Um ano antes…
Amelie
A carruagem parou e apertei a saia do vestido com as mãos enluvadas. Estava cansada, foi uma viagem longa.
Olhei para a senhora na minha frente que ainda me encarava com rigor. O rosto enrugado contribuía para uma expressão mais severa, mas ela não parecia ser uma mulher feliz. Dizem que mulheres solteiras ficam amargas com o passar do tempo.
Senhora Olga era a governanta da casa do meu marido, eu nunca o vi pessoalmente, porém, ele teve o cuidado de mandar sua serviçal mais fiel para me acompanhar. Bem, a julgar pela maneira que tudo aconteceu, achei o gesto atencioso.
A porta foi aberta e o cocheiro estendeu a mão, sem dizer uma palavra, Olga se levantou para sair sob o auxílio do homem.
Respirei fundo sentindo a atmosfera suavizar depois de sua saída, ela me julgava com um olhar impiedoso, como se eu não fosse suficiente para ser sua nova senhora.
Levantei finalmente no pequeno espaço e aceitei a mão do homem de meia idade para descer o degrau da carruagem. Olhei sob a grande aba do meu chapéu para a mansão a frente e contive um suspiro. Essa agora era a minha nova casa.
O casarão era digno de um nobre, sua construção de paredes cinzas e grandes janelas eram comuns no campo, embora aqui não fosse uma região aberta. Apesar de áreas abertas cobertas por gramado na frente da mansão, havia uma vasta mata nas proximidades.
O clima era certamente sombrio e úmido, o vento mais gélido me envolvia e parecia se infiltrar sob as camadas do meu vestido. O musgo e as plantas subiam por algumas partes da parede, mas até isso parecia bem cuidado.
Olga me olhou por mais um momento e seguiu em frente, de imediato a acompanhei, quase que pisando nos mesmos lugares que ela no caminho feito de pedras. Eu estava tensa e com medo de errar, de não agradar a essa nova casa e a meu esposo.
Meu pai negociou esse casamento em uma das viagens que fez a negócios, segundo ele, era uma ótima oportunidade já que eu estava passando da idade, bem, tenho que concordar que vinte e cinco anos já é uma idade avançada, a menos que a mulher fosse viúva.
Ao lembrar dessa questão, sinto um certo pesar, meu dote era generoso e meu pai não teve grandes exigências, claro, ele jamais aceitaria me casar com alguém de posição baixa, mas isso não era o suficiente para que eu fosse vista com bons olhos pelas famílias aristocratas.
Aparentemente, não havia nada de errado com meus dotes e aparência, fui criada com rigor e herdei os delicados traços de minha doce mãe, no entanto, isso não bastava para limpar os rumores e superstições.
“Ela tem a marca da besta. É amaldiçoada.”
Era o rumor mais simples e direto sobre mim.
Quando eu nasci, a parteira sugeriu que eu fosse abandonada na roda do convento e dada como morta. Suas palavras foram claras, a marca estranha na minha coxa esquerda era a prova do meu destino. Ela era uma mulher muito devota à igreja, alguém visto com a benção de trazer vidas ao mundo, certamente, suas palavras tinham grande peso. Mas o padre concordou veementemente.
Contudo, minha mãe se compadeceu do pequeno bebê que mais parecia um anjo de tão belo e o padre garantiu que com purificações frequentes, o mal se manteria trancado.
Isso definiu minha vida, uma criança apontada e isolada que tinha que ir na igreja com frequência para que o padre pudesse purificá-la. Então, eu me esforcei muito para atender as expectativas e demonstrar minha gratidão por não ter sido abandonada.
Eu entendi muito cedo que, apesar do seu amor, eu era um fardo.
Olhei brevemente para os lados, o jardim era esplêndido, roseiras de diversas cores mostravam todo o vigor de suas rosas cheias e de cores fortes. O responsável por isso devia ser elogiado pelo excelente trabalho.
Antes de chegar na porta, subimos alguns degraus e atentei-me à movimentação, alguns empregados se organizaram em filas e abaixaram suas cabeças. Fiquei surpresa por serem poucos, a propriedade era grande demais, mas talvez não estivessem todos aqui.
Olga me apresentou brevemente como a nova senhora, eu me contive mantendo uma expressão branda, não costumava menosprezar meus empregados, mas ainda não conhecia nada naquela casa, certamente, tinha seus costumes próprios e Olga parecia ser muito rígida.
Ao entrar na sala espaçosa, senti a decepção por não ver meu marido. Ele não veio me receber. Eu sequer tinha visto um retrato, meu pai o descreveu brevemente, apenas destacou suas qualidades mais importantes, para ele: um título de conde herdado de seu pai, um homem de muitas posses, dono de várias terras, tem um grande patrimônio e era seu terceiro casamento.
Sim, terceiro. Ele ficou viúvo duas vezes.
Amelie— O senhor Albert estará de volta em breve, por agora, a senhora deve desfazer suas bagagens e descansar. — Ela apontou para as escadas antes de caminhar até elas, resignada, a acompanhei. — A refeição é servida às dezessete horas pontualmente, o senhor Albert detesta atrasos, então, por favor, esteja atenta a isso.— Estarei, obrigada por informar.— Uma criada virá para ajudá-la a se lavar e a ficar apresentável para logo mais. Peço que permaneça no seu quarto por enquanto e só saia na hora que for chamada.Olga abriu uma das portas escuras do corredor. O quarto espaçoso tinha o necessário para atender uma dama. Uma cama ao centro com dosseis claros, uma penteadeira em madeira escura com alguns detalhes entalhados, principalmente em volta do espelho redondo. Havia um tapete bem bordado que ocupava quase todo o lugar, em um canto, uma cômoda grande e bem polida, no outro, uma divisória parcialmente dobrada separava o quarto de uma banheira.A janela alta deixava bastante luz e
Amelie— Senhora? — Ah, sim, Ana. — Assustei-me com seu chamado, estava distraída o suficiente para perder a noção de tempo.— Está pronto.— Certo. Me ajude com as vestes, sim?— Com sua licença. — Ana se aproximou e desfez o laço do cordão que prendia o espartilho. Apesar de acostumada com seu ajuste, me causava alívio quando o retirava. Levantei-me para ajudá-la e peça por peça foi retirada até restar a camisola que usava por baixo. Meus cabelos foram soltos e revelaram os cachos grandes.— Se me permite, senhora, és tão bela quanto um anjo.— Obrigada, Ana. Minha mãe que foi agraciada por tal beleza, eu apenas herdei alguns dos seus traços. — Olhei-me no espelho da penteadeira. De fato, eu herdei os cabelos dourados cheios de cachos, os olhos azuis e lábios naturalmente pintados em um rosa mais acentuado. Mas essa beleza sempre foi condenada em todas as vezes que o padre me mandava esconder meu olhar sedutor devido a minha maldição. Assim eu fazia, ajoelhava e rezava até que m
Amelie— Ótimo, agora vamos jantar.Olga se aproximou e tirou a tampa do pote de louça refinada, o cheiro de sopa se espalhou, estava agradável, ao menos minha fome não tinha diminuido com esse início de conversa.Ela serviu uma concha cheia em meu prato e achei pouco, mas não questionei. Eu devia ter comido os biscoitos que Ana levou junto ao chá depois do meu banho. A sopa de legumes estava saborosa, era uma refeição apropriada para aquele horário.Por um tempo, apenas se ouviu o leve roçar dos talheres nos pratos fundos. Eu comi devagar, não esquecendo dos bons modos que aprendi e isso pareceu agradar meu marido, pois notei seu olhar. De certa forma, isso me deixava satisfeita.Depois disso, ele guiou-me até a sala, mas não se sentou tão próximo. Albert acendeu um cachimbo e sentou em uma poltrona confortável próximo a lareira acesa.— Amelie, é importante que saiba que nesta casa há algumas regras importantes a serem seguidas e, de forma alguma você deve desobedecer ou não hesitar
AmelieMe apressei e vesti a camisola longa, ela cobria desde meu pescoço até meus pés, porém, os botões na frente em forma de pérolas podiam ser abertos se assim meu marido desejasse. Havia outras camisolas mais abertas, porém, essa em especial, mostravam minha pureza e pudor, era o que eu deveria mostrar ao meu marido na primeira noite. Acendi as velas que tinham se apagado no candelabro, depois peguei o rosário e me ajoelhei aos pés da cama. Eu deveria rezar até que meu marido chegasse.Não muito tempo depois, Albert entrou no quarto. Levantei devagar e aguardei. Ele tirou o colete e abriu alguns botões da camisa. pude ver os pelos fartos de seu peito, mas desviei a atenção daquele lugar momentaneamente. Meu peito subia e descia mais intensamente e apertei o rosário em minha mão. Ele observou meu gesto e continuou se despindo. Quando ficou com sua roupa de baixo, virei o rosto. Eu nunca vi um homem nu e logo ele estaria, mesmo sendo meu marido, parecia errado que eu olhasse. —
Amelie— O senhor Albert saiu antes do sol nascer e retornará antes do jantar.— Tão cedo… — murmurei, mas fui ouvida.— Como pôde perceber, essa casa é distante. Há vilarejos nas proximidades, mas o senhor Albert mantém um escritório em uma cidade grande, isso requer algum tempo de viagem por dia, às vezes ele nem retorna para casa.— Certo, obrigada por esclarecer, eu ainda não sei muito a respeito do meu marido. — Minha justificativa foi acompanhada de constrangimento.— Pergunte-me o que desejar saber, é a minha obrigação como governanta desta casa esclarecer suas dúvidas, claro, dentro do que me está autorizado.— Tudo bem, obrigada pela dedicação, senhora Olga.Ana retornou ao quarto carregando um balde com dificuldades, ela estava um pouco vermelha pelo esforço, mas quando olhou para Olga, ela se encolheu e seguiu para a banheira no canto.— Agora levante-se, levarei os lençois para serem lavados.— Ah, sim, desculpe a demora. — Levantei-me um pouco afobada e ajeitei a camisola
Dias depois…AmelieO cavalete apoiava a tela na minha frente, a imagem que apareceu para mim com frequência estava desenhada com riqueza de detalhes. Mais uma vez, retratei aquela mulher que aparecia morta em meus sonhos. Eram os mesmos olhos vidrados, fixos em mim, mesmo em desenho, estavam olhando-me. Olhos castanhos escuros, assim como os cabelos.Meus dedos estavam sujos com o pó do lápis escuro que já tinha apontado tantas vezes, agora restava apenas um pequeno pedaço. Esse bonito dom de fazer desenhos, agora só retratava minha obsessão e loucura devido a intermináveis noites em claro depois de ver aquela mulher morta sobre minha cama.A ausência de cores também não mudava o vermelho vivo daquele sangue que estava bem nítido em minha mente, eu quase podia sentir o odor ferroso e único.Os dias se tornaram sombrios, barulhentos. O som daquelas correntes sendo arrastadas se repetiam nos meus ouvidos como uma canção.Sentia que estava enlouquecendo, nem mesmo as rezas constantes
AmelieO sabor suave da batata refogada na manteiga aromatizada arrancou-me um leve suspiro, decerto a cozinheira tinha mãos habilidosas, um talento que seria melhor aproveitado em grandes banquetes.No entanto, o silêncio mórbido tirava-me todo o prazer ao degustar o jantar. As velas abundantes no centro da mesa e em alguns pontos do cômodo faziam-me enxergar até os mínimos detalhes da refeição, inclusive, a expressão mais fechada de Albert, e eu sabia bem o motivo.— Avise-me quando os dias de suas regras terminarem — disse ele em tom seco. — Certo. — Parei o garfo no meio do caminho e o retornei para o prato. — Eu gostaria de lhe fazer um pedido, Albert.— Faça.— Bem… — Hesitei por um momento, tinha medo da sua recusa. — Eu gostaria de ir à missa ou apenas visitar a igreja em um dia possível.— Não é suficiente fazer suas orações em casa?— Não, sinto-me em falta com Deus por não ir em sua casa.Albert limpou os lábios com o guardanapo e o colocou ao lado do prato. Ele fitou-me l
Aviso: Capítulo sensível. Por favor leia com discernimentoAmelieCaminhei até a porta e encostei-me na madeira, mas em seguida, dei um pulo para trás devido ao som feral. Esse som era familiar, desde que cheguei nesta casa eu escutava, no entanto, hoje estava diferente, como se estivesse em sofrimento.E, às vezes, parecia mais de um. Eu também sentia como se me chamasse, hoje em especial. Contudo, devia ser apenas um delírio, assim como os pesadelos. Como eu posso saber se nesse momento sinto-me tão sem direção e distante de Deus?Eu não queria mais pensar nisso, muito menos ouvir.Busquei o candelabro de uma única vela e abri a porta. O corredor estava escuro e frio. Ainda descalça, caminhei devagar seguindo os sons que continuavam, porém, às vezes pareciam apenas lamentos.A madeira do chão fazia barulhos mais altos do que eu gostaria, mesmo com meu esforço para andar com leveza. Meu coração batia forte pelo medo do que poderia encontrar, mas também pelo medo de ser pega descump