Capítulo IV
Inconstância e desespero
As coisas aconteciam bem rápido em Pirenópolis. No dia seguinte, acordei já com o barulho no campo das colhedeiras, como chamava meu pai as colheitadeiras de soja. A soja fica pronta para plantio e colheita duas a três vezes no ano em um clico de sessenta até cento e vinte dias, portanto, era bem rápido e bem lucrativo. O chato era ser acordada pelo barulho da máquina saindo do celeiro, perto da casa para ir para o campo. Tomei o meu café e reparei que naquele dia havia ali uma família ajudando minha mãe a limpar a casa. Sentei-me na varanda e observei o trabalho. Naquele momento uma adolescente de, talvez, uns dezesseis anos veio ao meu encontro, parando o que fazia.
- Eu li seu livro!
Ela disse aquilo com tanta alegria que suas bochechas ficaram rosadas. Era uma graça, tão bonita, carregava aquela beleza agrária, de cabelos loiros bagunçados pelo vento e vestido simples.
- Que maravilha!
Eu me levantei e dei um abraço nela.
- Eu quero uma dedicatória!
- Claro, depois traz ele aqui e a gente conversa, quero saber o que achou!
- Olha, eu preferia que o Matt não tivesse morrido no final, eu chorei muito, mas amei tudo.
- Ah meu deus! - Levei as mãos ao rosto - Ele precisava morrer para que Liz encontrasse um novo amor. - De repente aquelas palavras tocaram fundo no meu coração, fiquei séria por alguns segundos - Mais alguém leu? Suas amigas?
- Não, Alice, só eu sei ler e me lembro que disse no seu f******k querer voltar aqui um dia para abrir uma escola no campo.
- É verdade, eu disse isso e tenho essa vontade, você me ajuda?
- Claro! Só dizer o que precisa, minha escritora favorita. - Ela deu as costas para voltar ao trabalho depois de ver os olhares repreensivos da mãe - Depois vou deixar meu endereço para me falar, só meu pai tem celular. - Ela balançou os ombros com dó de si mesma.
Aquele foi o momento em que me vi naquela menina há uns anos atrás. Ela queria mais, assim como eu quis. Esperava muito que ela não se casasse com um idiota qualquer que prejudicasse seu futuro como aconteceu comigo. Senti vontade de coloca-la no colo e proteger seu futuro mas sabia que isso era impossível. Alma apareceu e se aproximou de mim.
- Eu sei o que está pensando... ela quer a escola não é?
- Sim, mãe, não é incrível?
Eu estava realmente entusiasmada em poder ajudar, afinal as escolas ficavam no centro, há meia hora de carro das fazendas. A pé se poderia fazer com mais de uma hora de caminhada. Era exaustivo principalmente para as famílias que viviam da renda da época do plantio da soja. As máquinas cada vez ficavam mais modernas e eletrônicas e as famílias rurais não acompanhavam a modernização com a mesma rapidez.
- Não, não é incrível, já pensou que estudados eles vão nos cobrar os olhos da cara de salário por safra para trabalhar?
Eu não podia crer que minha mãe tinha se tornado aquela pessoa tão infeliz e ignorante.
- Minha mãe, quanto mais eles têm estudo, mais eles ajudam na demanda cada vez maior, investir no estudo é investir na fazenda.
- Quanto mais eles têm estudo, mais nós perdemos! Você não pensa! Aliás nunca pensou!
Estava ficando insuportável a convivência com a pessoa ignorante e grosseira que era a minha mãe. Eu precisava urgentemente de uma casa para alugar e ter a minha independência financeira, que consistia na venda dos meus livros, entretanto isso era tão fugaz e passageiro como nuvem no céu. Eu precisa de uma história nova com urgência. Levantei-me dali e me encaminhei para meu quarto, com raiva. Será que minha mãe não tinha um pingo de pena pelo que eu tinha passado e iria me constranger, xingar e julgar assim que eu abrisse a boca para qualquer assunto? Estava começando a me sentir “persona non grata” na casa dos meus próprios pais e isso era horrível. Naquele momento decidi que não poderia ir ver Eric na cachoeira. Eu não podia mais tomar atitudes baseadas em impulsos e acabar por magoar aquele homem já machucado pela vida. Eu não tinha voltado para a casa dos meus pais para viver aventuras sexuais mas para reconstruir minha vida sem a minha editora e meu marido. Aquilo era tudo que importava na minha vida. Eric era realmente lindo e sexy mas eu não podia me deixar levar pelas aventuras; precisava fincar meu pé na minha realidade e não me deixar levar mais uma vez pelos encantos de um homem bonito e abandonar os planos para a minha vida. E até mesmo porque ele tinha uma cicatriz não recuperada em sua vida que foi a morte da namorada. Eu tinha medo. Não queria mais ser impulsiva.
O resto da tarde, passei buscando uma casa para alugar em Pirenópolis e tentando rascunhar alguma coisa que fosse a cara de Eric em cima de um cavalo vestido de mouro. Adormeci e acordei as dezesseis horas, no horário combinado com ele na cachoeira, porém eu não consegui ir. Estava paralisada de medo. O pavor de me apaixonar por aquele homem apaixonante estava me consumindo. Enviei uma mensagem para não deixa-lo esperando por mim.
Perdão, eu não estou pronta. Não posso ir.
A mensagem foi visualizada mas não foi respondida. Fechei os olhos apertando o celular ao meu peito, com todo o medo misturado a arrependimento inundando meu coração. Eric merecia alguém melhor. Uma mulher menos complicada, mais determinada e mais decidida do que eu era naquele momento da vida. Resolvi que devia esquecer e quando ele fosse ver o “patrão”, eu fecharia minha janela e me esconderia da sua presença marcante, voltaria para dentro de mim mesma mais uma vez e assim correria menos riscos de chorar de novo.
A hora passou e pensei que talvez fosse bom ir tomar uma cerveja no centro de Pirenópolis. Já era sexta-feira a noite. Vesti uma calça jeans e um cropped preto, alguns acessórios cor de ouro como brincos e cordão e fui para a minha pick up.
- Não volta tarde, Alice! - Berrou minha mãe da janela da cozinha.
Eu sequer conseguia responder a ela, estava brava, magoada e não queria ouvir a voz dela por algum tempo. A estrada estava bastante escura naquela noite. Eu só enxergava até onde o farol alto me permitia. Senti um pouco de medo mas não demoraria a chegar. O cheiro do mato alto era delicioso, lembrava infância, casa e uma mãe que não gritava tanto. Senti saudade de quem ela era. Queria beber um pouco para esquecer quem ela tinha se tornado. Ao chegar a um bar chamado Taberna 1921 parei o carro na frente. Adorei o nome, por sinal. Entrei com a expectativa de encontrar uma Taberna e não me arrependi tanto. As luzes eram verdes e brancas e as toalhas que cobriam as mesas eram da cor vermelha e branca. O local estava mergulhado em penumbra e o teto era alto e todo em madeira, bem rústico. Eu não me lembrava daquela rua quando adolescente, até porque nunca podíamos sair da fazenda. A rua tinha vários bares bonitos a visitar e eu estava encantada. Sentei-me à uma mesa sozinha e logo veio o garçom com uma carta de bebidas.
- Só uma cerveja por favor.
- Certo, senhorita.
A cerveja veio e eu comecei a beber sozinha mas como não era tão adepta, logo parei antes de ficar bêbada. Já quase ia saindo do bar quando ouvi uma voz familiar entrar. Virei minha cabeça e vi Eric acompanhado de duas mulheres. Ele estava absurdamente lindo, a barba castanha-escura aparada, uma camisa preta de gola V, uma jaqueta de couro preta por cima, calça jeans e coturnos. Ele me viu ao passar por mim abraçado as duas mulheres. A voz na minha cabeça disse logo “sua idiota, era para você estar nos braços dele essa hora e não essas duas, logo duas” e que diabos ele estava fazendo entrando no mesmo bar que eu? Que golpe brutal do destino eu recebia nesse meu retorno. Cada dia um golpe diferente em Pirenópolis. Senti tanto ciúme que minha vontade era arrancar aquelas duas vagabundas dos braços dele e levar ele dali. Baixei a cabeça ouvindo as risadas que elas soltavam, a voz linda dele chamando o garçom. Achei mesmo que minha mãe estava certa, afinal sempre se tem um fundo de verdade em tudo que escutamos dos outros. Ele era mulherengo e gostava de ostentar isso. Certamente ele não prestava e teria esfregado seu corpo em mim a tarde e a noite estaria com aquelas duas de qualquer jeito. Tola. Estúpida. E o que eu estava fazendo comigo mesma pensando daquele jeito se eu disse a ele que não queria nada? Se ele mesmo havia dito que não queria nada sério com ninguém? Estava ficando louca por sentir ciúmes, contudo esse é um sentimento tão louco que não mandamos nele de nenhuma maneira que tentemos. Só que eu não podia ficar ali, não conseguiria ver aquele homem beijando outra boca. E lá estava eu sofrendo de novo por homem... Era inacreditável como eu precisava me ausentar de tudo ao meu redor para parar de sentir tudo tanto. Então me levantei para pagar a conta, quando o vi se levantar e vir em minha direção. Não era possível!
- Obrigado pelo bolo...
Olhei para ele como quem olha para seu algoz antes da morte certa. Pode me matar logo de uma vez, vamos, não enrole.
- Me mata logo de uma vez, Eric...
- Do que está falando?
- Daquelas duas piranhas com quem você está! Você me beijou hoje a tarde!
Ele riu.
- Certo, vim ver se você está bem e já vi que está. Você me negou e não tem direito a reclamar nada!
- Eu sei que não tenho mas não tenho culpa de estar morta de ciúmes!
Ele sorriu parado me olhando como quem recebe uma surpresa agradável. Entao cruzou os braços.
- Mas olha só, a mulher da cidade grande sentindo ciúme do roceiro...
- Tem um pequeno detalhe meu amor, eu fui roceira também e sim, estou claramente morrendo de ciúme e se você fez de propósito, pode se gabar disso!
Ele deu uma gargalhada gostosa.
- Bem, eu fiz tanto de propósito que vou voltar lá e ficar com as duas na sua frente para aprender a não dar fora em um Castro Garcia.
- Eric...
Ele deu as costas a mim e voltou a mesa com aquelas duas. Eric acendeu um cigarro que já estava sobre a sua mesa e abraçou uma das mulheres, uma loira. Quando vi o primeiro beijo, dei as costas e saí do bar sem pagar. O garçom ainda me gritou mas eu não queria ouvir mais nada de ninguém. Os beijos dele vieram a minha mente, a suavidade dos lábios, a quentura, o gosto; E agora estavam sendo trocados com outra e eu só queria chorar de raiva. Alcancei meu carro com a visão embaçada de tentar não derramar as lágrimas. Dei partida no carro e saí dali o mais rápido possível. A estrada estava um breu como na ida, eu acelerava mais que podia, queria estar logo em casa. De repente um farol alto me cegou pelo retrovisor.
- Passa filho da puta! - Gritei pela janela.
Ele não ultrapassou e acelerou mais até encostar no meu carro. Senti o tranco no pescoço.
- Ô filho da puta, desgraçado, quer me matar?!
Os faróis piscavam desesperadamente, até que ele me empurrou de novo. A minha decisão foi de parar mesmo temendo pela minha vida. Encostei o carro ao lado do mato alto e olhei pelo retrovisor sentindo minha respiração acelerada pelo pavor. A figura ainda não era conhecida por causa da luz forte do farol até que eu o reconheci quando se aproximou mais. Eric meteu a mão na minha maçaneta da porta a abrindo.
- Você me fez de palhaço, Alice!
Ele segurou meu braço e me tirou do carro. Por um instante me lembrei do meu sonho.
- Eu não fiz você de palhaço, eu mandei mensagem!
Ele me encostou no carro e apoiou as mãos na lataria dos dois lados da minha cabeça com aquele rosto bonito a centímetros do meu. Eu só queria beijar e colocar minhas mãos por baixo daquela camisa dele mas precisava me conter.
- Fez, eu ia embora e você me segurou e me beijou...nenhuma mulher me faz de idiota...
Ele segurou meu rosto apertando as minhas bochechas, entretanto nada machucava. Ele não parecia querer me machucar, apenas se mostrar dominante. Eu entendi, ele estava se sentindo enganado por um dos Oliveira.
- Me perdoa, eu não queria... na verdade eu queria muito você. - Aquilo saiu como um espirro, de repente - Mas eu não posso.
- Por quê? - Ele encostou o corpo no meu e me fez sentir seu perfume delicioso. Aquilo me embriagou como vários copos de um bom destilado.
Eric roçou a barba no meu rosto deixando os lábios a centímetros dos meus, enquanto me olhava nos olhos. Não estava muito claro, a luz do farol alto só mergulhava a nós dois numa penumbra e eu via a silhueta do corpo dele na escuridão.
- Porque ...Porque - Eu lembrei da namorada falecida - Porque eu não quero brincar de me apaixonar e acabar me apaixonando.
- Mas me humilhar pode?
- Eu não te humilhei, Er..
- Cala a boca.
Minha boca foi tomada repentinamente por um beijo ávido e delicioso. Não era mais possível ficar longe dele, então me agarrei em seu pescoço, morrendo de tesão. Aqueles pelos da barba arranhavam meu rosto do jeito que eu me lembrava do dia anterior. Eu sabia. Eu já estava apaixonada por ele, mas em que momento se deu aquilo? Eu não sabia em que segundo aquele caminhão desgovernado e lindo tinha me atropelado, mas estava gostoso sentir aquilo de novo. Eric só se afastou do meu corpo para me empurrar para dentro da pick up e me fazer deitar no banco traseiro. Não havia mais palavras a serem ditas. Nós só queríamos um sexo gostoso e selvagem, do jeitinho que ele era. Gostoso e selvagem. Ao se debruçar sobre meu corpo, Eric puxou meu cropped para baixo com fúria e abocanhou meu seio. Soltei um gemido sôfrego de quem esperava há dias por aquilo. Na verdade, esperava desde a hora em que o vi na porta quando cheguei de São Paulo. Desci minhas mãos por seu peito, enfiando ambas sob a camisa de gola V e apertei seus músculos do peito e barriga, eles eram do jeitinho que eu mais gostava, durinhos. Eric enfiou o rosto entre meus longos cabelos enquanto se enfiava no meio das minhas pernas, fazendo com que eu me abrisse para ele, ainda vestida. Então ele mordeu meu pescoço e deslizou a língua quente sobre a minha pele, o que me fez arrepiar inteira.
- Eric...
- Quer que eu pare?
Ele me olhou, preocupado.
- Te mato.
Ele sorriu e desceu o corpo sobre o meu para abocanhar mais os meus dois seios, já rígidos e arrepiados ao menor toque daquela língua molhada. O filho lindo do Narciso me levava a loucura. Podia sentir já sua ereção sob a calça roçar na minha perna mesmo sobre a minha calça jeans. Acariciando todo o meu corpo, sua mão esquerda chegou ao zíper da calça dele.
- Você faz...
Aquela ordem era muito bem-vinda. Eu amava receber ordens na hora do sexo. Fazia me sentir tão cadelinha, tão serviçal e submissa. Embora na vida eu detestasse obedecer aos homens e lutassse tanto pelos direitos feministas, na hora do sexo eu adorava a sensação de pertencimento, de ser ordenada, de ajoelhar, de engatinhar pedindo mais. Que dualidade! Estava eu ali, tão entregue, como uma mulher submissa que nunca fui abrindo a calça dele para expor seu belo e grande falo. E adorando tudo. Mas o que foi mais delicioso foi quando ele segurou meu pulso esquerdo contra o estofado do banco do carro enquanto me beijava. Masturbei seu pênis grande repetidas vezes até ele dizer que bastava. Os olhos verdes me encaravam, como se ele quisesse impor a visão do seu olhar enquanto eu o masturbava, numa clara posição dominante.
- Eu quero...
- Eu vou te dar... tudo...
Ele murmurou no meu ouvido quando eu já não aguentava mais esperar. Aquela era a brincadeira de gato e rato que eu queria, não de amor e ódio porque nossos pais não se gostavam muito. Eu estava pouco me importando com nossos pais, eu só queria ele. Apenas ele em cima de mim. Eric baixou minha calça assim que já estava com o membro rígido, rosa do lado de fora daquela calça incômoda. Quando me penetrou, fez questão de que eu o olhasse nos olhos. A todo momento queria mostrar sua força, sua pegada, seu poder sobre mim. E eu estava entregue, totalmente. O barulho ritmado do banco do meu carro naqueles socos dentro de mim eram sons deliciosos. Eu segurava na porta para não bater a cabeça e nossas respirações ofegantes embaçavam todos os vidros. Eric gemia baixo, eu gemia alto. Ele era bom no que fazia, era gostoso e experiente. Roçava a pelve no meu clitóris me deixando louca de desejo, me fazendo gemer mais alto sem me importar com o barulho dos grilos lá fora ou com as luzes teimosas dos vaga-lumes procurando acasalar.
- Goza, minha gata, goza para o seu mouro...
Em alguns segundos, eu estava molhando o estofado do carro e quando ele disse aquilo, como se conhecesse meus pensamentos e até meus sonhos eróticos com ele, eu gozei. Senti minha boca abrir mais e os gritinhos quase contidos saíam da minha boca sem esforço. Eu não podia mais olhar para aqueles olhos verdes na penumbra do carro, eu só consegui fechar os olhos e imaginar ele em cima do cavalo, de armadura brilhante, empunhando uma espada, cheio de autoridade e poder. O orgasmo explodia em meu clitóris e pelve na sensação mais gostosa que um ser humano pode experimentar. O cavaleiro mouro ainda esperou que eu terminasse, se regozijando do meu prazer para só então começar a gozar sobre a minha barriga. Nós suávamos, satisfeitos mas não muito. O que poderia vir a seguir? Eu não tinha casa para onde levar aquele homem e muito menos ele. Talvez um motel no centro da cidade? Onde todos nos conheciam? Aquilo deveria ainda ser mantido em segredo por muito tempo.
Nós sorrimos um para o outro. Ele se afastou para me limpar com a jaqueta dele.
- Então como foi que viemos parar aqui? - Ele perguntou rindo.
- Você bateu no meu carro. - Eu me sentei me vestindo.
- Verdade, será que quebrei algo?
- Espero que não... não me importo.
Ele sorriu se sentando e buscando cigarro no bolso. Permaneci o observando acender o cigarro para fumar com a ponta dos dedos polegar e indicador, sem a jaqueta de couro, com os cabelos bagunçados. Era lindo. O nariz afilado fazia um conjunto simétrico com os olhos. A barba bem-feita, sem falhas, descia um pouco até o pescoço. Eu reparava em tudo, sem parar, sem conseguir tirar os olhos de cima dele. Ele também não conseguia ficar muito tempo sem me olhar.
- Então, fazemos com trinta anos o que devíamos ter feito aos dezesseis? - Ele sorriu me olhando.
- Devíamos, eu nunca teria ido embora.
Ele baixou a cabeça tristemente.
- Eu nunca teria conhecido uma pessoa que morreu.
- Alguma namorada? - Fingi que não sabia da história.
- Sim, - Ele me olhou - Você está viva e eu teria sido fel...Deixa para lá.
Ele iria dizer feliz? Ele diria que teria sido feliz comigo... O meu coração até se acelerou. Meu pai não podia estar certo. Muito menos minha mãe. Por que o julgar tanto? O que eu ouvi de uma pequena frase foi o desejo de um homem em querer ter uma família feliz e não de querer brincar com todas as mulheres do mundo. Eu precisava conhecer aquele homem melhor para saber o que realmente pensava.
- Sinto muito.
- Ahrr...Tudo bem, já faz quatro anos, vamos deixar isso para lá.
Ele não queria tocar em feridas antigas e eu achei melhor não insistir.
- Vamos fazer o que agora? Onde vamos?
Ele tragou o cigarro e olhou para fora do carro, talvez pensando.
- Difícil dizer, todos me conhecem na cidade e eu não quero que pensem mal de você, sabe como é esse povo, falam de todos. - Ele me olhava com carinho.
- Sim, falam mas eu não me importo.
- Alice... - pausou antes de se pronunciar e eu achei que não seria uma coisa boa - Eu ganhei o respeito do seu pai e amo aquele cavalo. Nossas famílias demoraram muito para se aceitarem, você deve se lembrar.
- Eu me lembro.
- Não seria bom para nós e para todos que sejamos vistos muito juntos agora.
Baixei a cabeça tremendamente decepcionada, até porque eu enfrentei tudo para ter o que tinha naquela altura da vida; eu tinha conseguido, a duras penas, conquistar minha posição no meio literário, tinha imposto minhas condições em um divórcio doloroso e demorado, eu era uma mulher forte.
- Eric, eu consegui as coisas na minha vida não foi fugindo das situações, mas as enfrentando.
- Você não entende. Tem sua casa em São Paulo onde pode se refugiar se algo der problema aqui. Eu estou conseguindo agora minha independência da soja, tenho planos para comprar um rancho para mim, tudo isso pode não acontecer se voltarmos a uma briga de famílias que ninguém mais quer.
- Eu também não quero, por isso aceitei fazer segredo lá na cachoeira mas eu não sabia que tinha medo dos nossos pais.
- Eu não tenho medo! - Ele alterou a voz - Eu tenho respeito pelos seus pais e pelos meus, eu posso evitar esse desgaste de ficarmos falados e tudo se transformar em um pesadelo.
- Eu ainda acho que você tem medo... - Sentia imensa raiva de alguma forma ser preterida e nem era por outra mulher, mas pelo passado.
- Você não sabe nada a meu respeito. Chega aqui botando banca, querendo impor coisas aos outros e eu não sou homem de fazer o que mulher quer! Em São Paulo pode funcionar fazer isso com os homens, aqui e comigo não, Alice! - Ele desceu do carro e saiu andando em direção ao seu carro.
- Isso mesmo, foge! - Gritei com raiva, vendo mais uma tentativa de ser feliz no amor se esvair das minhas mãos. Eu que tinha voltado para Goiás para não pensar mais em relacionamentos. O que tinha acontecido comigo? - Corre para a saia da sua mamãe!
Eric voltou ao meu carro e com o dedo em riste gritou comigo com bastante energia.
- Me respeite! Eu exijo respeito, Alice!
Cruzei os braços e fiquei olhando para ele com enorme vontade de engolir aquelas palavras, arrependida. Estava desestabilizada e agora sabia mais que nunca que precisava de sossego e não de me envolver em novas relações. Eric voltou ao seu carro, entrou e passou pelo meu, me largando ali sozinha no meio da estrada. Bati a porta com força, com raiva, com pesar. Abracei o volante do carro e comecei a chorar. Sabia que seria difícil recomeçar. Eu estava sofrendo de baixa auto estima depois de tantas traições de Breno e me comportaria como uma menina assustada ao menor sinal de rejeição e foi exatamente o que eu achei ali. Eric não tinha me rejeitado mas estava agindo com cautela. Eu detestava aquilo pois tinha o costume de me jogar nas relações e nos sentimentos de cabeça. Queria tanto recomeçar como pessoa, sem os mesmos erros, sem os mesmos medos e arroubos e o que aconteceu foi justamente o contrário. Em alguns dias eu já estava cobrando um homem a tomar uma posição em relação a mim. Um homem que eu não via há dez anos, um homem que ficava no meio de uma relação de vizinhança problemática há décadas. Assim que me acalmei, respirei fundo e repensei minhas palavras duras. Então enxuguei minhas lágrimas e dei partida no carro para ir embora. Alcancei o celular no bolso da calça e mandei mensagem a ele ainda dirigindo.
Me perdoa, não falei de propósito, só estou magoada da vida que levei. Não quero perder sua amizade. Me desculpa.
Ele não visualizou. Talvez não me respondesse ou nem olhasse o celular por um tempo, mas eu precisava muito pedir desculpas. Cheguei em casa por volta da uma da manhã. Minha mãe me esperava na sala, sentada em uma cadeira de balanço; A cadeira rangia enquanto ela bordava alguma coisa balançando a cadeira para frente e pra trás.
- Boa noite, minha mae. - Eu ia passar por ela sem mais nada a dizer quando ouvi ela chamar.
- Se deitou com ele?
Detive o passo no primeiro degrau da escada e fechei os olhos. Aquela mulher parecia um cão farejador, eu estava horrorizada com aquele controle, afinal eu já tinha vinte e nove anos e era divorciada. Voltei até a sala a olhando. Ela não parou de bordar e não ergueu o olhar para mim.
- Do que fala minha mãe?
- Sabe bem do que falo, Alice...
- Eu não me deitei com ninguém, minha mãe, eu só tomei uma cerveja e voltei.
A cadeira parou de ranger e ela se levantou largando o bordado na cadeira de balanço. Alma se aproximou de mim e sentiu meus cheiros.
- Não criei uma filha mentirosa, Alice.
- Eu não estou mentindo.
Ela examinou meu olhar com seus olhos grandes enrugados da idade e da lida da fazenda.
- Você me garantiu que não ia se misturar com aquela família.
- E não vou, mãe.
- Aliás, eu soube que Anete está doente.
- A mãe do Eric?
- Sim, Anete descobriu uma doença na cabeça.
- O que é minha mãe?
- Uma tal de doença degenerativa, não sei explicar. Seu pai sabe.
- Certo, eu vou tomar um banho e dormir, sua benção.
- Deus te abençoe, filha.
Subi as escadas para meu quarto com a mente fervilhando. Passei a sentir uma profunda pena de Eric, chorei no banho. Se a mãe dele estava com uma doença daquelas, certamente não tinha muito tempo de vida. Se ele sabia, porque não me falou? Porque continuava indo ver o cavalo do meu pai? Eu tinha sido tão dura e inconsequente sem nenhum motivo e teria que reparar aquilo de alguma maneira até porque eu não vislumbrava mais meus dias ali sem ele. Em apenas alguns dias a presença daquele homem já se fazia obrigatória para me dar alguma alegria e me fazer esquecer meus problemas. Ao deitar olhei o celular novamente e vi que Eric tinha visualizado minha mensagem mas não respondeu nada. A situação me deixou ainda mais embaraçada, culpada e triste. Eu iria me afastar dele. A minha estadia na casa de meus pais não tinha o objetivo de arrumar um novo amor e sim de voltar a escrever e me recuperar da tristeza. Mas eu o observaria a distância, cuidando do “patrão”, o fazendo dar voltas no redondel, amansando o belo cavalo chucro. Eu o admiraria a distância, torcendo para que um dia eu pudesse ser perdoada.
Era manhã de sábado e eu estava sendo acordada com os berros do meu pai. O som estava um pouco distante e então levantei meio preguiçosa, ainda sonolenta. Olhei pela janela e vi Eric no estábulo junto a meu pai. Eles pareciam agitados e eu precisava saber o que estava acontecendo. Troquei de roupa e desci as escadas correndo mas parecia que meus pés não corriam o tanto que minha mente ordenava pela urgência de chegar até lá. Venci aquela distância com menos rapidez do que desejava. Ao chegar, vi uma cena horrível no estábulo, ao mesmo tempo em que ouvia os demais cavalos alvoroçados, como se quisessem sair dali. Relinchos altos eram ouvidos. Lá estava o “patrão” deitado no chão em uma poça de sangue, com a garganta cortada. De sua boca saia um barulho sofrido, como querendo respirar. Meu pai chorava enquanto Eric acariciava o pobre animal deslizando a mão direita pelo sedoso pelo marrom do mangalarga. Lágrimas desciam pelo rosto de Eric enquanto sofria pelo cavalo. Meu pai tentou me afastar da cena.
- Saia filha, não veja.
- Pai, eu preciso saber, o que aconteceu?
- Não sabemos, alguém ou algo cortou a garganta do pobre bicho. Mas ele ainda vive. Não podemos fazer nada por ele, chegamos agora e vimos isso.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
- Eric? - Chamei.
Ele se levantou e passou por nós, sem olhar para mim. Estava mergulhado nas próprias sombras. A expressão sisuda demonstrava a seriedade da situação.
- Onde você vai?
- Calma, Alice - Meu pai disse enquanto me segurava.
Eric foi até sua caminhonete e, para meu susto, estava voltando com um revólver em mãos.
- Pai, o que é isso? O que está acontecendo?! - Gritei
Olhei para a casa e vi minha mãe na porta da cozinha observando a tudo. Ela não veio nos consolar, não veio ver o que acontecia. Eric se aproximou de “patrão” e mirou bem em sua cabeça.
- Não!
Eu gritei antes de meu pai tapar meus ouvidos para não ouvir o estampido surdo da bala saindo do tambor da arma. Apertei os olhos tão forte e não sabia se queria abri-los novamente. O cavalo estava morto.
- Porque isso?! - Gritei de novo.
- Ele estava sofrendo, Alice, estava agonizando, Eric acabou com seu sofrimento.
Eric guardou a arma na parte de trás da calça e ao passar por nós, olhou para minha mãe na porta da cozinha, caminhando a passos largos. Eu não entendi nada. Olhei para meu pai e a expressão em seu rosto era de susto e terror. Ele também não entendeu o que tinha acontecido. Eric já estava em sua caminhonete quando perguntou.
- Quer que volte para enterrar?!
- Artur pode fazer isso, Eric, obrigado!
Eric me lançou um olhar de tristeza e eu achei que seria a última vez que veria aqueles olhos verdes. Talvez fosse melhor assim mas eu sabia que ele estava sofrendo. E agora duplamente, pela mãe e pelo cavalo que tanto adorava. Aquilo teria que ter uma resposta e eu iria descobrir quem ou o que fez aquilo com o “patrão”.
Capítulo V O que está oculto Eu estava em choque. Ver o animal daquele jeito, sofrendo, me deu um embrulho no estomago, uma vontade louca de chorar. Entrei em casa e vi minha mãe chorando sobre a pia da cozinha. - Mãe! A senhora está bem? - Estou, estou - Ela enxugava as lágrimas e bateu no meu braço de leve para não ser abraçada e ser deixada em paz. Minha mãe era uma mulher dura daquele jeito. Ela nos abraçava quando queria e não quando a gente queria um abraço. Ou precisava dele. Subi lentamente para meu quarto e me deitei em minha cama para ficar pensativa sobre o que havia acontecido com aquele animal. Não existia nas fazendas de soja nenhum animal que pudesse fazer um ferimento daqueles em um cavalo e ir embora sem deixar rastros. Eu tentava imaginar o que poderia ter sido, uma pessoa? Que pessoa poderia ser tão cruel a ponto de matar um cavalo, não ter sucesso e
Capítulo VI Uma noite de amor Uma mensagem chegou ao meu celular as vinte e uma horas. Era Eric. Estou no estábulo, venha devagar para não assustar os cavalos. Não houve jeito. Assim que consegui sair de casa com todo cuidado com o barulho da porta e cheguei ao estábulo, alguns cavalos fizeram barulho. Eles não me conheciam. Avistei Eric fazendo um aceno para que eu fizesse silêncio, com o dedo na frente dos lábios. Escondi-me da luz que se acendeu no quarto da minha mãe. Ele se aproximou de mim. - A luz acendeu? - Sim. - Precisamos sair logo daqui. - Ele olhava ao redor, procurando uma maneira de passarmos sem ser vistos - Seu pai vai buscar uma espingarda e vai vir ver o que está acontecendo. Vamos logo. Eric segurou a minha mão e começou a me puxar para trás do e
Capítulo VII O que os olhos veem, o coração sente Os dias se passaram e eu não via a hora de ver Eric novamente. Nós nos falávamos pelo celular todos os dias e ele me contava os avanços com as negociações da sua terra. Eu também fiz um enorme progresso com Mirella, organizando uma escola improvisada no terreno dos pais dela. Era um pouco longe da fazenda mas aquele projeto pessoal era algo que vinha do coração e que eu daria o meu melhor para levar adiante. Fui algumas vezes ao centro da cidade comprar livros para organizar uma pequena biblioteca para as crianças. Assim que entrei na livraria meus olhos brilharam de lágrimas ao ver tantos livros dispostos nas estantes sem que aquelas crianças tivessem acesso a eles. Elas não tinham conhecimento e muito menos dinheiro para adquirir um. Machado de Assis, Clarice Lispector, Jorge Amado entre tantos outros da nossa Lite
Capítulo VIII O que os olhos veem, o coração sente Acordei nos braços de Eric, dentro da caminhonete. Senti um pano úmido sobre minha testa e bochecha e sua voz se fazia cada vez mais alta em meus ouvidos. - Alice? Alice? A luz do Sol pela janela do carro me cegava a visão. Pisquei várias vezes e finalmente voltei meu olhar a ele. Lembrei do que me fizera apagar. - Ah você voltou, pensei que ia ter que te levar ao hospital e depois como explicar isso a todo mundo? O horror tomou conta de mim novamente. A hipótese de ser irmã dele e termos transado aquelas duas vezes me horrorizava. Levantei a cabeça e o corpo, muito mal. - Eu... - Tentei me expressar - Não sei o que fazer. Ele bufou e se ajeitou no banco traseiro. - Com relação a que? A n
Capítulo IXO que os olhos não veem, o coração não sentePisquei os olhos algumas vezes. Era tudo verdade. Eu não estava em um pesadelo, ou pelo menos, não dormindo. O corpo estava pesado do sofrimento da mente. Dizem que o estresse cansa mais do que uma faxina e é bem verdade. Eu parecia doente, me sentia exausta. Levantei-me da cama para ir tomar café e ver se meu pai já tinha assassinado Breno. Vesti um vestido floral rosado e prendi os cabelos em um rabo de cavalo, calcei sandálias de dedo. Ao sair do quarto, vi que a porta de Breno já estava aberta. Que pesadelo, onde ele poderia estar? A porta do quarto da minha mãe também estava aberta e para minha surpresa ela arrumava sua cama, ali sozinha. Ela me viu e parou o que fazia
Capítulo X A cavalhada Era domingo de manhã. A Cavalhada ia começar. Eu sabia que a cidade devia estar lotada de turistas de outros Estados e de outras cidades vizinhas por isso optei por não levar os livros até Mirella. A estrada estaria cheia. Os vestidos que minha mãe tinha costurado para minha irmã e eu eram lindos. O meu vestido era rosa antigo estilo vitoriano com rendas no decote e uma saia com três babados de renda. Eu parecia uma senhorita do século passado. Minha mãe não tinha conhecimento para saber como seriam os vestidos daquela época então costurou dois vestidos iguais, mas de cores diferentes, os quais ela tinha pesquisado na internet. Eram lindos mesmo assim. Ana Maria já estava lá com Beatriz, experimentando. - Mãe! A senhora esqueceu que eu estou com esse barrigão! - Ela ria. Nós nos olhamos, as três, rindo. Ana Maria teve q
Capítulo XIA dor da amante trágicaSegunda-feira. Amanheceu o dia sem que eu conseguisse pregar o olho. Estava exausta de passar a noite pensando no que tinha acontecido. Rezava para não estar no meu período fértil. Assim que meus pais saíram para a Cavalhada, depois de me perturbarem muito para ir, decidi levar os livros para a biblioteca no terreno de Mirella. Quando estava chegando, recebi notificação no celular.Você não veio por quê? Alice, eu tentei fugir do que sentimos, mas é impossível, vamos ter que encarar isso como adultos que somos agora.
Capítulo XIIGuerra de coraçõesEu estava preparando minhas malas para ir para Goiânia fazer o teste de DNA. Meu pai entrou no quarto junto com minha mãe. Eles discutiam.- Mas porque ela precisa ir? - Retrucava ele.- Porque ela quer mudar documentos para voltar a viver aqui, Gerson, comprar uma casa em Pirenópolis, perto dos irmãos.- E porque você não pode fazer isso daqui, filha? - Ele parecia muito triste.- Ô meu pai, eu vou voltar em menos de três dias. Toma conta do meu quarto para mim, não deixa a Ana Maria entrar, pegar meus vestidos!Eu desconversava enquanto terminava e olhei para minha mãe, Ela me compreendia muito bem, mas eu senti que estava apreensiva.- Ela nem vem aqui, ela vai ter o bebê e você não vai estar