aquele cara. Meu primo. Embora ele não admitisse de forma alguma este fato.
Em todas as festas ou eventos reais, ele estava presente e fazia de tudo para me provocar, esperando uma reação. No início, eu sempre revidava e levava a melhor, porque tinha vantagens em tamanho e por ter crescido nos subúrbios. Era mais forte, mais esperto e mais burro também, aparentemente, pois a fama de encrenqueiro começou a me perseguir.
E depois... bem... Depois ela se tornou ainda mais perigosa, depois do acidente que mudou a minha vida. Foi esse acidente, aliás, que fez com que Jillian começasse a olhar para mim como se eu fosse um monstro, alguém capaz de fazer mal a ela e aos outros. Isso me destruiu.
Mas por mais que eu fosse considerado a ovelha negra da família, o desajustado, o problemático, a semente do mal... eu sabia que Frederik era muito, muito pior.
Exatamente por isso, assim que cheguei, decidido a subir direto para o meu quarto, e a primeira coisa que ouvi foram as vozes de Frederik e de Jillian, compreendi que havia algo de errado.
Consegui espantar aquele babaca, mas me restou exatamente o que eu não queria que acontecesse: para levar Jillian em segurança até Richard, eu precisaria, de certa forma, me misturar àquelas pessoas.
Claro que a opção de deixá-la com meu irmão e simplesmente fugir para o meu quarto e permanecer por lá durante o resto da noite era tentadora demais, mas não seria assim tão simples. Eu era irmão do noivo ‒ por mais que isso doesse pra caralho ‒ e precisava agir como exigiam os protocolos. Além do mais, deixar Jillian desamparada com Frederik por perto também não era um cenário que me agradasse. Tudo bem que Richard poderia defendê-la, mas era mais complicado que tomasse uma atitude intempestiva, a julgar por sua posição. Se eu precisasse dar um soco na cara do babaca, eu daria sem me importar com as consequências.
E foi exatamente isso que aconteceu; quando aproximei-me de Richard para entregar-lhe Jillian, meu pai veio a mim, parecendo mais animado do que nunca, e praticamente me intimou a ir trocar de roupa e retornar para jantar com eles.
Em qualquer outra ocasião, eu inventaria uma desculpa e acabaria sendo respeitado, porque normalmente ninguém sentia muito a minha falta naquelas ocasiões; contudo, me vi apenas assentindo e quando dei por mim, já estava novamente lá embaixo, com uma taça de vinho na mão, de banho tomado e vestido com uma calça e blusa sociais pretas, e um blazer marfim, sentindo uma imensa falta do meu jeans e minha inseparável jaqueta de couro.
Ouvia as gargalhadas, enquanto todos se divertiam e eu permanecia sozinho, destacado. Volta e meia meus olhos recaíam sobre Jillian, e percebia que ela também não estava achando tanta graça. Na verdade, era fácil enxergar a melancolia que pintava seus olhos e a deixava com uma aparência desesperadoramente triste.
Quando fomos encaminhados à mesa, no salão anexo, ela estava posta de forma a nos oferecer um banquete. Vários tipos de salada já estavam dispostos, além de outros pratos frios, como carpaccio, patê de foie gras, alguns tipos de queijos e presunto de Parma. Não éramos nem dez pessoas, mas só as entradas já seriam suficientes para alimentar, pelo menos, umas vinte, bem servidas.
Por ironia do destino, o lugar destinado a mim era bem em frente ao de Jillian, o que me dava uma visão perfeita de todas as suas expressões tristonhas. Começamos a comer, os criados serviram os outros pratos, e eu me mantive em silêncio, já que minha opinião nunca era solicitada. Jill também parecia mais calada do que o normal, como se um pouco do fogo que sempre a acompanhava tivesse se extinguido. Eu odiava isso.
Após o jantar, seguimos novamente para o salão, onde meu pai estourou um champanhe.
Com nossas taças na mão, preenchidas, um tilintar foi ouvido, e eu vi que meu pai estava anunciando que iria compartilhar algumas palavras. Todos, portanto, interromperam suas conversas paralelas para darem ouvidos a ele.
— Não é um anúncio formal nem nada do tipo... Só quero afirmar que estou muito feliz com esta união, porque sei que ela dará bons frutos; não apenas herdeiros bonitos, já que minha futura nora é belíssima, mas também sei que você, minha querida, será uma companhia maravilhosa para meu filho quando ele subir ao trono. Espero que, desde agora, sinta-se parte da família! — Meu pai ergueu a taça, e todos nós brindamos à linda noiva do meu sortudo irmão.
— Belas palavras, meu tio, e a moça realmente é belíssima. Só acho uma pena que alguns de nossos costumes estejam se perdendo ao longo do tempo. Há alguns anos seria terminantemente proibido que o príncipe herdeiro se casasse com uma plebeia — Frederik novamente preencheu a sala com sua coleção de baboseiras, que ele tanto gostava de vomitar.
Um silêncio se formou, e meus olhos imediatamente buscaram Jill, a alguns centímetros de distância, e me deparei com seus olhos chispando ódio. Eu sabia que ela tinha a língua afiada o suficiente para se defender sozinha, mas estava acuada em sua nova posição como noiva do futuro rei. Eu a compreendia muito bem. Sabia que a escolha entre ficar calada e obedecer seus instintos poderia ser difícil.
Uma difícil escolha também começou a se formar em minha cabeça. Eu poderia ignorar tudo e deixar a ofensa passar, mas uma agonia pesava em minha garganta, além da certeza de que precisava fazer alguma coisa. Deixar uma situação como aquela passar iria completamente contra meus princípios.
— Sangue real não define caráter. A nobreza não está livre de algumas maçãs podres, e eu acho que conheço algumas — falei, olhando para ele, não deixando nenhuma dúvida de que era o alvo da minha indireta.
Fred abriu um sorriso malicioso, levando a bebida aos lábios, mas eu sabia que a discussão não iria parar por ali.
— Ah, certamente a nobreza tem maçãs podres, principalmente aquelas que nascem em quintais alheios e cismam em tentar um lugar ao sol. Mas o que esperar de filhos de mulheres que não se importam em destruir casamentos e só querem dar um belo golpe em um rei?
Aquelas palavras atingiram minha cabeça como uma paulada, tanto que cheguei a ficar zonzo. O sangue começou a correr de forma alucinada pelas minhas veias, ardendo como um veneno. Nem sequer pensei duas vezes antes de lançar minha taça de cristal ao chão e voar em cima dele, segurando-o pelo pescoço e imprensando-o na parede, fazendo suas costas colidirem com o concreto de forma violenta.
— Não fale da minha mãe desse jeito! — vociferei e me surpreendi com o tom animalesco da minha própria voz.
Apesar da careta de dor que surgiu em seu rosto quando o joguei contra a parede, em nenhum momento ele perdeu a expressão desdenhosa irritante que incitava todos os meus instintos mais violentos.
— Está vendo como os vira-latas se revelam mais cedo ou mais tarde?
Novamente perdi a razão e quando dei por mim já estava lançando o punho na cara dele. Braços me enlaçaram por trás, enquanto ele despencava no chão, tirando-me de perto daquele babaca.
— Calma, cara! — a voz de Richard me fez voltar a mim, e a primeira pessoa para quem olhei foi Jillian. Ela olhava para mim, e eu não conseguia interpretar sua reação, mas temia que fosse medo, porque eu realmente tinha passado dos limites.
— Tio George, você deveria manter seus cachorros presos no quintal, porque um deles está muito raivoso — Fred falou, arrumando seu paletó, enquanto sua esposa o abraçava, como se eu tivesse ameaçado sua vida e não arrancado apenas um filetinho de sangue daquela boca odiosa.
— Andrew, saia daqui. Vá se acalmar! — meu pai ordenou com sua autoridade de rei, e foi então que eu percebi que ainda estava com os punhos cerrados, cravando as unhas nas palmas das mãos.
Não disse nada, porque temia que as palavras que diria incitassem ainda mais violência. Sendo assim, apenas dei alguns passos para trás, ainda olhando para Jillian, que também continuava a me observar, e saí do salão.
A passos largos, fui direto para o jardim do palácio, o único lugar onde imaginei que poderia tentar arejar a cabeça e me acalmar.
Sentei-me em um banco, de frente para o enorme labirinto da propriedade. Nunca compreendi o motivo de cultivarem aquele tipo de coisa. Na minha opinião, era assustador, mas, naquele momento, ele começou a me trazer algum tipo de paz e boas lembranças. Esperava que isso pudesse bastar para que eu esquecesse a briga com aquele idiota.
***
JILLIAN
Eu ainda não conseguia me mover. A cena que se desenrolara na minha frente parecia surgir na minha cabeça em looping, como um filme repetitivo. Não esperava que fôssemos viver emoções tão intensas em tão pouco tempo.
Mas esperava menos ainda que Andrew se esforçasse tanto para me defender. Em mais de uma ocasião. Desde quando ele passara a se importar tanto comigo?
Enquanto eu ainda tentava acalmar meu coração, depois de Andrew ter saído, Richard se aproximou, colocando as mãos em ambos os meus braços e virando-me para ele.
— Você está bem? — indagou, parecendo preocupado.
— Estou. Não foi nada de mais, já vimos coisas piores. — Abri um sorriso para disfarçar minha inquietação.
— Não estou falando da reação de Andrew, mas pela forma como Fred te tratou.
— Ah, e você acha que eu ligo para ele? Além do mais, ele falou a verdade. Eu não sou da nobreza.
— Não, não é, mas Andrew também estava certo quando disse que há muita podridão no nosso mundo. — Ele fez uma pausa. — Eu adoraria reagir como meu irmão, mas aquele comportamento é bem mais a cara dele do que a minha.
O engraçado era que eu não conseguia visualizar Andrew como o homem que diziam que ele era. Para mim, sempre pareceu apenas um cara fechado, pacato, com uma bagagem pesada, que parecia, às vezes, carregar o mundo nas costas. Ele era fechado, sim, talvez um pouco sombrio, mas além dos boatos que o rondavam, nunca o vi perder a cabeça. E olha que não lhe faltavam motivos.
— Acho que vou dar uma volta, tudo bem? Pegar ar fresco — anunciei.
— Claro. Quer companhia?
— Eu queria ficar um pouco sozinha.
— Tudo bem... — Richard se inclinou e me beijou na boca. Eu quase recuei, pela estranheza que o ato ainda me causava, mas aquilo seria uma constante entre nós a partir daquele momento.
Saí do salão e segui para o jardim, na esperança de conseguir tomar um ar por lá. Tinha toda a intenção e o desejo de ficar sozinha, mas acabei dando-me por satisfeita quando avistei uma silhueta masculina de frente para o labirinto. Talvez estivesse mesmo na hora de lhe agradecer por todas as coisas que vinha fazendo por mim.
Comecei a me aproximar devagar, observando-o com cautela, como se fosse um animal selvagem a quem eu precisaria domar. Seus ombros estavam tensos, como se ele jamais relaxasse, nem mesmo quando pensava que estava sozinho.
Continuei me aproximando até que me sentei ao seu lado no banco, fazendo-o sobressaltar-se.
— Desculpa, eu não queria te assustar — falei, um pouco sem jeito, porque não fazia a mínima ideia de como me dirigir a ele.
Ele hesitou antes de falar, ficando alguns instantes em silêncio enquanto olhava para mim.
Era sempre estranho ficar perto dele, porque eu era uma pessoa falante. Com Andrew, porém, nunca sabia o que dizer. E ele era mais calado do que uma árvore.
— Não me assustou. Eu só não esperava...
— Companhia? — completei sua frase, e ele assentiu, embora sua expressão desse a entender que não era exatamente isso o que iria dizer. — Eu também não esperava, mas talvez seja melhor assim. — Ergui meus olhos para ele e vi seu cenho franzir, em uma expressão de confusão.
Deus, ele era bonito. Não que eu não tivesse reparado nisso antes, em nossos vários anos de “convivência”, mas era a primeira vez ‒ ao menos que eu me lembrasse ‒ que ficávamos tão próximos, sozinhos e sem que nenhum desastre se desenrolasse à nossa volta. Aqueles olhos muito azuis me fitavam com atenção, esperando que eu explicasse minha teoria, e seria muito fácil me perder neles, caso Andrew não me deixasse tão hesitante.
Como o silêncio estava desconfortável demais, pigarreei e prossegui.
— Ainda não tinha tido a oportunidade de te agradecer. — Abri um sorriso. — É melhor que eu faça isso de uma vez, antes que fique ainda mais em débito, já que você parece sempre estar por perto quando preciso. Ao menos nos últimos tempos.
Andrew não falou nada por um momento, apenas abaixou a cabeça, parecendo fugir dos meus olhos.
— Só não quero que você fique encrencado por minha causa.
Ele deu de ombros, e por alguns instantes acreditei que me deixaria ali, falando sozinha, mas, não. Andrew virou-se novamente para mim.
— E eu não quero que ninguém fale com você daquela forma. Você é muito melhor do que todos eles.
Aquilo me surpreendeu, especialmente pela forma como a informação foi proferida, de forma tão convicta, quase apaixonada, me fazendo sentir o coração perder uma batida. Por mais que ele ainda me deixasse um pouco relutante, era difícil manter-me indiferente à sua presença.
— As coisas andam tão complicadas... — confessei, sem nem saber por quê. Não éramos amigos, longe disso, mas talvez ele fosse apenas o ouvido disponível naquele momento.
— A vida é complicada — ele pareceu devagar, provavelmente falando por experiência falando por experiência própria. A vida dele era bem mais ferrada do que a minha. — Mas você não deveria aceitar fazer o que não quer fazer.
Minha cabeça virou na direção dele como um chicote. Eu sabia ao quê ele estava se referindo.
— Certas escolhas não nos pertencem — respondi, esperando que ele se contentasse com aquela resposta. Por um momento, acreditei que me livraria daquele assunto, mas Andrew levou a mão aos cabelos dourados, passando-a pelos fios e despenteando-os um pouco. Parecia tenso, o que me preocupou.
— Nada disso é sua responsabilidade. Você não precisa se sentir coagida a se casar para proteger um país. É cruel e egoísta da parte deles! — ele parecia novamente muito incisivo ao falar, como se realmente quisesse me convencer de suas próprias palavras.
— Seria egoísta da minha parte fechar os olhos. Quer que alguém como Fred sente-se no trono?
— Não, é claro que não! Mas Richard deveria resolver este problema sem envolvê-la.
— Ah, e como ele resolveria? Casando-se com alguém que nunca viu na vida? — indignei-me.
— Seria um problema dele, Jillian! — ele falou também com indignação, e eu poderia ter me fixado apenas em seu tom de voz, mas ouvi-lo falar o meu nome daquela forma provocou uma sensação muito estranha no meu coração. — Você não deveria ser inserida nessa podridão toda. Tenho medo que dificultem as coisas para você, mais ainda do que Fred tem dificultado.
Franzi o cenho levemente confusa com aquela conversa e o tom que Andrew havia assumido. Talvez a melhor escolha fosse levantar dali e escapar do clima estranho que a conversa estava tomando, mas eu simplesmente não conseguia me afastar. Não com aquela forma intensa com que ele me olhava. Seus olhos azuis eram magnéticos, e eu me sentia presa a eles.
Porém, ele deve ter percebido minha hesitação, porque simplesmente abaixou a cabeça, quebrando nosso contato visual.
— Me desculpa. Eu não deveria me meter nisso. A escolha é sua.
Eu não disse nada. E como poderia dizer? Odiaria admitir que ele estava certo, que eu estava me sentindo sufocada só pelo fato de me imaginar subindo ao altar e me tornando esposa de alguém, sendo tão jovem ‒ ainda mais esposa de um monarca ‒, mas também detestaria dizer que estava errado e que me sentia feliz pela oportunidade de servir meu país daquela forma. Eu não era militar, não havia jurado amor eterno à pátria. Não era meu dever lutar por Manselo. Porém, ainda assim, estava tomando uma decisão em nome daquele povo.
Talvez não fosse uma questão de altruísmo, mas de burrice.
Ficamos, então, calados por algum tempo, os dois olhando para o manto estrelado sobre nossas cabeças. Era quase uma ironia que o céu ainda se apresentasse daquela forma tão linda e serena, enquanto o mundo ruía ao nosso redor.
— Você não é de falar muito, é? Acho que foi a primeira vez que te ouvi soltar mais do que dez palavras em uma conversa — tentei dizer alguma coisa só para que ele continuasse falando e o clima não ficasse ainda mais pesado.
— Gosto do silêncio. Costumo abrir a boca só quando vale a pena.
Aquela constatação me feriu um pouco. Eu poderia ter deixado passar, mas, de alguma forma, queria que ele explicasse. Será que conversar comigo não valia de nada?
— E agora não vale? — indaguei, tentando engolir minha indignação. Não queria que ele percebesse o quanto sentia vontade de que conversasse mais comigo.
Chegava a ser quase surpreendente o fato de eu estar tão interessada na companhia e na conversa de Andrew, levando em consideração que passei bastante tempo desprezando-o. Na verdade, fora ele quem se mostrara indiferente primeiro e que recusara minha amizade, afastando-se quando ainda éramos muito jovens. Nunca compreendi essa decisão, e por muito tempo simplesmente preferi acreditar que ele não gostava de mim, que não ia com a minha cara, mas essa certeza começava a desaparecer uma vez que ele me defendera tantas vezes e pela forma como passara a se referir a mim. Ninguém fazia tanto por alguém que não suportava.
Antes de responder, porém, ele sorriu de canto, e mais uma vez eu senti meu coração falhar dentro do peito. Uma pequena covinha surgiu ao lado daqueles lábios maravilhosos, e por mais que fosse uma expressão quase sacana, não havia nada nele que indicasse que estava prestes a dizer algo em tom irônico para comigo. Ele parecia debochar de si mesmo, de sua falta de sorte, talvez.
— Eu sempre tenho muito a dizer, Jillian. Principalmente para você. Mas sei que nem sempre as pessoas têm a intenção ou vontade de me ouvir.
Dizendo isso, ele simplesmente se levantou e começou a se afastar, deixando-me sozinha com vários pensamentos conflitantes na cabeça.
JILLIAN Depois do fatídico dia do jantar, as coisas voltaram ao normal. Ou melhor, quase. Dali em diante nada mais seria normal na minha vida, nem antes nem depois do casamento. Nos dias seguintes, eu saía da faculdade e ia direto para o palácio, onde passava mais tempo do que na minha própria casa. Meu futuro sogro havia contratado uma professora para me ensinar etiqueta, e ele e meu pai passavam horas me passando informações sobre a família real, sobre minhas futuras responsabilidades e sobre tudo que eu precisaria saber para me tornar rainha. A professora ‒ Sra. Pomerly ‒ era uma mulher de uns setenta anos, mas de uma elegância &ia
JILLIAN Chegava a ser doloroso pensar que era um sábado, que mal passava das oito da manhã, mas eu já estava saltando de um carro preto elegante, cumprimentando um dos motoristas da família real e entrando no palácio, sendo recebida pela governanta e sua equipe. Eu tinha horários marcados na agenda até o momento da festa. Provas finais do vestido, ensaio de dança, ensaio do discurso ‒ que não fui eu que preparei, é claro ‒, além da melhor parte: eu iria passar algumas horas sendo paparicada com direito a massagem nos cabelos, nas costas, nos pés e um banho de beleza. E isso era apenas a festa de noivado, quando fosse o casamento, no mínimo eu receberia uma semana de mimos. Até que a ideia não me desagradava. 
JILLIAN Precisei me arrumar em tempo recorde para a festa, mas se já não havia um único resquício de animação em minha alma, agora ela parecia mais vazia do que nunca. Eu não iria apenas me casar sem amor, mas também iria entrar em uma trama perigosa, angariando um inimigo contra o qual eu não sabia se poderia lutar. Quando me olhei no espelho, embora todos ao redor tecessem elogios a respeito da minha aparência, não consegui sequer sorrir. Ainda sentia cada resquício do medo de antes, por mais que já estivesse em segurança. Por mais que qualquer um pudesse dizer que eu talvez estivesse exagerando, que estava agindo como alguém sensível demai
ANDREW Ouvi um grito vindo de algum lugar do palácio e imediatamente parei o que estava fazendo para dar atenção, principalmente porque algo me dizia que era Jillian quem estava gritando. E por mais que sua voz soasse um pouco abafada, eu poderia jurar que ouvi um SOCORRO e um ME SOLTA. Minha cabeça começou a girar na mesma velocidade em que meu sangue se pôs a correr dentro das minhas veias. A primeira coisa na qual pensei foi que Fred estava ali e que tinha feito algo para Jillian. Mais uma vez. Saí correndo desesperado, seguindo os gritos e largando o livro que estava lendo sobre a cama. Contudo, antes que eu pudesse alcançá-los, os gritos cessaram, e eu não consegui mais segui-los. Desci, en
JILLIAN Apesar da presença de Fred ‒ que me causou arrepios só de vê-lo ‒, o café-da-manhã seguiu sem nenhum percalço. Demos uma entrevista para a TV local, para o programa de maior audiência, com uma apresentadora que era quase a nossa Oprah Winfrey. Foi até divertido, porque ela fez algumas perguntas que eram fáceis de responder, já que eu e Richard nos conhecíamos pela vida inteira. Trocamos alguns sorrisos cúmplices, e isso certamente contribuiu para que eu o perdoasse mais fácil. Só que eu sabia que isso era errado, portanto, assim que fomos liberados do compromisso, pedi um momento a sós com ele. 
ANDREW Certamente eu não era a melhor companhia naquele dia. Ainda relutei muito em pegar a moto e seguir viagem até a casa de campo, mas algo me impulsionou a fazer isso. Depois da perda que sofri, eu precisava estar perto de Jillian. Não que fosse certo, não que eu planejasse contar para ela o que tinha acontecido, mas só de olhar para seu rosto já me ajudaria a me sentir menos miserável. Acabei me abrindo e confessando mais do que deveria. Não queria que ninguém soubesse do meu trabalho na clínica, mas senti uma vontade quase desesperadora de desabafar, e sabia que só poderia fazer isso com ela. Quando a oportunidade surgiu, eu não vi alternativa, as palavras começaram a escapulir da minha garganta como se precisasse vomitá-
ANDREW Havia muita coisa pesando dentro do meu peito. Pequenas dores que, unidas, formavam uma corrente pesada, difícil de ser rompida. Então, decidi que tentar dormir depois de tudo o que tinha acontecido não seria uma boa ideia. Sempre gostei da noite. Ela sempre foi minha amiga, cúmplice e confidente. Quando saí da casa, na intenção de caminhar um pouco e de ficar próximo à natureza para tentar clarear minhas ideias, meu desejo era buscar a solidão. Aproximei-me da cachoeira, atraído por seu som, mas não esperava encontrar o objeto de meus pensamentos bem ali , sentada sobre a grama, com as pernas fle
JILLIAN Demorei a entender de onde vinha a dor que me fez acordar reclamando. As memórias foram retornando lentas e turvas, até que me dei conta do que tinha acontecido. Apesar disso, não demorei a reconhecer a mão que apertava a minha de uma forma confortadora. Era grande, firme, forte e gentil. Em meio à dor e ao sofrimento, ela se destacava como um ponto de paz e confiança de que tudo ficaria bem. — Calma, meu amor. Vou te dar mais uma dose de analgésico, ok? Só espera um pouco... — Continuei de olhos fechados, enquanto ouvia Andrew se movimentar ao meu redor. Eu sabia que ainda ia demorar a fazer efeito e qu