Suellen está incomodada durante o voo. O garoto sentado ao seu lado fica insistentemente cutucando seu braço. Irritada, ela olha para a mãe do menino, fazendo uma expressão de que aquilo está incomodando. A senhora com vestes muçulmanas olha para a criança e sorri para Suellen, fazendo uma expressão de admiração. Suellen responde com um sorriso ameno e pensa consigo, ironicamente: “As crianças são lindas”. Suellen tenta olhar com paciência para o garoto, mas ela sabe que seu forte não é a simpatia por crianças. É filha única. Nunca teve primos ou sobrinhos, e não planeja ter filhos tão cedo.
O celular de Suellen vibra. Ela recebe uma mensagem de Morrison.
M: Bom dia, Senhora Suellen Souza. Aqui é o Morrison. Eu terei a honra em buscá-la no Aeroporto de M’banza Kongo. Já está tudo em ordem para sua chegada. Estou de férias, participando de um safari de caça ao Javali, mas irei direto ao seu encontro no aeroporto. Não se preocupe com nada, pois eu estarei lá.
Suellen não presta muita atenção na mensagem. Ela fica extasiada com a foto daquele rosto moreno trajando óculos escuros, com barba bem desenhada e o pescoço envolto pela camisa e gravata Jerry Bartan. Ela suspira como uma adolescente, salva a foto de Morrison e retransmite para Edilene com uma mensagem.
S: Edilene, olha só o diretor de marketing da empresa. Que gato kkk.
E: Valha-me Deus. Que homem é esse amiga?
S: Olha esse queixo, olha essa barba, olha essa camisa e essa gravata combinando. Tô aqui suspirando.
E: Agora sim! Nem tudo está perdido no continente africano. Cuidado com a picada do mosquito da paixão kkk.
S: Menos amiga, não é para tanto. Mas com um homem desse eu até tomo coragem em me aventurar pelo deserto kkk.
E: Vai devagar, olha o assédio no trabalho kkk.
S: Vou entrar na rede social dele. Quero saber mais sobre esse homem.
E: Envia para mim amiga. Vou adicionar ele kkk.
Suellen acessa a rede social de Morrison. O homem alto e forte está em várias fotos com autoridades e pessoas influentes na Europa e na África. Muitas fotos de aventura. Ele ostenta fotos em praias paradisíacas, expondo iates e seu corpo malhado. Em outras fotos posa com seu rifle sobre ferozes javalis, abatidos por ele. Suellen se impressiona com as fotos e fica excitada para conhecer o diretor de marketing caçador de javalis.
A trepidação do avião tira a atenção de Suellen da rede social. A cabine de comando avisa que o voo está passando por uma turbulência, e que os passageiros devem apertar o cinto e desligar seus celulares. As comissárias de bordo começam a se movimentar pela aeronave, orientando os passageiros. Suellen fica apreensiva com aquela agitação. O garoto sentado ao seu lado fica sorrindo para ela. Suellen traz o dedo indicador aos lábios, pedindo ao menino silêncio e concentração. O avião trepida por quase cinco minutos, deixando os passageiros bem assustados. O comandante da aeronave informa que está tudo bem, mas por questões de segurança haverá a troca da aeronave no Aeroporto de Lisboa. O destino até o Aeroporto de M’Banza-Kongo irá atrasar. Suellen coloca a mão na testa, fecha os olhos e tenta manter a calma. Fica pensando quantos contratempos ela ainda terá que enfrentar.
O avião trafega lentamente pela pista de pouso do Aeroporto em Lisboa, rumo à Plataforma de desembarque. Suellen está há mais de dezessete horas dentro do avião. Seus pés estão inchados, os cabelos despenteados e a roupa toda amassada. Os passageiros se preparam para desembarcar. Suellen não desperdiça o momento e envie um selfie a Rose.
S: Olha só amiga, nem cheguei no destino e já estou parecendo uma louca.
Os passageiros com destino à Luanda são conduzidos em fila pelo saguão do aeroporto. O comissário de bordo os guia até o guichê da companhia aérea, para recolocar os passageiros em outro voo. Suellen olha a quantidade de idosos à sua volta e sente como se estivesse participando de uma excursão. Ele retira o óculos escuro da bolsa, coloca-o e ajeita o cabelo. Pensa consigo que é melhor se disfarçar, pois, afinal de contas, está no aeroporto de Lisboa, e nunca se sabe quando aparecerá um conhecido ou algum paparazzi desocupado. Ela faz uma nova selfie e também envia a Rose.
S: Olha só amiga. Depois da selfie descabelada agora envio uma selfie disfarçada de turista da terceira idade. Confesso que eu só posso ter jogado pedra na cruz para estar passando por uma provação destas.
O comissário de bordo retorna ao saguão e avisa:
— Atenção, senhores passageiros com destino à M’Banza-Kongo. Vocês serão alocados no voo 4432, com Plataforma de embarque pelo portão B 17. Mas não tenham pressa, porque o voo sairá daqui a nove horas e trinta minutos.
Suellen olha atônita para o comissário de bordo. Ela está começando a ficar sem forças e não pode mais acreditar no que está passando. Ela interpela o comissário:
— E onde é que vamos esperar todo esse tempo? onde fica a área VIP do Aeroporto?
O comissário explica, pacientemente:
— A área VIP está reservada exclusivamente para os passageiros da primeira classe, o que não é o caso de vocês. Mas a senhorita poderá aguardar em um dos ambientes de passageiros do saguão, ou em um de nossos restaurantes.
Suellen entrega os pontos, senta em uma cadeira dupla, coloca seus pés sobre o banco e fica ali, aguardando.
O avião balança para todos os lados, Suellen se sacode toda, tentando apertar o cinto de segurança. Jorge aparece na sua frente dando uma risada sinistra. O avião está em chamas, Edilene e Rose tentam puxar Suellen pela janela. Ela está sufocando com a fumaça. Edilene chora apresentando o canal “VIP Lindas e Maravilhosas”, dando a notícia que o avião caiu. Agora Suellen está correndo na Savana. É perseguida por Morrison trajando apenas uma sunga e gravata borboleta. Ele a persegue apontando seu rifle. Ele começa atirar. Suellen está desesperada e começa a gritar:
— Socorro! Eu não sou um javali. Eu não sou um javali…
O comissário de bordo começa a chacoalhar Suellen:
— Senhora, senhora! acorde. Está na hora de fazer o check-in. O voo partirá em duas horas.
Suellen está toda suada, descabelada, descalça em um dos pés e sua roupa está toda amassada. Ela tenta entender a situação. Percebe que adormecera por mais de cinco horas naquele banco. Suas costas avisam isso.
Suellen senta na cafeteria e pede um duplo mate com leite para tentar recuperar sua energia. Suas pálpebras ainda estão pesadas e a visão está embaçada, após um sono profundo e pesado. Ela apoia as mãos na testa, esperando um milagre que melhore sua viagem. O celular toca. Suellen olha no display. É Arnold Capacho.
S: Suellen Souza falando.
A: Boa tarde, senhora Suellen Souza. Aqui é Arnold, da Sucursal de Angola. Sou assessor executivo da diretoria.
S: Boa tarde, Arnold, pois não.
A: Eu tenho uma notícia um pouco desagradável, mas não podia deixar de avisar à senhora.
Suellen olha para o alto, balança seu cabelo todo amassado, olha para os lados e responde:
S: O que é que foi agora. Más notícias viraram rotina nas minhas últimas vinte e quatro horas.
A: Não é má notícia, senhora Suellen. É uma tragédia. O senhor Morrison morreu.
Suellen dá um pulo na cadeira.
S: Como assim morreu? Ele me enviou mensagem algumas horas atrás, avisando que vai me pegar no Aeroporto de... Mibanda não sei do quê.
A: O nome correto é M’Banza-Kongo. Pois então senhora, ele não vai mais.
S: O que aconteceu? Meu deus, me diga, o que aconteceu?
A: Segundo as primeiras informações, tudo indica que foi no safari de javalis. O rifle não disparou. Parece que os javalis comeram o senhor Morrison.
Suellen está chocada. Ela desliga o celular e olha para o vazio. Joga o celular na mesa e leva as mãos aos lábios. Seus olhos esverdeados estão estatelados no infinito. Ela não acredita que realmente teve aquela conversa. O comissário de bordo acena, informando que está na hora de embarcar. Suellen se levanta, ainda em choque, e segue para o portão B 17. É hora do embarque.
O calor escaldante faz a testa de Jason suar. Ele se abriga à sombra de uma Mulembra e admira tranquilo a paisagem. A comunidade está chegando no pátio da ONG AME -AngolaMaisEsperança, onde Mutaba Quituno é o presidente. Ele arruma o microfone, ajeita mais algumas cadeiras e pede para as crianças pararem de correr e se sentar. Ele acena a Jason:— Está tudo bem aí, senhor Jason? Começaremos em um instante.Jason acena sinalizando que está tudo em ordem.As pessoas idosas e os adultos humildemente trajados começam a se sentar sob a tenda armada no páteo da ONG. Mutaba liga o microfone, que emite um som estridente.— Alô, alô. Amigos, hoje temos a honra de receber o senhor Jason Fields, que é diretor de tecnologia de uma grande empresa em Luanda, nossa capital. E se alguém de vocês ainda não sabe, o senhor Jason é o n
“Cerca de 95% dos angolanos são africanos bantu, pertencentes a uma diversidade de etnias. Entre estas, a mais importante é a dos ovimbundu, que representam mais de um terço da população, seguidos dos ambundu, com cerca de um quarto, e os bakongo com mais de 10%”...Suellen está há algum tempo sentada no saguão do aeroporto em M’Banza-Kongo. Ela lê alguns panfletos turísticos sobre Angola, enquanto aguarda o carregador trazer suas malas.O carregador retorna, devolve o comprovante das malas e fica olhando para Suellen.Suellen não entende e pergunta:— Onde estão as minhas malas?O carregador responde, com um sotaque português diferente, mas compreensível:— Suas malas não estão no desembarque, senhora.Suellen joga os folhetos turísticos de volta na mesinha, pega os comprovantes e caminha
O aeroporto de M’Banza-Kongo vai ficando para trás. Suellen se distrai olhando as largas avenidas da cidade. Os carros trafegam para todos os lados de forma desordenada, assim como as pessoas. Há muitos comércios ambulantes pelas calçadas. Em um terreno grande muitos garotos jogam futebol e as pessoas trajam roupas muito diferentes do que Suellen costuma ver e usar nos shoppings centers e nas rodas sociais de Fortaleza. Enquanto Suellen admira a paisagem, Jason repara na bela mulher em que sua nova chefe se traduz. Suellen se sente observada e retoma atenção ao trajeto. Jason aponta para uma antiga construção, que lembra um velho templo.— A senhora está vendo aquela construção?Suellen ajeita os óculos escuros e observa:— O que era aquilo?Jason diminui a velocidade do Jipe e começa a explicar para Suellen o que aquele local representa. Ele vai m
O solavanco do Jipe faz Suellen acordar. Ela tenta se encontrar e lembrar onde está. Olha em volta, ainda vê a mesma paisagem que, ao cair da tarde, faz com que o amarelo da savana ferva em vermelho, como se o fogo estivesse consumindo o horizonte. Ela admira aquele retrato e pergunta:— Onde estamos, Jason? Estamos chegando em Luanda?— Você dormiu bastante. Estamos chegando em N’Zeto, metade do caminho. Daqui a pouco vai anoitecer. Acho melhor pararmos em um hotel, para você tomar um bom banho e descansar. Amanhã cedo vou fazer algumas entregas e finalmente partimos a Luanda.— Estou tão cansada que não tenho como discordar de você.— Sim, você precisa descansar para finalmente chegar em Angola.Suellen se curva e olha Jason, tentando compreender:— O que você quer dizer com finalmente chegar em Angola?Jason sorri:— Voc
Jason está arrumado, passa pela recepção e chama o gerente:Carlos, estarei no restaurante aguardando a senhorita Suellen. Por favor, sirva aquele funge de peixe maravilhoso. Estou certo que ela irá gostar.— Pode deixar, senhor Jason. Vou servir um mututo de entrada e nosso delicioso funge de peixe. Para beber vamos preparar uma refrescante quissangua.— Está ótimo. Tudo típico e tradicional.Jason escolhe a mesa e se acomoda no restaurante. Enquanto espera por Suellen, faz algumas anotações no tablet.O gerente organiza os papéis na recepção quando é interrompido pela voz de Suellen.— Por favor, onde fica o restaurante do hotel?O gerente se vira. Quando fita Suellen, arregala os olhos e sua voz se aveluda com sua beleza.— Por aqui, senhorita. Me siga, por favor.Jason continua suas anotaçõ
O café da manhã está servido no restaurante. Suellen está sentada, degustando frutas típicas. O sabor do maboque e da lombula a encantam. Suco de manga, pitanga e goiaba, pães e rosquinhas completam a mesa farta.Carlos transmite o recado para Suellen:— Bom dia senhora Suellen. O senhor Jason tomou um café rápido e partiu para a entrega de suprimentos aos pescadores.Na praia, diversas caixas de suprimentos são entregues na sede da associação dos pescadores. Marlon, o presidente da associação de pesca, agradece:— Muito obrigado, senhor Jason. A pesca está quase parada, pela falta de suprimentos. Os projetos do governo estão escassos. Eles querem pagar subsídios cada vez mais baixos para nossa atividade. Os pescadores se negam a continuar, se as coisas ficarem assim.— Eu enviei aos deputados algumas propostas para cria
Do outro lado do oceano, o pátio do shopping Rio-Mar continua recebendo glamourosamente a elite fortalezense. Apesar do movimento constante, Rose sente a ausência de Suellen Souza. Sua ida para Angola deixou um vazio no centro estético Best Look. Rose lamenta com Edilene a saudade e a falta de notícias da amiga. Edilene Fortuna, cliente tradicional, está confortavelmente estirada na cadeira do centro estético, enquanto Rose aplica o tratamento de beleza facial.Rose relembra, e instiga a amiga:— Edilene querida, você acha que devo telefonar para Suellen? É um pouco invasivo, mas estou preocupada com toda essa falta de notícias. A Sra. Souza esteve aqui e disse que também não recebeu notícias da filha. Suellen não postou mais nada nas redes sociais. Sequer enviou uma mensagem.Totalmente relaxada, Edilene comenta, com a voz mole:— Não se preocupe,
Na sala da Presidência do centro empresarial Souza, Jorge Mascarenhas olha o litoral cearense por uma das janelas. Ele está sozinho, falando ao telefone com Arnold. Jorge está aos berros:J: Como assim, ela ainda não está na empresa? Ela não foi direto de M’Banza Kongo?A: Infelizmente o Senhor Jason tinha alguns compromissos em N’Zeto e era a única opção disponível. Não podíamos prever a tragédia que iria acontecer com o senhor Morrison.J: Tudo bem Arnold, sabe de uma coisa? Pouco me importa onde ela se meteu. O que importa é que não podemos cometer falhas. Se preocupe em não deixar nenhum rastro da documentação nos arquivos e computadores da empresa. Assim que ela começar as tratativas com os russos, eu quero que você me diga exatamente tudo o que está acontecendo nas reuniões