Amelie
— Senhora?
— Ah, sim, Ana. — Assustei-me com seu chamado, estava distraída o suficiente para perder a noção de tempo.
— Está pronto.
— Certo. Me ajude com as vestes, sim?
— Com sua licença. — Ana se aproximou e desfez o laço do cordão que prendia o espartilho.
Apesar de acostumada com seu ajuste, me causava alívio quando o retirava. Levantei-me para ajudá-la e peça por peça foi retirada até restar a camisola que usava por baixo. Meus cabelos foram soltos e revelaram os cachos grandes.
— Se me permite, senhora, és tão bela quanto um anjo.
— Obrigada, Ana. Minha mãe que foi agraciada por tal beleza, eu apenas herdei alguns dos seus traços. — Olhei-me no espelho da penteadeira.
De fato, eu herdei os cabelos dourados cheios de cachos, os olhos azuis e lábios naturalmente pintados em um rosa mais acentuado. Mas essa beleza sempre foi condenada em todas as vezes que o padre me mandava esconder meu olhar sedutor devido a minha maldição.
Assim eu fazia, ajoelhava e rezava até que meu joelhos ficassem em carne.
Respirei fundo observando meu busto com seios medianos sob o tecido fino e rendado. Não adiantava lembrar, agora era outra vida.
Ana ajudou-me naquele banho e sorri da sua expressão ao me ver nua, era engraçado.
Felizmente, depois de algumas perguntas, descobri que tinha completado sua maioridade, mas o orfanato regido por freiras lhe deu uma educação muito rígida e limitada devido sua posição baixa, esse era seu primeiro emprego. Ela estava nessa casa há pouco mais de um mês, mas não morava aqui e sim em um quarto de pensão em um vilarejo próximo.
Ana foi instruída a não falar sobre o que acontecia nessa casa e respeitei sua recusa e obediência, ela precisava desse emprego para sobreviver, esperava que logo eu também estivesse ambientada para cumprir com minhas obrigações.
Depois de um breve descanso, observei quando o ponteiro do relógio na parede em frente a minha cama completou a hora, levantei ansiosa.
Rapidamente, alisei a saia levemente armada do vestido, era um tecido leve em um tom de verde. Os bordados e rendas cobriam o espartilho e desciam pelas mangas, um vestido apropriado para a ocasião.
Ajeitei um fio solto do penteado que prendia meus cabelos atrás da minha cabeça, agora eu não deveria mostrar meus cabelos soltos a não ser dentro do quarto para meu marido, eu recitei mentalmente as regras que minha mãe ensinou por tanto tempo e, apesar de nervosa, creio que não cometerei erros.
Pouco tempo depois, as batidas suaves na porta me fizeram andar apressada para abrí-la.
— Está na hora, senhora. — Ana sorriu um pouco mais a vontade antes de me dar espaço.
Agradeci e respirei fundo mais uma vez antes de seguir pelo corredor já iluminado por poucas velas. Ana permaneceu silenciosa atrás de mim e apenas sussurrou a direção que eu deveria ir. Apesar de nervosa, prestei bastante atenção no caminho para decorá-lo.
Ao entrar na sala de jantar, finalmente o vi. O homem alto estava em pé próximo a mesa e um pouco atrás, Olga. Ele me avaliou de cima a baixo e mantive meu olhar sobre ele enquanto caminhava devagar.
Ele não esboçou emoção nenhuma, sua expressão era indiferente, mas isso não me abalava, era melhor do que olhares de medo e repulsa.
Albert também não condizia com sua idade, sua boa aparência era jovial, apenas os cabelos em um dourado escuro já com alguns fios brancos denunciavam algo, contudo, seu corpo e rosto com uma barba bem aparada mostravam a aparência de um homem na casa dos trinta, certamente.
Parei na sua frente me sentindo um pouco tímida, de fato era constrangedor estar na frente de um homem que se casou comigo sem a minha presença, eu não fui cortejada como normalmente acontecia.
— Amelie, boa noite. — Ele pegou em minha mão e levou aos lábios, mas seu gesto foi frio e breve. — É realmente bela como seu pai descreveu.
— Obrigada, meu marido.
— Sente-se. — Apontou para a cadeira e a puxou para que eu sentasse. — Fez boa viagem? Lamento não ter ido buscá-la pessoalmente, mas tinha negócios importantes para tratar.
— Não tem problema, a viagem foi boa, graças a senhora Olga.
— Senhora Olga é uma boa governanta, recorra a ela para qualquer demanda. — Ele se sentou à cabeceira da grande mesa de jantar. — Ela irá lhe instruir daqui em diante.
Concordei, mas me sentia um pouco desconfortável.
— Eu não sou muito exigente, Amelie, mas há alguns limites importantes aqui nessa casa, mesmo para a senhora minha esposa. — Destacou e ignorei meu desagrado, afinal, normalmente, a casa ficava aos cuidados da esposa, sob suas regras, mas ao que parece, não será assim. — Seu pai garantiu-me que foi criada com rigor e sabe obedecer, espero não ter feito uma escolha errada.
Toda aquela euforia morreu de repente ao ouvir tais palavras saindo de sua boca, entretanto, ele estava em sua razão. Eu, como esposa, lhe devia obediência.
— Não irei desapontá-lo, marido.
Amelie— Ótimo, agora vamos jantar.Olga se aproximou e tirou a tampa do pote de louça refinada, o cheiro de sopa se espalhou, estava agradável, ao menos minha fome não tinha diminuido com esse início de conversa.Ela serviu uma concha cheia em meu prato e achei pouco, mas não questionei. Eu devia ter comido os biscoitos que Ana levou junto ao chá depois do meu banho. A sopa de legumes estava saborosa, era uma refeição apropriada para aquele horário.Por um tempo, apenas se ouviu o leve roçar dos talheres nos pratos fundos. Eu comi devagar, não esquecendo dos bons modos que aprendi e isso pareceu agradar meu marido, pois notei seu olhar. De certa forma, isso me deixava satisfeita.Depois disso, ele guiou-me até a sala, mas não se sentou tão próximo. Albert acendeu um cachimbo e sentou em uma poltrona confortável próximo a lareira acesa.— Amelie, é importante que saiba que nesta casa há algumas regras importantes a serem seguidas e, de forma alguma você deve desobedecer ou não hesitar
AmelieMe apressei e vesti a camisola longa, ela cobria desde meu pescoço até meus pés, porém, os botões na frente em forma de pérolas podiam ser abertos se assim meu marido desejasse. Havia outras camisolas mais abertas, porém, essa em especial, mostravam minha pureza e pudor, era o que eu deveria mostrar ao meu marido na primeira noite. Acendi as velas que tinham se apagado no candelabro, depois peguei o rosário e me ajoelhei aos pés da cama. Eu deveria rezar até que meu marido chegasse.Não muito tempo depois, Albert entrou no quarto. Levantei devagar e aguardei. Ele tirou o colete e abriu alguns botões da camisa. pude ver os pelos fartos de seu peito, mas desviei a atenção daquele lugar momentaneamente. Meu peito subia e descia mais intensamente e apertei o rosário em minha mão. Ele observou meu gesto e continuou se despindo. Quando ficou com sua roupa de baixo, virei o rosto. Eu nunca vi um homem nu e logo ele estaria, mesmo sendo meu marido, parecia errado que eu olhasse. —
Amelie— O senhor Albert saiu antes do sol nascer e retornará antes do jantar.— Tão cedo… — murmurei, mas fui ouvida.— Como pôde perceber, essa casa é distante. Há vilarejos nas proximidades, mas o senhor Albert mantém um escritório em uma cidade grande, isso requer algum tempo de viagem por dia, às vezes ele nem retorna para casa.— Certo, obrigada por esclarecer, eu ainda não sei muito a respeito do meu marido. — Minha justificativa foi acompanhada de constrangimento.— Pergunte-me o que desejar saber, é a minha obrigação como governanta desta casa esclarecer suas dúvidas, claro, dentro do que me está autorizado.— Tudo bem, obrigada pela dedicação, senhora Olga.Ana retornou ao quarto carregando um balde com dificuldades, ela estava um pouco vermelha pelo esforço, mas quando olhou para Olga, ela se encolheu e seguiu para a banheira no canto.— Agora levante-se, levarei os lençois para serem lavados.— Ah, sim, desculpe a demora. — Levantei-me um pouco afobada e ajeitei a camisola
Dias depois…AmelieO cavalete apoiava a tela na minha frente, a imagem que apareceu para mim com frequência estava desenhada com riqueza de detalhes. Mais uma vez, retratei aquela mulher que aparecia morta em meus sonhos. Eram os mesmos olhos vidrados, fixos em mim, mesmo em desenho, estavam olhando-me. Olhos castanhos escuros, assim como os cabelos.Meus dedos estavam sujos com o pó do lápis escuro que já tinha apontado tantas vezes, agora restava apenas um pequeno pedaço. Esse bonito dom de fazer desenhos, agora só retratava minha obsessão e loucura devido a intermináveis noites em claro depois de ver aquela mulher morta sobre minha cama.A ausência de cores também não mudava o vermelho vivo daquele sangue que estava bem nítido em minha mente, eu quase podia sentir o odor ferroso e único.Os dias se tornaram sombrios, barulhentos. O som daquelas correntes sendo arrastadas se repetiam nos meus ouvidos como uma canção.Sentia que estava enlouquecendo, nem mesmo as rezas constantes
AmelieO sabor suave da batata refogada na manteiga aromatizada arrancou-me um leve suspiro, decerto a cozinheira tinha mãos habilidosas, um talento que seria melhor aproveitado em grandes banquetes.No entanto, o silêncio mórbido tirava-me todo o prazer ao degustar o jantar. As velas abundantes no centro da mesa e em alguns pontos do cômodo faziam-me enxergar até os mínimos detalhes da refeição, inclusive, a expressão mais fechada de Albert, e eu sabia bem o motivo.— Avise-me quando os dias de suas regras terminarem — disse ele em tom seco. — Certo. — Parei o garfo no meio do caminho e o retornei para o prato. — Eu gostaria de lhe fazer um pedido, Albert.— Faça.— Bem… — Hesitei por um momento, tinha medo da sua recusa. — Eu gostaria de ir à missa ou apenas visitar a igreja em um dia possível.— Não é suficiente fazer suas orações em casa?— Não, sinto-me em falta com Deus por não ir em sua casa.Albert limpou os lábios com o guardanapo e o colocou ao lado do prato. Ele fitou-me l
Aviso: Capítulo sensível. Por favor leia com discernimentoAmelieCaminhei até a porta e encostei-me na madeira, mas em seguida, dei um pulo para trás devido ao som feral. Esse som era familiar, desde que cheguei nesta casa eu escutava, no entanto, hoje estava diferente, como se estivesse em sofrimento.E, às vezes, parecia mais de um. Eu também sentia como se me chamasse, hoje em especial. Contudo, devia ser apenas um delírio, assim como os pesadelos. Como eu posso saber se nesse momento sinto-me tão sem direção e distante de Deus?Eu não queria mais pensar nisso, muito menos ouvir.Busquei o candelabro de uma única vela e abri a porta. O corredor estava escuro e frio. Ainda descalça, caminhei devagar seguindo os sons que continuavam, porém, às vezes pareciam apenas lamentos.A madeira do chão fazia barulhos mais altos do que eu gostaria, mesmo com meu esforço para andar com leveza. Meu coração batia forte pelo medo do que poderia encontrar, mas também pelo medo de ser pega descump
AmelieO sol nasceu e apenas acompanhei a claridade invadir o quarto. Já não estava mais chorando, porém, há pouco que tinha parado. Os barulhos das correntes continuaram até quase o amanhecer e agora não pareciam aterrorizante, apenas cruel. Albert era um homem cruel, eu estava casada com um monstro.Quem eram aqueles dois homens? Seriam desafetos? Criminosos?Ainda assim, nada justificava, eu não conseguia suportar tal feito. Não era possível seguir normalmente sabendo que eles estavam lá embaixo daquela maneira.Como eu poderia criar nossos filhos sabendo que o sofrimento deles estaria sob meus pés?O barulho do trinco da porta se movendo me alertou e senti medo. A porta foi aberta devagar e quem entrou foi Ana. Respirei aliviada.— Bom dia, senhora.— Ana… — Ela entrou acompanhada de outras duas serviçais, cada uma trazendo alguma coisa. A bandeja com o desjejum foi deixada sob o estofado do móvel aos pés da cama por Ana e as outras deixaram os baldes cheios de água ao lado da
AmelieAlbert entrou no quarto ao cair da noite, eu já tinha jantado, agora apenas lia um livro sentada em uma poltrona confortável que Ana teve a gentileza de arrastar até aqui junto com uma mesinha redonda de apoio onde coloquei um castiçal com três velas.Coloquei o livro sobre o colo, Albert me encarou longamente e se sentou na cama, na minha frente. Ainda sentia medo, depois de saber de sua outra face não voltaria a olhá-lo da mesma maneira.— Aqueles que você viu são meus filhos. Filhos gêmeos, compartilharam o mesmo ventre — Albert disse quebrando aquele silêncio e arregalei os olhos, não só devido ao espanto, mas de horror. — Mas eles só me trouxeram sofrimentos e perdas, são amaldiçoados e foram os responsáveis pela morte da própria mãe.Meu coração batia tão forte que era difícil manter-me quieta, porém, certamente, meus sentimentos estavam estampados em meu rosto.— Minha primeira esposa teve duas gestações, a primeira foi uma menina, mas a segunda… — Albert puxou a gravata