MIRELLA ESPOSITO
Após o meu chefe pedir por mais um artigo sobre “as tendências históricas na cor dos tecidos usados em toalhas de mesa do século XVIII” – sim, isso existe e, surpreendentemente, alguém em algum lugar, realmente quer ler sobre – eu decidi que era hora de desligar o computador e limpar a minha mesa de trabalho.
Eu tinha acabado de sair da faculdade de jornalismo, com um bom emprego no mais respeitado veículo de imprensa do país. Infelizmente todo o meu talento ali era usado apenas para matérias que ninguém nunca iria ler.
— Fico feliz que vai tirar esse monte de documentos e encadernados de vista, enfim poderemos voltar a ter contato visual. — Kira brincou.
Levantei e comecei a arrumar as pilhas intermináveis de papéis, documentos e livros que cobriam cada centímetro da minha mesa.
Claro, eu sabia que Kira estava apenas me provocando, mas ela não estava completamente errada. Eu tinha me enterrado em tanto material de pesquisa inútil que nem conseguia me lembrar da última vez que realmente vi o tampo da minha mesa, além de que, se tornou comum naquele andar transformar a minha mesa em depósito.
— Vai me dizer que você não está interessada nos incríveis tecidos do século XVIII? — segurei o riso.
— Absolutamente fascinante a transição do creme para marfim — revirou os olhos.
Suspirei enquanto empurrava mais uma pilha para dentro de uma caixa. Eu estava começando a ficar cansada da rotina monótona.
Jornalismo não era para ser isso. Não era para ser sobre tecidos e toalhas de mesa. Era para ser sobre contar histórias, descobrir a verdade e, quem sabe, fazer a diferença. Kira tinha sorte, ela cobria política internacional. Eu...
“Talvez eu devesse mesmo mudar de vida”, pensei.
Antes que pudesse me aprofundar demais nesses devaneios, algo caiu de uma das pilhas que eu movi. Uma carta, amarelada e dobrada, que deslizou até o chão.
Peguei-a, estranhando o fato de que ainda havia correspondência física no meio do meu caos digital.
— O que é isso? — murmurei, abrindo a carta.
Kira, curiosa como sempre, parou o que estava fazendo e se aproximou para espiar por cima do meu ombro.
— Amiga, eu deixei isso aí há pelo menos duas semanas.
A carta tinha uma caligrafia elegante e cuidadosa, como se tivesse sido escrita por alguém acostumado a um mundo onde tempo e atenção aos detalhes ainda importavam.
Querida Mirella Esposito,
É com grande pesar que informo o falecimento de sua tia-avó Karen Esposito. Em respeito ao seu último desejo, informo que ela lhe deixou a propriedade na encosta da montanha em Port Angeles.
Estarei aguardando ansiosamente a sua chegada para efetuar os trâmites legais e para lhe entregar a escritura, chaves da propriedade e demais bens.Atenciosamente, Naomi Owens.Eu engoli em seco.
Com os dedos um pouco trêmulos e um frio inesperado no estômago, deitei o papel em cima da impressora e sentei para tomar um ar.
— O que diz aí?
— É sobre uma parente distante que me viu apenas quando criança — respirei fundo, olhando para a última linha da carta. — Ela faleceu e me deixou uma propriedade em Port Angeles.
— Do outro lado do país? Que delícia.
Kira piscou algumas vezes, tentando processar.
— Pois é...
— Não mantinham contato?
— Não. Ela era bem reservada e acho que brigou com a minha avó, então não mantinha contato com a família.
— Que pena. Bom, ao menos ela lhe deixou uma herança.
— O único saldo positivo na minha conta, comparado à dívida estudantil.
Kira e eu rimos para afastar a tensão.
— E o que pretende fazer?
A pergunta dela me deixou apreensiva.
Não havia cogitado viajar em momento algum, na verdade, uma casa do outro lado do país, em um estado desconhecido, não pareciam muito atrativas.
— Em algum momento nos próximos anos irei até Port Angeles, vendo a propriedade e quito minhas dívidas.
— Você está certa, amiga. Isso é melhor do que gastar o seu talento escrevendo artigos sobre tecidos do século XVIII.
Odiei Kira por ter dito isso. E me odiei um pouco mais ao perceber que as minhas perspectivas de crescimento naquele lugar eram praticamente nulas. Ninguém me levava a sério ali, exceto minha amiga.
— Aqui diz “demais bens”, será que se refere ao dinheiro?
— Preciso ativar meus talentos de jornalista investigava e descobrir o número dessa Naomi Owens — liguei o computador.
— Boa ideia.
Kira sentou em sua área de trabalho e me ajudou com a pesquisa.
Port Angeles costumava ser uma cidade tranquila. Bem, tão tranquila quanto uma cidade que abriga uma Alcateia inteira de lobos pode ser. Nos últimos anos, essa calmaria havia se tornado cada vez mais rara, porque além de enfrentarmos inimigos na fronteira ao norte, lidávamos com uma cisão dentro do nosso próprio clã.Esfreguei a palma da mão aberta em meu rosto e mantive meu olhar fixo na janela do escritório, observando a linha das árvores que margeavam o território da nossa alcateia, que antes ia até perder a vista, agora a fronteira se aproximava.— Arturo?Meu irmão Draven me chamou, interrompendo o fluxo dos meus pensamentos. Ele tinha o talento de aparecer nos momentos em que eu mais queria ficar sozinho.— Precisamos conversar.— Pode falar.Me direi para ele e encostei na mesa de madeira antiga.Draven, o Beta mais proeminente de toda a Alcateia e meu braço direito, estava parado à porta, braços cruzados e aquele olhar sério que sempre usava quando queria me dar alguma notícia
A carta repousava em cima da impressora, como se desafiasse minha capacidade de ignorá-la. Enquanto eu me acomodava na cadeira para mais um dia de trabalho, minha cabeça não conseguia se concentrar nos tecidos do século XVIII, apenas na propriedade na encosta da montanha em Port Angeles. Kira e eu passamos um tempo pesquisando tudo sobre e tentando entrar em contato com alguma autoridade da cidade, sem sucesso.Tudo isso era o tipo de coisa que eu via em filmes, não na minha vida monótona e presa a um escritório abafado, cercada por documentos esquecidos e projetos que ninguém se importava em ler. Kira olhou para mim, ansiosa. Eu sabia que ela queria que eu dissesse algo sobre o assunto, qualquer coisa que mostrasse que eu tinha um plano ou pelo menos uma ideia do que fazer a seguir.Mas a verdade era que eu não tinha.Essa notícia havia caído como um raio em um dia já chuvoso, e minha mente se recusava a processá-la completamente.— O que decidiu?— Nada, ainda, mas falei com a minha
A cidade estava ficando menor à medida que os dias passavam. Os mesmos prédios, as mesmas pessoas, os mesmos trajetos para o trabalho – e os mesmos artigos enfadonhos. De repente, cada pequena coisa na minha vida parecia sufocante. Mas o que realmente me empurrou para tomar uma decisão foi uma conversa que tive com a minha mãe, depois de finalmente contar sobre a propriedade e quão valiosa era.“Às vezes, a vida te dá oportunidades disfarçadas de obstáculos. Cabe a você descobrir o que elas realmente são”.E foi assim que dei o sinal verde para Naomi comprar a passagem.“Qualquer lugar menos aqui” parecia exatamente o que eu precisava. E quem sabe? Talvez uma pausa para recarregar as energias e uma vida em uma cidade pequena pudesse me oferecer a paz que o barulho incessante da capital nunca poderia.Pelo menos, era o que eu esperava.Empacotei minha vida em duas malas e uma caixa de sapatos cheia de pendrives, porque, claro, você nunca sabe quando vai precisar de um backup do artigo
O cheiro dela estava em toda parte, mesmo antes de vê-la. Doce, fresco, intenso, como uma flor silvestre recém-desabrochada.Era... Humano. Algo que, normalmente, seria insignificante para mim. Mas aquele aroma despertou não apenas o meu lobo, mas um instinto primitivo que eu não sentia havia muito tempo. Não consegui ignorar, não queria ignorar.Era cheiro humano, mas diferente. E essa diferença estava bagunçando todos os meus sentidos. Enquanto me encostava no carro de Draven que havia tentado acompanhar minha corrida animalesca até a fonte do meu desejo, cruzei os braços, observei a casa de sua família. A casa que deveria ser minha. Precisava ser minha. A névoa da manhã envolvia a propriedade, dançando como um véu protetor. E, naquele instante, eu senti que o poder da montanha estava mais forte do que nunca.E então, ela espiou pela janela.Quando a vi pela primeira vez, fiquei surpreso com o contraste entre seu cheiro capaz de dominar meus sentidos e ela. Era uma mulher jovem de c
A sensação de estar sozinha naquele lugar me abalava. Eu sabia que Naomi estava na cozinha preparando chá, mesmo assim, a casa parecia respirar ao meu redor, como se estivesse me cercando em um abraço fantasmagórico. Tomei um banho quente, vesti roupas limpas e confortáveis, mas a sensação de algo fora do lugar não desaparecia. Tinha algo nesse lugar.Algo que eu não conseguia entender, mas que parecia me chamar de maneira inquietante. Caminhei até a janela novamente, procurando por qualquer sinal daquele homem misterioso. Ele havia desaparecido, mas sua presença ainda pairava no ar, como um calor que se recusava a desaparecer.Era estranho.Eu podia jurar que senti o toque de sua respiração quando me olhou, uma onda de calor que atravessou a distância entre nós e se alojou sob minha pele. Um arrepio percorreu minha espinha, e meus lábios formigaram com a memória de um toque que nunca aconteceu. Como se ele estivesse ali, tão próximo que o espaço ao meu redor parecia ter encolhido.Qu
Segui o conselho de Kira e fui explorar a cidade.Port Angeles tinha um charme peculiar, suas ruas estreitas e prédios antigos pareciam ter sido arrancados de um livro de histórias, e a neblina que pairava no ar dava um toque quase mágico ao lugar. Após passar pela livraria-café, mercado e um dos restaurantes tradicionais da cidade comecei a compreender por que minha tia-avó havia amado este lugar.Mesmo assim, a inquietação não me deixava.Passei algumas horas perambulando, tentando absorver um pouco do que a cidade tinha a oferecer. Passei no cartório para assinar os papeis e assumir titularidade da casa, me aventurei em uma loja de antiguidades que parecia ter séculos de poeira acumulada e comprei alguns suprimentos em outro mercadinho.Tudo ali era diferente do que eu conhecia. Ainda assim, por mais que tentasse, a sensação de pertencimento que senti na casa não se repetia aqui. Era como se a cidade, de alguma forma, estivesse me testando.— Por que existe esse símbolo em quase to
As árvores ao lado da estrada passavam como vultos enquanto eu corria de volta para casa, em minha forma animal. Havia uma pressão em meu peito, como um incêndio que recusava a ser apagado. Quem ela pensava que era, me desafiando daquela maneira? Ela nem tinha ideia do que estava em jogo.Ainda assim, não consegui tirá-la da minha cabeça desde o momento em que a vi. E isso só piorava as coisas.“Eu vou decidir o que fazer com ela.” As palavras ecoaram na minha mente, irritantes como um zunido constante. Como se ela tivesse algum tipo de controle sobre a situação. Sobre mim.Não, eu não podia permitir isso. Eu precisava de controle, manter a ordem. Desde que assumi a liderança após a morte do meu pai, tudo o que fiz foi garantir a integridade da minha Alcateia e das nossas terras. Agora, com ela aqui, parecia que tudo estava prestes a ruir. Cheguei à porta de casa em um salto poderoso, os músculos das patas impulsionando meu corpo com força.O ar da noite cortava meus pulmões, um lembr
A noite tinha se instalado, trazendo consigo uma quietude que eu não conseguia encontrar em mim mesma. Após ligar para minha mãe e contar como havia sido o meu dia, preparei um chá de camomila, peguei um livro para ler, mas não consegui me concentrar, as palavras se misturaram, ficaram borradas e então cochilei.Minha mente retornou ao encontro de mais cedo.Arturo Pellegrini. Alto, poderoso, e incrivelmente irritante. E ao mesmo tempo... instigante.Meu corpo ainda carregava os resquícios da energia que ele trouxe consigo, um arrepio subindo pela espinha quando lembro da forma como me olhou. Senti um calafrio na espinha e acordei assustada.— Pare de pensar nisso, tire-o da sua cabeça e foque em resolver suas coisas e voltar para sua vida — me repreendi.Deixei o livro na poltrona, fui até a janela e encarei a floresta lá fora. A escuridão parecia densa, a neb