Terceira sessão

Volto à questão: o que quer uma mulher?  Eu hoje pensei muito sobre isso e, pelo menos pra hoje, tenho uma resposta.  Eu falo “pra hoje” porque a mulher pensa por ciclos: o ciclo pré-menstrual, o círculo da fertilidade, o da amamentação, o da menopausa...  Mesmo as meninas têm seus ciclos.

Qual o meu ciclo de hoje?  Não sei.  Não quero nomear.  Sempre sou contra nomear.  A gente sabe que está num determinado ciclo não porque “chegou a hora” ou “está na idade de”.  Não é assim que funciona. O que você poderia chamar de “sintoma” é um acúmulo de contingências favorecidas por circunstâncias que culminam num ato. Mas não é racional.  É intuitivo.  É nessa hora que o personagem se sobrepõe ao autor. Não sei se estou sendo clara.

A mulher quer saber o que o homem quer, o que ele deseja. Ela tenta se antecipar a esse desejo, pegando-o de surpresa, antecipando o verbo. Ela fica na instância da coisa, em estado bruto e, então, a nomeia antes de ele sequer tomar consciência do signo que escolherá, usará ou dará o significado.  É uma coisa muito louca.  Pensei agora, por pura associação, na área do Márcio, a propaganda.  Imagino que, quando vai lançar um produto, você tem que se colocar no lugar daquele que supostamente o comprará. Só que a coisa, pelo que eu saiba, não funciona assim, é uma pena. O que eles fazem é uma pesquisa de mercado, uma colheita de dados estatísticos, uma projeção de gostos e preferências. Tudo baseado no que já existe ou é similar.

Devia ser diferente. E é nesse sentido que eu ajo. O que deve ser captado é o desejo relativo ao que falta: o desejo oculto.  É o faltante que trará o verdadeiro apelo do consumidor.  Veja só: uma fantasia banal de sexo médico x paciente, colegial x professor, caminhoneiro x carona etc.  não vai fundo.  São símbolos gastos.  Você pode até usar os mesmos elementos, mas é o insólito que fará a diferença.

Uma mulher que não percebe isso pairará, como alma penada, pelos encontros, pelas profissões, pelos vícios e pelas virtudes. Pensará que a resposta é emprenhar a barriga de filhos ou entupir o armário de roupas, de cosméticos,  o banco de dinheiro, a agenda de telefones e por aí vai.  Mas não é isso.  A mulher é uma chave mestra que pode abrir todas as portas, e isso, meu caro, é algo que fascina, mas é temerário. Há os que se entregam e os que fogem. Ou matam.

Não são todas as que sabem disso. Acredito que as prostitutas sejam as maiores representantes dessa sabedoria. Elas forjam os personagens que habitam o imaginário dos homens. A mãe com o bebê também. E as muito velhas, que já não ligam para as censuras e se divertem com o ridículo.

Mas, mesmo assim, não é uma percepção, como eu vou dizer? Uma percepção pragmática, funcional, derivativa. É um saber que não se sabe. Enfim.

(Ela reflete por um instante e olha em direção à janela, onde uma chuva cai).

           Mas... vamos lá. 

(Suspira).

Quando as coisas começaram a caminhar mal entre mim e o Márcio, eu fiquei primeiramente muito deprimida, quis culpar ele e o mundo.  Depois, migrei para outra vertente.  Tentei me ver “de fora”, sabe? Acho que há muitas semelhanças entre a Matemática e o comportamento humano. Sempre pensei nisso. Quer saber?  A projeção de uma figura geométrica é semelhante à projeção de um sentimento que experimentamos sobre alguém ou alguma coisa, em outro objeto ou pessoa. O mesmo se dá quando assumimos ou “vestimos a pele” de um personagem.  Ele não é a gente, mas tem os mesmos atributos, só que numa outra dimensão ou angulação.  Faz sentido? Vamos tomar outro exemplo: a interseção. O ponto de interseção é o lugar da autorização entre o inconsciente e o consciente. Há partes de um contidas no outro. E vice-versa. O conceito de contém e está contido também. Não é uma invenção, e sim uma arrumação ou, vamos dizer, um “re-arranjo”.  Deixe-me explicar melhor. O que eu desejo, não se instala só na hora que eu nomeio.  Ele já está contido na falta daquilo que eu não tenho, percebe?

Cara! São tantas as semelhanças que elas brotam na minha cabeça! A associação livre, ela também, se uma ideia, um sentimento ou uma imagem puxa outra é porque, de alguma forma, ela já está contida naquela que a antecedeu. Que nem os números pares: há sempre um duplo esperando por ele!  Numa curva integral, há um quantum operacional de limites... gente! Vou parar por aqui!

Voltando a fita.  Eu fui sacando o meu ponto fraco.  Nem sei se era “o” ponto fraco.  Eu tinha que partir de alguma coisa que não estivesse bem resolvida comigo.  E achei.  Era o lance do toque.  Não que eu tivesse esse tipo de problema com o Márcio.  Sabe? Tudo transcende.  Nada é simplesmente o que é.  Essa é minha questão.  Então, não era só o tocar.  Era mais complicado.  O toque, então, sai dos limites do tanger e se torna metaempírico.

É nessa instância que reside o problema.  Enquanto eu percebo o outro numa ótica transcendental, eu sou senhora dos meus atos, sou a autora.  Mas na hora que eu “toco” o outro, passo a ter uma referência advinda do real, que não passa pela minha censura, minha autorização. Ou seja: o que antes era de dentro para fora passa a ser de fora para dentro.  É o personagem se expondo e se antecipando à criação.

Fui, então, aprender a fazer massagem.  Estranha experiência.  Sensações térmicas impensáveis, texturas desconcertantes, odores inesperados, tudo, tudo era invasivo!  A adaptação foi lenta e gradual.  Toquei e fui tocada.  Descobri nuances em meu corpo e regiões surpreendentemente significativas.  Parecia que eu fugia do lugar comum.  Havia espaços que eu desconhecia como importantes na trilha do prazer e do relaxamento.  Eram áreas pequenas: o lado de um dedinho o meio da espinha dorsal, o lóbulo da orelha.

Tocar os outros foi mais difícil e nem sempre prazeroso. Confesso que fiz excelentes massagens, mas nem sempre elas correspondiam ao ideal do qual eu já era capaz. Peguei-me muitas vezes apressando o processo, omitindo espaços... No entanto, havia algumas pessoas que entravam em sintonia absoluta comigo. Não sei se havia, da parte delas, uma entrega maior, uma confiança, uma empatia... O que ficou claro, para mim, era que, com essas pessoas, eu me fundia: não era mais a massoterapeuta manipulando um corpo solicitante. O cliente se tornava uma extensão do meu corpo, e aí, então, eu sabia exatamente o que aquela pessoa precisava, onde queria ser tocada, qual a pressão ideal a ser empregada, onde eu deveria demorar mais, onde eu deveria manter segredo, o espaço ilibado, o ponto de sensibilidade traumática... nessas horas, a conjunção era simbiótica, e a massagem, perfeita.  Parecia que o corpo da pessoa me sussurrava: “toque aqui”, “prolongue”...

Para mim, foi um exercício de sensibilidade: tocar e ser tocada por mãos diversas, perceber o outro, adivinhar o desejo do outro. Mas eu sabia que fora um aprendizado: eu não queria me reter ali.  Minha procura era outra.

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