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Paixões impossíveis

Capítulo II

Paixões impossíveis

A distância se fez longa até aquele belo homem e a porta onde eu estava parada, esperando. O meu pai abriu um sorriso, como se precisasse. Eu já estava feliz de olhar para aquele roceiro bonito que tinha se tornado o Eric. Mais perto, eu podia reparar nos detalhes do rosto, a cor verde dos olhos, o perfeito desenhado dos lábios, o suor que escorria pela nuca vindo parar no peito e a calça de cós baixo dele que era puxada pelas coisas que havia nos bolsos. Ele trazia uma rédea nas mãos e outro acessório que eu não sabia o que era, mas queria muito saber.

- Filha, lembra do Eric? Vimos ele na estrada, é o filho do Narciso.

- Sim, pai, lembro.

Eric retirou o chapéu e limpou a mão na calça jeans para me cumprimentar. O sorriso era perfeito, eu estava agradecendo a Deus por poder vislumbrar aquela perfeição rude em forma de homem.  Apertei a mão dele e sorri mais que o necessário.

- Como vai, Eric? Quanto tempo!

- Com certeza! - Eu amava aquele sotaque do qual eu tinha perdido boa parte - Lembra mesmo de mim?

- Hmmmm...na verdade muito pouco. - Me senti idiota.

- A gente era bem pequeno e nosso contato foi somente para brigar. - Ele riu, eu me desmanchei. Que sorriso e que voz. Máscula e forte.

- É que eu fiquei muito tempo em São Paulo. Você estudou sobre cavalos?

O seu Gerson viu que havia muita conversa ali e decidiu sair.

- Me dão licença, vou ver alguns equipamentos.

Ele passou por mim entrando em casa.

- Eu vou ver o “patrão” daqui há pouco. - Garantiu ele a meu pai.

- Fica a vontade!

Ele voltou o olhar ao meu e sorriu sem jeito.

- Eu estudei em Goiânia, gosto de cavalos, mas seu pai não entende nada deles, eu venho ajudar por amizade.

- Ah, nem sei por que ele comprou cavalos, quantos?

- Três mangalarga mas um deles é chucrinho e eu estou na doma dele.

- Isso, na sua mão é o que?

- Ah é um conjunto de cabeçada.

- Ah entendi tudo.

Rimos.

- Vai entender com o tempo, se ficar aqui.

- Claro...

O assunto tinha terminado e aquele incômodo silêncio reinou entre nós. Eu precisava fazer alguma coisa, mas fizemos ao mesmo tempo.

- Vem todo dia? - Vai a Cavalhada? - Perguntou ele.

Nós rimos. Que poesia era aquela risada. Por que eu fui para São Paulo? Aquela poesia ambulante caminhava sobre os campos de soja de Goiás e eu perdendo minha vida com traições ao invés de estar olhando para coisas bonitas como aquela.

- Não acredito que ainda se comemora, jura?

- Sim, é história de Pirenópolis e - Ele colocou a mão na frente da boca e falou baixo - Eu sou um dos mouros, não espalhe para ninguém. Será que vai me reconhecer?

Àquela altura eu já estava me sentindo bamba de encantamento. Ele representaria um mouro. Eu lembrava de amar os mouros quando criança, mesmo sabendo que eles eram os vilões da encenação.

- Eu acho difícil, lembro de ter muito medo dos mouros quando era pequena, mas muita admiração também, aquela coisa de gostar de vilão - Eu sorri.

- Então acho que vai gostar...

Alguém pigarreou às minhas costas e quando me virei rapidamente vi minha mãe acariciando a mesa com ar sério. Eu sabia o que aquilo significava. Ela queria que a conversa se encerrasse.

- Eu vou indo, Alice - Ele recolocou o chapéu cowboy na cabeça - Depois proseamos mais.

- Certo.

Ao me virar para minha mãe já sabia que vinha bronca. Eu não sei até que idade é possível levar bronca da mãe sem se irritar, mas eu já tinha vinte e nove anos e agora lembrava bem porque tinha ido para São Paulo.

- Alice, isso não é certo minha filha, você mal chegou e já está proseando com um homem que mal conhece, você é casada.

- Mãe, quantas vezes vou precisar dizer que eu separei? No papel. Tecnicamente eu posso conversar com quem quiser.

- Não aqui, lá em São Paulo pode ser mas na roça as coisas são diferentes, você vai ficar falada.

- Só se a senhora e meu pai falarem porque mais ninguém viu a conversa com o Eric. A senhora pretende falar por ai? E que homem lindo ein! - Passei por ela e me dirigi para as escadas a fim de ir para meu quarto desfazer minhas malas.

A roça lá é assim. Mal você coloca os pés no lugar, já começa a ser observada por todos e pior ainda é quando se é mulher. Ao subir para meu quarto comecei a desfazer minhas malas. O quarto ainda guardava um pouco do que foi. O cheiro de limpeza, de casa de mãe misturado com o cheiro de mato. Havia ali uma cama de solteira com uma colcha de crochê rosa e um armário. Ouvi o barulho de estábulo e cavalos não muito longe dali. A curiosidade e vontade de continuar olhando Eric me levaram a janela do meu quarto. Eu não sabia o nome daquilo onde ele treinava o cavalo mas se tratava de um cercado em forma de círculo onde ele trabalhava com o animal. Ali, atrás da cortina eu fiquei um tempo olhando para ele até ouvir passos na escada. Logo me afastei da janela com receio de ser minha mãe. E era. Ela passou pela porta do meu quarto me olhando. Eu sorri e ela ainda esticou o pescoço para ver se eu conseguia ver Eric da minha janela. Em seguida balançou a cabeça negativamente como se eu tivesse culpa da minha janela dar vista para o estábulo do meu pai. Previ que não teria paz por algum tempo.

Só que naquele momento eu só queria saber quando seria a Cavalhada daquele ano. Aquela era uma festa típica de Pirenópolis. Até que outras cidades também comemoravam, mas não com tanta pompa quanto a minha cidade. A festa consistia em três dias de homenagem aos cristãos que lutaram pela retomada da Península Ibérica no século quinze. Os mouros, muçulmanos árabes, foram os invasores durante oitocentos anos enquanto os cristãos defenderam suas terras. Somente no século quinze os Reis cristãos conseguiram expulsar os mouros da Península Ibérica. A homenagem a esses reis e ao cristianismo era chamada de Cavalhada no Brasil, em forma de homenagear a resistência cristã. A festa começava em uma arena com plateia como em um coliseu grego e em seguida o exército do Rei Cristão, vestidos de azul, montados a cavalo, entravam em cena. Os invasores mouros, caracterizados de vermelho adentravam então e toda uma encenação junto ao Rei Cristão começava. Quando criança eu era fascinada por tudo que aqueles cavaleiros representavam. A força, poder e honraria de participar da encenação, todo ano e o mistério que envolvia as figuras que dela participavam me fascinavam. Os mouros, de vermelho, assustavam as crianças, assustavam a mim, porém não mais que os cavaleiros mascarados que só existiam em Pirenópolis. Eles andavam cobertos e mascarados, chamados de “Curucucús” pelo barulho que faziam, mudando suas vozes e as vezes fazendo críticas sociais pelas ruas. Era algo de que eu me lembrava muito bem por me assustar e que agora, como escritora, seria interessante de me aprofundar para contar suas histórias. A Cavalhada acontecia sempre em um domingo, segunda e terminava na terça. Várias comemorações aconteciam naquela época de maio. Se Eric tinha me convidado para o assistir vestido de mouro é porque tinha muito orgulho de suas raízes, da história de sua cidade e de tudo que o folclore goiano representava para ele. Eu estava ansiosa.

Após guardar tudo, abri meu notebook e comecei a escrever sobre a festa. Comecei por uma exaustiva pesquisa e em seguida passei a imaginar aquele homem sobre um cavalo negro, trajando elmo, escudo, armadura correndo naquela arena de ponta a ponta. Breno tinha desaparecido de meus pensamentos. O mais importante naquele momento era Eric e sua armadura moura e em como ficaria lindo enfiado nela. Então adormeci.

Estava em um campo de futebol do interior, daqueles bem precários, sem uma boa arquibancada de cimento. Era todo de madeira. Eu estava no centro do campo sozinha olhando para todos os lados. Havia árvores do lado de fora e sob meus pés só havia grama. Olhei para baixo, as linhas brancas de meio de campo estavam lá, eu estava mesmo em um estádio pequeno de futebol. Ouvi trotes de cavalo e ergui a cabeça novamente para ver o que vinha. Senti todo o pavor de ver um mascarado da Cavalhada entrando pelo portão do estádio, montando seu cavalo que trotava, imponente, batendo os cascos no chão. Cada passada eu sentia no meu coração. Morri de medo. Era um medo irreal, eu sabia que era uma pessoa mas ali não parecia ser. Rapidamente ele estava a minha volta e me observava dando voltas ao meu redor sobre aquele cavalo, mascarado com uma máscara de boi vermelha. A voz não parecia humana.

- Está no meu domínio, mulher! Vai ser castigada!

- Não, por favor!

Gritei e saí correndo o mais rápido que minha forma física podia alcançar mas eu parecia não sair do lugar. Então, senti uma mão me pegar pela roupa e facilmente me erguer para cima do cavalo me sequestrando enquanto apertava sua grande mão contra minha barriga, me segurando contra ele.

- Está preparada para ser castigada?! Ninguém vem ao meu domínio sem me pedir permissão!

- Eu não estou em seu domínio, estou em minha cidade!

- Calada!

O cavalo saiu do estádio ganhando as ruas e ficando cada vez mais veloz. O vento já chicoteava meu rosto e meus cabelos quando parecíamos estar na velocidade de um carro. Então ele parou na mata. Eu parecia uma boneca em suas mãos imensas, me segurando para descer do cavalo. Era muito forte mas violento. Quando finalmente parou de me arrastar, me grudou a uma árvore, de costas para ele. Eu implorava pela minha vida.

- Por favor não me mate, mascarado!

- Eu não sou um mascarado! - Ele me virou bruscamente para ele e retirou sua máscara, se mostrando ser Eric - Será castigada por ser filha de quem é...

- O que? - Ainda perguntei, atônita, sem compreender o que acontecia.

Não demorou para que ele levantasse meu vestido e baixasse sua calça. Eu sabia o que ia acontecer então me segurei firme na árvore, sentindo as unhas cravarem na madeira do tronco velho. Eu sabia onde estávamos. Era na cachoeira. Eu conhecia aquele lugar. Seria estuprada e comecei a gritar a plenos pulmões. O meu estuprador começou as estocadas em mim sem qualquer piedade. Uma, duas, três, eu ia contando e parando de gritar. Sentia aquele ato se transformando de dor em amor e delícia em segundos.

- Eric....

Eu murmurava sem nenhuma vontade de que ele parasse realmente. Ainda sentia medo, ainda nada fazia sentido naquele ato, até mesmo por estar ficando gostoso. Eu podia sentir os músculos do peito dele imprensarem minhas costas enquanto praticava o ato sem consentimento. Eu tentava olhar para trás e quando conseguia, via o rosto bonito de Eric. Sentia prazer. Quando comecei a gozar...

Acordei. Acordei abruptamente, tomando o ar, sentindo prazer na pelve inteira, as pernas tremerem. Mas o que tinha acabado de acontecer? Olhei para meu notebook que havia entrado em modo de espera e em seguida olhei pela janela. Já anoitecia. Eu tinha experimentado um orgasmo dormindo. Que sensação estranha, mas tão real. Era Eric. Não podia ser, eu mal tinha chegado em Pirenópolis e já estava sonhando com aquele homem. E pior, tendo sonhos eróticos com algo que eu repudiava tanto, um ato sexual não consentido. Levantei-me rapidamente e fui até a janela. A pick-up  dele não estava mais lá. Ele tinha ido embora. Mordi a unha enquanto olhava a fazenda a noite. Lembrava de como me sentia quando anoitecia, quando meus pais nos aterrorizavam com as histórias do “Pés-de-garrafa”, uma entidade da mata ou com a “Mãe D´ouro” que protegia as matas e cachoeiras. A iluminação do lado de fora da casa não se estendia muito, até no máximo ao estábulo então decidi que eu precisava era de um banho do que ficar ali pensando naquele homem lindo, que certamente devia ter namorada. Logo meus irmãos chegariam para me rever e eu estava ainda sem tomar um banho e morta de fome. Busquei shampoo e toalha na minha mala e escolhi uma roupa para jantar com a família. Estava morrendo de saudades.

Assim que saí do banho, me vesti ainda no banheiro. Tinha feito a escolha por um vestido sem mangas floral e uma sandália de salto baixo. Olhei-me no espelho, limpando o vapor do vidro com a mão e tornei a me olhar. Olhei bem meus olhos enquanto fechava um cordão atrás de meu pescoço. Era um cordão de prata com um pingente da letra A, do meu nome e uma pomba. Eu amava aquele cordão mesmo tendo sido um presente de Breno. Nem tudo precisava ser odiado. Alguns momentos eu lembrava com carinho e por isso chorava sempre que lembrava. Queria muito de volta o que vivi de mais bonito, queria muito que tudo voltasse, só que nada disso aconteceria e eu devia seguir em frente. Enxuguei uma lágrima e saí do banheiro para descer as escadas e esperar meus irmãos.

Ao chegar a cozinha, o cheiro da comida era delicioso. Minha mãe parecia preparar um banquete, havia saladas sobre a imensa mesa da cozinha e várias panelas sobre o fogão. Eu me sentei a mesa pensativa pegando em alguma coisa para fazer. Dona Alma me olhou e sorriu.

- Alice, você não precisa me ajudar filha. Dormiu bem?

- Dormi mãe - Lembrei de novo do sonho erótico.

- Eu nem te chamei para almoçar, estava roncando, devia estar tão cansada...

- É verdade, eu estava. Não quer mesmo ajuda?

- Não, já estou terminando, vá ver o que seu pai está fazendo.

- Está bem.

O cheiro era de Galinhada, prato típico de Goiás e estava delicioso. Encaminhei-me para fora a procura do meu pai. Ele estava fumando um charuto no estábulo, observando o cavalo.

- Pai?

- Oi filha, acordou?

- Sim, tomei meu banho e mãe falou para vir te ver.

- Ah, certo, vê esse “patrão” chucro? Está difícil, coitado do Eric, está pelejando com ele.

Novamente o nome dele voltava e a imagem do sonho voltava a minha mente.

- Patrão?

- É o nome que Eric deu a ele - Riu-se - Porque ele pensa que manda, que é o patrão aqui.

- Ahhh - Eu sorri - O senhor gosta bastante do Eric não é pai?

- É um bom homem... prestativo, de confiança e de palavra. Diferente do pai dele.

- Pensei que tivessem feito as pazes...

- Sim, há muito tempo, mas ele é um velho nojento que volta e meia fica querendo comprar minha fazenda. Parece que as oitenta sacas por hectare não lhe valem nada. Nós tiramos trinta e eu estou satisfeito de poder deixar isso aqui para meus filhos.

- O senhor não é ambicioso no modo destrutivo dele, meu pai.

- Pois é.

- E o Eric? Vem por amizade? Deixa uma mulher em casa para vir te ajudar? - Joguei.

O senhor Gerson me olhou com um sorriso no rosto, perfeitamente esperto como uma raposa.

- Ele não tem nem namorada, Alice.

- Ah é? Como o senhor sabe?

- Porque homens proseiam.

- Ah sim, esta é uma verdade meu pai.

Sorrimos um para o outro.

- Eu fazia gosto, filha. Ele é um homem bom.

- Pai... Eu acabei de me separar.

- Eu sei mas sua mãe pensa diferente, ela acha que você devia voltar.

- Eu sei que ela acha isso - Mordi a unha - Mas não vai acontecer, eu assinei os papéis e me magoei por muito tempo.

Ele me olhou atentamente tragando um pouco do charuto.

- Eu sei e se eu o ver, você sabe, eu carco a mão na cara daquele homem, eu ainda não engoli esse negócio, deixa ele aparecer na minha Goiás...

Ouvindo tudo que dizia e sabendo tudo que eu sabia, melhor foi deixar ele falar porque meu pai também não era nenhum santo. Naquela hora pelo menos eu sabia que Eric não era casado e isso era uma informação que me importava. Eu não sabia porque me importava, afinal eu não queria ficar com ninguém, nunca mais, mas só sabia que me importava. O barulho dos carros era alto, ouvi buzinas. Meus irmãos gostavam de estardalhaço agora? Duas crianças entraram gritando. Eu me lembrava delas de cinco anos atrás quando vim visitar a família. Meu sobrinho e sobrinha, filhos de cada um dos meus irmãos Ana Maria e Artur.

- Tia! - Eles gritaram e me abraçaram quase me jogando no chão.

Beatriz era linda, tinha os cabelos loirinhos encaracolados, parecia a Ginger Rogers brasileira. Ela tinha seis anos e João Paulo tinha nove anos. Ele era mais sisudo, mas me deu um abraço apertado e emocionado. Eu me agachei para olhar para eles.

- Como estão lindos! Pena a tia não ter trazido nenhum presente, mas vamos ao centro da cidade juntos comprar coisas bem legais, combinado?

- Combinado! - Gritou Beatriz sem saber direito sobre o que eu falava.

Ana Maria entrou logo em seguida com uma barriga imensa de oito meses e eu me reergui para lhe dar um abraço meio de lado.

- Minha irmã... - Disse ela - Que saudade!

- Outro? - Eu sorria com muita inveja mesmo sabendo que aquele era um sentimento horrível.

- É, roça, se faz o que? - Ela riu.

Aquele era o pior sentimento do mundo, o de fracasso na vida. Eu estava me matando de autopiedade e podia entrar em depressão se não tentasse escapar para dentro de mim mesma novamente, escrevendo. Porém nada me vinha, só Eric. Aquele homem não me deixou pensar em mais nada durante o dia e certamente eu não pensaria em mais nada enquanto estivesse ali, com vontade de me jogar na cama dele. O mais perigoso de tudo era o aval do meu pai.

Artur entrou com sua esposa e abracei meu irmão mais novo com muito carinho e depois sua esposa Leila. Os dois formavam um casal lindo, cheio de carinho um com o outro, mas senti falta de Pedro, marido da Ana Maria. Durante o jantar soube que ele estava viajando a negócios. Os meus irmãos moravam em Pirenópolis, no centro da cidade, em casas urbanas, bem diferentes da fazenda. A galinhada da minha mãe foi elogiada por todos, estava realmente uma delícia e ainda acompanhada por um pudim de leite maravilhoso. O assunto girou entre o meu divórcio e a gravidez de Ana Maria. Quando se tratava do meu divórcio, as duas trocavam olhares reprobatórios. Eu conhecia bem aquele olhar de condenação partido de mulheres submissas. Tanto fazia, eu era do jeitinho que eu queria ser e não aturaria mais traições, não importava o que a minha família pensava de mim. Seu Gerson fez questão de cortar os assuntos indo fumar um charuto na sala e nos convidando a ouvir uma moda. “Amargurado” de João Mulato e Douradinho começou a tocar no aparelho moderno de som. Eu ouvia aquela letra de música e sentia que ela fazia tanto sentido para mim que cheguei a estancar as lágrimas com os dedos e costas das mãos. Ana Maria veio se sentar do meu lado e me abraçou.

- Não chora, ele volta...

Ele volta? Quando iriam entender que quem foi embora tinha sido eu? A vontade de socar as pessoas crescia dentro de mim. Eu não sabia o quanto ia aguentar ainda de julgamentos e críticas. Pedi licença depois de ouvir três modas do meu pai e me retirei para meu quarto, onde pude chorar a vontade. Eu tinha sido a vida toda uma pessoa mais dura, só que ali, no ninho dos meus pais, rodeada de tanto julgamento, eu estava a flor da pele, chorando por todo motivo. Deitei-me em minha cama e molhei o travesseiro de tantas lágrimas sentidas, soluçando pela falta de acolhimento, de compreensão e mágoa. Adormeci chorando.

Ao acordar, um barulho alto castigava meus ouvidos acostumados ao silêncio do apartamento de Moema. Eram relinchos de cavalo. Levei as mãos aos olhos, esfreguei e me sentei para olhar o relógio de cabeceira. Dez da manhã. Ouvi relincho novamente. Só podia ser Eric. Fui até a janela e lá estava aquele homem bonito, de calça jeans e camisa branca, dessa vez, sem chapéu. Olhei para meu corpo, estava ainda vestida como no jantar. Precisava trocar de roupa e ir cumprimentar Eric só para irritar minha mãe dessa vez, afinal fui dormir chorando mais por culpa dela e da minha irmã do que propriamente do que estava sentindo pois não me deixavam esquecer Breno. Vesti um shortinho curto, uma camiseta e chinelos e fui buscar um pedaço do bolo que tinha sobrado. Ainda mastigando fui desejar bom dia a Eric. Por educação, ele saiu daquele cercado e veio me cumprimentar.

- Bom dia, peão!

Ele sorriu, muito simpático.

- Bom dia, Alice!

O homem acendeu um cigarro na minha frente, ficando ainda mais gostoso do que já era. Por que o cigarro deixa as pessoas mais sedutoras embora seja tão cancerígeno? Eu pensava. Ele só me deu vontade de fumar novamente.

- Faz isso não, vai te matar.

- Nada, o que me mata é aturar meu pai.

- Uau, temos algo em comum, minha mãe está me matando...Me dá um cigarro?

- Mesmo? Por quê?

Eu mostrei o dedo anelar vazio da aliança enquanto segurava o cigarro da mão dele fazendo encostar nossas mãos.

- Me separei.

Ele fez uma expressão triste de dó apertando os lábios e olhou para o cavalo se apoiando na grade de madeira.

- Seu pai me falou. Por isso veio para cá?

Ora que coisa, meu pai andava falando da minha vida por ai.

- Acertou. Eu voltei para me reinventar e recomeçar de onde sai.

Ele me olhou dando uma tragada no cigarro.

- Eu tenho certeza de que vai conseguir, o ar puro e os campos fazem muito bem. Mas sua mãe está olhando para nós da porta.

Eu olhei para trás e vi dona Alma me observando com aquele ar de reprovação.

- Eric, dane-se minha mãe, eu não vou passar minha vida na sombra da submissão dela.

- Faz muito bem.

Aquela frase havia me surpreendido.

- Acha também?

- Claro, assim como não vou passar a vida na sombra do meu pai.

- Tenho certeza que ele conta com você e seus irmãos para tocarem a fazenda.

- É, eu sei mas eu gosto dos cavalos. Lidar com gente não é meu forte, eu prefiro os bichos.

- Até agora você está indo bem.

Nós rimos.

- Porque eu conhecia você, não sou tão chucro quanto eles, fiz faculdade.

- E qual o nome desse cercado do “patrão”?

- É redondel. O lugar onde adestramos os cavalos para a monta.

- Entendi.

Ele ficou me olhando e me apontou com a mesma mão do cigarro, sorrindo.

- Vou preparar ele para você.

- Para mim?! Eu tenho pavor de cair de cavalo!

- Você não vai cair, vai montar bem.

Minha mente me sabotou e imaginei outras coisas, sorri. Acredito que ele entendeu o meu sorriso e seu rosto ruborizou.

- Você me ensina?

- Só se for me assistir de Mouro na Cavalhada.

- Fechado!

Estendi minha mão a ele e nos cumprimentamos fechando um acordo. Eu não conseguia puxar a mão de volta e chacoalhamos nossas mãos por mais tempo do que o habitual. Ele me olhava nos olhos enquanto puxava a última tragada de seu cigarro, cerrando os olhos verdes mais lindos do mundo. Como era bonito aquele filho do Narciso! Enfim soltamos as mãos.

- Posso te dar meu w******p para conversarmos sobre a vida? - Ele perguntou.

Eu mal podia acreditar que aquele homem todo estava demonstrando interesse. Até fez acelerar meu coração. Quanto tempo isso não acontecia!

- Claro!

Ele buscou o celular no bolso e começou a anotar o número que eu ia falando.

- Gosta de tomar uma gelada?

- Prefiro vinho - Respondi rapidamente.

- O centro tem bares bons. Se quiser sair do campo um pouco e se divertir, me avisa.

- Com certeza.

Quando vamos? Eu queria para o mesmo dia. O convite estava feito e eu não poderia perder aquela oportunidade de esquecer Breno e as críticas jamais.

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