— Por que ela não fala, mãe?
— Crianças, precisamos conversar.
Quando Alice entrou na nova casa foi bombardeada com perguntas pelo primo mais novo, algumas delas especialmente dolorosas. Sem sentir raiva, tristeza ou qualquer sentimento pelo menino, Alice pegou suas malas e rumou para o novo quarto, arrumando tudo automaticamente e sem prestar atenção nas diferenças daquela pequena casa para o seu lar na capital. Na verdade ela não sentia nada fazia um tempo, apenas um vazio e uma vontade constante de morrer.
Nem os primos nem a tia entendiam o que Alice sentia, ou deixava de sentir, especialmente os primos, que enxergavam apenas outra criança para fazer companhia nas brincadeiras. Depois de tudo, porém, Alice seria incapaz de brincar como antes.
O cérebro dela usou seu mecanismo de defesa, bloqueando qualquer emoção que ela pudesse vir a sentir. Ela não havia chorado a morte dos pais, e se uma pessoa morresse mutilada em sua frente ela não sentiria o mínimo de medo ou pena.
Apesar de ter ações robóticas e não prestar atenção no mundo ao seu redor, presa em um vazio em que as palavras ditas não são ouvidas e os objetos e pessoas não são vistos, ela se pegou pensando constantemente em incêndios, raios e qualquer coisa que a pudessem matar. Os aviões não passavam constantemente pelo céu de Esperanza, mas quando passavam, Alice levava automaticamente as mãos aos ouvidos e fechava os olhos com força. Essa era a única ação que ela fazia além de olhar de forma perdida para pontos fixos e obedecer as ordens preocupadas de tia Rosário, como comer e lavar as mãos.
— Lembram que eu falei sobre o tio Fabián ter ido para o céu?
— Quando ele explodiu no céu?
Tia Rosário suspirou e pegou o pequeno Maurício no colo, apesar de ter apenas 5 anos ele tinha a língua afiada e a imaginação fértil, como o falecido pai.
— A mamãe quis dizer que ele foi morar no céu, como o papai.
Amélia se aproximou da mãe com a cadeira de rodas, ela tinha nove anos e teve tempo de conhecer o pai. Tia Rosário já havia sofrido muitas perdas.
— Entendi.
— A Alice está sofrendo muito, vamos deixar ela quietinha. No tempo dela ela vai melhorar.
— Ela vai ficar aqui em casa pra sempre?
— Sim, querido. Ela vai ficar no quarto da mamãe.
— Nossa casa só tem dois quartos. Vamos ficar os três apertados no mesmo lugar? - Amélia perguntou com preocupação.
— Você se importa de dividir o quarto com ela?
Como as conversas com crianças geralmente são, o assunto mudou em poucos minutos. Se seguiu uma pequena discussão sobre quem ficaria com os quartos. Foi decidido que Alice e Amélia ficariam no quarto maior, e tia Rosário e Maurício no menor. Após algumas orientações da mãe sobre como lidar com a nova moradora, Amélia guiou sua cadeira de rodas até o quarto, onde Alice permanecia sentada na cama olhando para o amontoado de coisas que ela jogou de qualquer jeito sobre a penteadeira.
— Oi...
Alice não respondeu.
— Eu vi quando os homens trouxeram seus móveis. Sua penteadeira é muito bonita, eu sempre quis ter uma.
Amélia se aproximou da penteadeira de Alice, infelizmente sua cadeira de rodas um pouco pequena para o seu tamanho não permitiu que ela se visse direito no espelho. Ela admirou cada desenho na madeira, cada detalhe. Se sentiu muito feliz por ter que dividir o quarto com Alice.
— Eu vou dormir aqui com você, também vou trazer as minhas coisas. Sabia que esse quarto era da mamãe? Eu dormia no outro com o Maurício, mas eu vou ficar feliz em dormir com você agora. Nós vamos poder ser irmãs, pintar tudo de rosa, e não vai ter nenhum brinquedo espalhado pelo chão que atrapalhe minha cadeira. Vamos ser melhores amigas.
Amélia olhou para Alice com um pouco de expectativa, examinou o rosto dela com cuidado, esperando algum vestígio de sorriso após ela ter sugerido que seriam irmãs. Ela não foi capaz de responder, permaneceu imóvel encarando a parede suja do quarto. Os olhos azuis vidrados em um ponto fixo, o cabelo muito preto e liso caindo até a cintura e a pele branca sem qualquer sinal de cor. A roupa amassada e de uma cor muito feia, misturada ao contraste do branco da pele com o negro dos cabelos deram a Alice um ar um tanto fantasmagórico, o que fez Amélia estremecer com a ausência de respostas da garota à sua enxurrada de palavras.
— Depois conversamos sobre isso.
Rapidamente Amélia girou as rodas da cadeira e foi até a mãe, que desempacotava algumas poucas coisas de Alice que ainda faltavam.
— Não deu certo.
Tia Rosário tirou uma mecha de cabelo castanho do rosto da filha e sorriu.
— Obrigada por tentar.
Ela tinha inocentemente pensado que a presença de outra criança e a promessa de uma amizade poderiam animar um pouco Alice, talvez até tirá-la do seu estupor. Mas essa tentativa não provocou nenhum estimulo da menina.
— Eu tenho medo dela.
Uma semana após achegada de Alice havia se passado, as crianças já tinham se acostumado com a presença dela, mas tia Rosário estava perturbada com o fato dela ainda não ter falado nada.Todas as suas tentativas de conversa ou de fazer Alice sair de casa falhavam. Amélia tinha perdido um pouco do medo que sentia pela menina, mas achava desconfortável o fato de ter que dividir o quarto com alguém que mal respirava.— Vamos levar a Alice para conhecer a cidade hoje. Só nos duas.— Ela não vai querer ir.— Falei com um médico sobre ela e ele disse que ela pode estar passando por estresse pós traumático ou alguma
Dois dias se passaram desde que Alice falou pela primeira vez. De vez em quando ela dizia uma coisa ou outra, o que já era um grande avanço. Mas ainda passava a maior parte do tempo calada.Amélia tinha parado de se empenhar muito em fazer amizade com ela, visto que tia Rosário estava satisfeita ao ouvir Alice perguntar sobre o jantar. O que incomodava tia Rosário naquele momento era o fato das aulas estarem prestes a começar. Ela tinha protegido bem a sobrinha das fofocas da cidade até o momento, mas na escola seria muito mais difícil.A primeira pessoa com quem Alice tinha falado após todo o trauma que passou fora Amélia, por isso tia Rosário ainda confiava que algo de bom poderia sair da amizade das duas. Ela era professora a mais de quinze anos e sabia que
Tia Rosário levantou da cama e saiu rapidamente quando Amélia disse que Alice havia sumido. Naturalmente, pensou que ela tinha decidido fugir e rumou para a saída da rua, sem se importar com o lado do cemitério.Alice tinha acabado de pular o muro e voltava tranquilamente para casa, felizmente Amélia a viu a tempo de gritar pela mãe, que correu e abraçou a sobrinha.- Onde você estava?Alice sentiu pelo tom de repreensão da tia que não devia contar a verdade, apesar de não ver problema em ter ido dar um pouco de atenção para aquelas pessoas tão abandonadas.- Estava brincando.- Brincando
Compartilhando a raiva que sentiam por Marco, Alice e Amélia se tornaram mais próximas. Como tia Rosário suspeitava, Alice confiava mais na prima para conversar do que em qualquer adulto. O único assunto proibido entre as duas eram os pais de Alice, mas um dia essa conversa aconteceu.— Você sente falta deles; dos seus pais?— Sim.— Eu também sinto falta do meu pai.— Como ele morreu?— Um acidente no trabalho. Ele era pedreiro.— Meus pais trabalhavam em uma agência de turismo.&m
Todas as crianças estavam ansiosas para o primeiro dia de aula nas escolinhas de Esperanza. Todas exceto Alice, que não frequentaria a escola naquela ano.Tia Rosário lhe deu mil recomendações, mandou ela ficar em casa lendo e fazendo qualquer coisa até ela e os filhos chegarem na hora do almoço.— A escola não é tão legal assim, queria eu ficar em casa — Mauricio a encorajou quando viu seu rostinho triste.— Tudo bem, é só por algumas horas e ano que vem você vai com a gente — Amélia falou.Alice permaneceu calada enquanto os três saiam, ouviu bem a conversa de tia Rosário e Amélia por trá
Quando tia Rosário chegou mais tarde a primeira coisa que encontrou foi dona Ana de braços cruzados e batendo o pé no chão.— Aconteceu alguma coisa?— Sabe quem eu vi saindo do cemitério?— Alice? Ela foi pra lá?— Foi, mas já voltou. Eu fiquei aqui vigiando a porta como a boa amiga que sou e...Tia Rosário não esperou que ela terminasse de falar e entrou em casa, Alice estava sentada em uma cadeira na sala de estar lendo um livro infantil de Maurício como se nada tivesse acontecido.— Você saiu de casa?
Afinal, dona Ana tinha sido útil. Ela vigiara todos os dias durante uma semana se Alice saia de casa para suas travessuras.Marco, que parecia ter se tornado um residente constante ia satisfeito falar para tia Rosário que dona Ana não tinha visto nada de suspeito aquela manhã, em troca ganhava alguma moeda.Alice sabia desse esquema, Amélia tinha contado a ela. Para não magoar a tia e nem levar outra bronca se limitava a ficar em casa fazendo qualquer coisa para passar o tempo, mas seu coração não tinha se conformado com o fato de não ter descoberto o nome daquele morto.Uma noite chegou aos seus ouvidos que dona Ana estava internada após ter sofrido um acidente na cozinha. Comemorou intimamente esse acontecim
TOC é um transtorno psiquiátrico de ansiedade que tem como principal característica a presença de crises recorrentes de obsessões e compulsões.Pacientes com este transtorno sofrem com imagens e pensamentos que os invadem insistentemente e, muitas vezes, sem que consigacontrolá-los oubloqueá-los. Para essas pessoas, a única forma de controlar esses pensamentos e aliviar o que eles provocam é por meio de rituais repetitivos, que podem muitas vezes ocupar o dia inteiro e trazer consequências negativas na vida social.Inês ValentinaParrilla- 1891Aos domingos acordamos cedo, as boas fam&iacu