Pang!
Um estrondo seco ecoa pela casa, seguido pelo som inconfundível de vidro se estilhaçando. Meu corpo se encolhe instintivamente debaixo das cobertas. Não preciso olhar para o relógio ou descer as escadas para saber o que está acontecendo. Eu sei. David, meu padrasto, está bêbado de novo. — Sarah, meu amor! Você não podia ter me abandonado! — ouço-o gritar lá embaixo, seguido pelo som de mais alguma coisa se estilhaçando. Fecho os olhos e respiro fundo, tentando controlar as lágrimas que ameaçam cair. Mas é inútil. Desde que minha mãe faleceu, os dias têm sido assim. A dor já era suficiente, mas a reação de David só torna tudo ainda pior. Exatamente como tem sido nas últimas semanas, os passos cambaleantes no corredor me fazem congelar. Logo, o som de seu punho batendo contra a porta ecoa pelo quarto. — Ela está morta por sua causa! — ele grita, seguido por mais um soco contra a porta. — Você matou sua mãe! — Outro soco. — Se você não fosse tão dependente, ela estaria viva! Pressiono o travesseiro contra os ouvidos, mas sei que não vai adiantar. Nunca adiantou. E a cada dia, suas palavras venenosas vão me matando lentamente. Fecho os olhos com força. Não quero ouvir. Não quero ver. Mas a porta se abre com um golpe violento, tão brutal que b**e contra a parede, fazendo um som que me faz estremecer. — Ela não deveria estar morta, e agora você vai pagar! — David vocifera, e, mesmo de longe, o cheiro de whisky preenche o quarto. Conforme ele entra, meu corpo se encolhe instintivamente, como se já conhecesse o que vem a seguir. No entanto, desta vez, algo parece diferente. Em seus olhos, não há apenas o ressentimento e a mágoa de sempre; há raiva, algo que nunca vi. Um passo. Outro passo. Ele anda até parar na minha frente. Abro a boca para tentar acalmá-lo. Já funcionou antes; talvez, se dessa vez… Antes que eu conseguisse reagir, seus dedos se prendem em meus cabelos, me puxando para fora da cama. Um soluço surpreso escapa dos meus lábios. Desta vez, ele quer machucar. Ele quer me fazer sofrer ainda mais. — Você. É. Um. Fardo! — David fala pausadamente, me segurando pelos ombros e pressionando meu corpo contra a parede. Sem me dar a chance de sequer respirar, um soco atinge minha barriga. O impacto faz minhas costelas doerem e um grito escapa. — Cala a boca, sua inútil! — ele vocifera, me balançando como se fosse uma boneca de pano. — Você nunca faz nada direito! Nunca! Então, um tapa forte faz minha cabeça girar com força. O gosto metálico invade a minha boca quando mordo o interior da bochecha para não gritar novamente. Talvez, se eu ficar quieta… — Pai, por favor… — sussurro, tentando fazer com que ele pare. Ele finalmente me solta e, por um momento, acredito que acabou, que meu apelo funcionou. Mas, então, outro soco atinge meu estômago, me fazendo gritar novamente. — Pare de me chamar assim! Não sou seu pai, nunca fui! — ele grita, e outro soco me atinge. — Você foi só um peso que fui obrigado a carregar por amar a Sarah! Me jogo no chão, em uma tentativa de me proteger, mas meus braços não são suficientes contra a fúria dele. Meu corpo já não reage; apenas recebe os golpes como se fossem inevitáveis. As lágrimas escorrem, se misturando com o sangue que sinto na boca. — Você matou sua mãe! — ele exclama, dessa vez com a voz mais fraca, quando um chute acerta minhas costas. A dor some por um momento. Apenas a física, pois as palavras dele machucam mais do que qualquer soco. Porque, no fundo, por mais absurdo que possa parecer, uma parte de mim ainda acredita que é verdade. Minha mãe só está morta por minha causa. Quando finalmente ouço seus passos se afastando, o silêncio que sobra é tão cruel quanto os golpes. A dor me invade novamente e, por um momento, acho que acabou. Minhas lágrimas se misturam ao sangue escorrendo no canto da minha boca enquanto tento entender o que acabou de acontecer. Não é a primeira vez que ele perde o controle, mas nunca chegou ao ponto de me machucar assim. Eu deveria estar acostumada com o ódio dele, mas algo sobre essa noite… algo está diferente. Então, o som dos passos dele no corredor volta a ecoar, e meu corpo inteiro se alerta. David reaparece no quarto, segurando outra garrafa de bebida, já pela metade. Seu andar é mais lento e seus olhos se fixam em mim com uma intensidade que me faz sentir como uma presa encurralada. — Você tirou Sarah de mim, Mia — ele murmura, num tom baixo e ameaçador. — E, já que ela está morta, não é justo que você continue viva. Meu coração dispara. Tento me levantar, mas meu corpo não obedece. Ele se ajoelha sobre mim, prendendo meus braços com as mãos ásperas. — David, por favor, não... — sussurro, num tom quase inaudível. Mas ele não para. Suas mãos soltam meus braços e sobem para o meu pescoço. A pressão começa antes que eu possa sequer pensar em lutar. O ar me escapa rapidamente, e a dor em minha garganta é insuportável. Tento puxar seus braços, me debatendo sob seu peso, mas ele é muito mais forte que eu. Minha visão começa a embaçar, e o desespero toma conta de mim. Eu não quero morrer. Não assim. Não agora. Tateio ao redor, arranhando meus dedos no chão de madeira, desesperada por algo, qualquer coisa que possa me ajudar. Então, sinto o vidro frio da garrafa ao meu lado. Sem pensar duas vezes, agarro a garrafa com o que resta da minha força e acerto contra a cabeça de David. O som do vidro se quebrando é abafado pelo grito de dor dele. Finalmente, a pressão no meu pescoço desaparece enquanto ele cai ao meu lado, imóvel. Permaneço deitada por alguns segundos, puxando o ar com força, como se tivesse acabado de correr uma maratona. Meu coração ainda b**e descontroladamente, e lágrimas escorrem pelo meu rosto. — Ele está morto? — sussurro, olhando para o corpo caído ao meu lado. Antes que eu pudesse me mexer ou sequer processar o que acabou de acontecer, o som da campainha ecoa pela casa. Campainha? Meus olhos se arregalam. Quem estaria aqui a essa hora?Três semanas se passaram desde aquela noite. Não me lembro de muita coisa após o toque da campainha. Apenas dos vizinhos, do falatório ao meu redor, das sirenes… Quando realmente despertei, após algumas horas ou dias, já estava no hospital. Sobrevivi, mas com cicatrizes que não aparecem apenas no espelho. Tive alta antes de David. Voltei para casa, tentando acreditar que ele pagaria pelo que me fez. Mas não foi o que aconteceu. Ele voltou duas semanas depois, como se nada tivesse acontecido, como se não tivesse quase tirado minha vida. Naquela mesma noite, o som de uma garrafa sendo aberta me trouxe de volta à realidade. David e álcool nunca foram uma boa combinação. Não esperei para ver o que aconteceria novamente. Peguei o pouco que tinha, uma mochila e minha coragem, e saí pela porta sem olhar para trás. A única pessoa que pode me ajudar agora é alguém que eu mal conhecia: James Bennett, meu pai biológico. Um homem que mal conheço, mas que parece ser minha última chance de rec
Alguns minutos depois, paramos em frente a um hotel que me deixa boquiaberta. É imenso e elegante, o tipo de lugar que só vi em filmes.— Você não perguntou, mas me chamo Ethan — ele se apresenta, me encarando com uma intensidade que me faz estremecer.— Mia — respondo, mesmo já tendo dito meu nome antes. O bar é sofisticado, com iluminação baixa que cria um ambiente íntimo. Ele escolhe uma mesa no canto, estrategicamente isolada das demais. — O de sempre, Sr. Hayes? — o garçom pergunta, me dando um olhar discreto.— Sim. Um Moscow Mule para a senhorita — Ethan decide, sem hesitar. Seus dedos roçam levemente os meus ao passar o cardápio. O toque é breve, mas suficiente para fazer meu coração acelerar.— Você me conhece há poucos minutos, como acha que sabe o meu gosto? — provoco, erguendo uma sobrancelha.— Te conheci há pouco, mas percebi o suficiente para saber que precisa de algo forte — ele responde, abrindo um sorriso confiante.A bebida chega, e tomo um gole generoso para deix
Após uma semana desde aquela noite, encaro meu reflexo no espelho do banheiro da cafeteria onde passei a última hora tentando criar coragem. As olheiras continuam sob meus olhos, relembrando as últimas noites em claro, pensando em qualquer alternativa que pudesse me ajudar a restabelecer minha vida sem envolver James Bennett.Mas como fazer isso em uma cidade desconhecida, sem ter onde morar, sem experiência profissional e com apenas dezoito anos? — Você pode fazer isso, Mia — murmuro para mim mesma, ajeitando pela décima vez a alça do meu vestido.Quinze minutos depois, estou novamente diante do imponente prédio espelhado. Hoje é tudo ou nada. Ou encontro James e tento recomeçar, ou terei que engolir meu medo e voltar para Portland.— Bom dia. Preciso falar com James Bennett — digo assim que paro na recepção. A recepcionista, diferente da semana passada, me olha de cima a baixo com uma sobrancelha erguida.— O Sr. Bennett não recebe ninguém sem hora marcada.— Eu… não sabia. Estive
O gosto amargo na boca é o menor dos meus problemas. Minhas mãos tremem enquanto tento me recompor, evitando olhar para eles. A palavra “tio” continua ecoando na minha mente, me fazendo ofegar.— Mia, você está bem? — James pergunta, num tom preocupado. — Quer um copo d'água?Assinto levemente, finalmente virando para encará-los. No entanto, Ethan se mexe primeiro. Sem dizer nada, ele caminha até o frigobar no canto da sala.— Aqui. — murmura, me entregando uma garrafa de água.— Obrigada. — murmuro enquanto minhas mãos trêmulas seguram a garrafa. Dou um pequeno gole, tentando engolir o nó na garganta. James observa em silêncio enquanto Ethan se afasta, se sentando em sua cadeira de couro.— Mia… — James finalmente fala, olhando para mim. — Está melhor? Quer se sentar?— Estou bem, obrigada. — minto, mesmo sabendo que minha aparência me entrega. — Só… devo ter comido algo que me fez mal.— Certo. Agora posso saber o que aconteceu, Ethan? — James pergunta, mudando o foco da conversa.
Ethan respira fundo, ainda com o olhar fixo em mim, talvez decidindo se vale a pena continuar a provocação. Então, ele balança a cabeça e se afasta, caminhando até a janela. Com as mãos nos bolsos, ele encara a vista da cidade, ignorando completamente minha presença.Após alguns minutos de silêncio insuportável, decido abrir a boca. O desconforto de sua presença já é suficiente; o silêncio só piora.— Pensei que sua sala fosse em outro andar — murmuro, apertando nervosamente a barra do meu vestido. Ethan solta um riso seco, balançando a cabeça.— Aparentemente, James resolveu que seria uma boa ideia me pedir para esperá-lo aqui — ele responde, ainda de costas para mim. — Espero que você não tenha falado sobre o que aconteceu entre nós, porque não estou com a mínima paciência para aguentar um possível problema.Um possível problema. É isso que ele me vê, claro. Ou não teria deixado aquele dinheiro como se quisesse evitar qualquer dor de cabeça futura.Engulo em seco, sentindo minha gar
“Ethan Hayes” Eu não suporto confusão. Detesto desordem. Gosto das coisas claras, resolvidas, longe de problemas emocionais ou dramas desnecessários. Mas é exatamente isso que Mia acabou de trazer para minha vida: confusão. Eu não deveria estar surpreso. Desde o momento em que ela entrou no meu carro, com aquela cara de quem estava completamente perdida, percebi que algo poderia dar errado. E, claro, deu. Primeiro, foi a noite no hotel. Uma noite que deveria ter sido esquecida, como tantas outras. Depois, a revelação de quem ela era: filha do meu melhor amigo. Totalmente proibida para mim. E agora, como se o universo quisesse brincar comigo, meu sócio quer transformá-la na minha nova assistente. Perfeito. O som da porta se abrindo interrompe meus pensamentos. O eco inconfundível de saltos pelo chão de mármore anuncia sua chegada. Miranda Pierce. Advogada da Nexus. E... minha ex. Porque, claro, minha vida não tinha confusão suficiente. — Ethan — ela diz, aproximando-se com a c
“Mia Bennett”Bato continuamente com a caneta em cima da mesa enquanto leio pela terceira vez o parágrafo nos formulários da minha admissão. Não que eu tenha algum problema com interpretação de texto; muito pelo contrário, tudo que está escrito é bem fácil de entender. Mas minha mente insiste em vagar para outro lugar. Para ele.A decisão de aceitar ser a assistente de Ethan ainda parece surreal, como um daqueles sonhos ruins dos quais você acorda suando frio. Ou, no meu caso, não acorda. — Quem em sã consciência se colocaria de bom grado nessa posição? — resmungo.“Isso foi ideia sua, Mia”, minha mente responde, mas eu me recuso a aceitar que seja culpa exclusivamente minha. James também insistiu nisso.Respiro fundo e forço a atenção de volta ao papel, mas tudo o que consigo enxergar é a expressão impaciente de Ethan, considerando minha presença uma afronta pessoal.— Chega — resmungo, assinando a última página com um pouco mais de força do que deveria. Empurro os papéis para long
“Mia Bennett”Enquanto o motorista de James se aproxima da Nexus, aproveito o pouco tempo que me resta para pegar o pequeno espelho na minha bolsa e conferir a leve maquiagem que arrisquei fazer enquanto me arrumava. Pela primeira vez em semanas, não me pareço com um panda. A noite passada foi a primeira vez, em muito tempo, que consegui dormir sem que meus pensamentos me arrastassem para um buraco sem fim. E as olheiras que me acompanhavam desde a morte da minha mãe finalmente deram uma trégua.É como se, ao resolver parte dos meus problemas, minha mente tivesse desligado para que eu conseguisse descansar. Claro, ainda há muito que não consigo controlar; minha vida está longe de ser perfeita agora, mas pelo menos hoje pareço um pouco mais com a garota que costumava ser.Guardo o espelho assim que o carro entra na garagem da Nexus. Olho rapidamente para James, que está com o semblante tranquilo desde que o encontrei mais cedo, como se o hoje fosse apenas mais um para ele. E, de certa