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Capítulo 03 - Rosas de papel

Dois dias se passaram desde que Alice falou pela primeira vez. De vez em quando ela dizia uma coisa ou outra, o que já era um grande avanço. Mas ainda passava a maior parte do tempo calada.

Amélia tinha parado de se empenhar muito em fazer amizade com ela, visto que tia Rosário estava satisfeita ao ouvir Alice perguntar sobre o jantar. O que incomodava tia Rosário naquele momento era o fato das aulas estarem prestes a começar. Ela tinha protegido bem a sobrinha das fofocas da cidade até o momento, mas na escola seria muito mais difícil.

A primeira pessoa com quem Alice tinha falado após todo o trauma que passou fora Amélia, por isso tia Rosário ainda confiava que algo de bom poderia sair da amizade das duas. Ela era professora a mais de quinze anos e sabia que por natureza, as crianças confiavam mais em outras crianças do que em adultos para contar segredos ou até desabafar.

Amélia entrou relutantemente no quarto, que apesar de também ser seu era habitado somente por Alice a maior parte do dia. Alice se ocupava em enrolar papeis de jornal e fazer tubinhos esticados, mas Amélia não se preocupou em perguntar o significado daquilo.

— O que acha da escola?

— Eu não gosto.

De vez em quando ela respondia quando falavam com ela, principalmente se fosse a prima.

— Daqui a poucos dias as aulas vão voltar. Eu, o Mauricio e a mamãe vamos pra escola. Mas a minha mãe não estuda lá, ela é professora.

Alice continuou brincando distraidamente com seus papeis.

— Quer ir também?

— Não sei.

Sem mais insistências da parte de Amélia a conversa acabou. Tia Rosário não tinha esperado um bom resultado. Compreendendo o trauma por qual Alice tinha passado decidiu que ela só voltaria para a escola no próximo ano e se comprometeu em ensiná-la pelo menos um pouco de matemática e ciências.

A manhã toda se passou, quando a tarde caiu e Amélia se cansou de girar a cadeira de rodas pela sala estreita pensando no inferno que seriam os retornos das aulas de matemática, resolveu dar uma nova chance a Alice.

As crianças tem essa insistência, elas nunca desistem de verdade de alguém para brincar.

Quando entrou no quarto ele estava vazio. Procurou a prima por toda a casa, mas ela não estava lá.

O que Alice estava fazendo eram rosas de papel para os mortos, colocou todas em uma sacola e saiu de casa rumo ao cemitério. Ela não se preocupou em fazer aquilo escondida, mas a sorte tinha conspirado a seu favor o tempo todo. Ninguém ficou curioso sobre o que ela estava fazendo com os jornais; no almoço apenas ouviu Mauricio e tia Rosário falarem sobre a escola para depois tirarem uma soneca. Passou pela sala para ir a rua exatamente no momento em que Amélia tinha ido bisbilhotar o sono da mãe.

Os poucos passantes que viam aquela criança indo em direção ao famigerado "cemitério dos loucos" só prestavam atenção no fato dela ainda estar de pijamas. Quando chegou em frente ao portão sentiu um estremecimento tomar conta do seu corpo, a ideia de que seus pais estavam enterrados ali passou novamente por sua mente mas estando muito preocupada com a visão do cadeado enferrujado atrapalhando sua passagem, esqueceu.

Notou que o muro que cercava o cemitério era baixo, com alguns pulos ela seria capaz de passar para o outro lado, seu problema agora era apenas a sacola que estava carregando.

Pensou um pouco, tempo suficiente para outra criança ver ao longe aquela figura perto do portão do cemitério e sair correndo. De repente, teve uma ideia. Incomodada com o cabelo longo o tempo todo caindo no seu rosto tinha feito duas trancinhas pela manhã. Trancinhas que sua nova família também não tinham notado. Tirou a liga que prendia a ponta de uma das tranças e amarrou a boca da sacola com as rosas de papel para que não voassem.

Num instante, a sacola foi passada por cima do muro e caiu do outro lado. Restava agora ela passar.

Alice estudou a altura do muro por algum tempo, um lado do cabelo trançado e o outro solto. Se esticou o máximo possível e com algum esforço conseguiu passar uma das pernas pelo muro. Em um pulo estava do outro lado. Apanhou rapidamente a sacola do chão e examinou o local.

O cemitério tinha muitos túmulos, os mais antigos ficavam mais ao fundo e estavam mais sujos que os da frente, que com um pouco de esforço podia se ver uma data e um nome. Aquele cemitério havia sido fundado há apenas 70 anos, quando um surto de varíola levou a vida da metade dos internos do manicômio. Não querendo superlotar o cemitério da cidade, e já tendo que lidar com vários preconceitos em relação aquelas pessoas, que naquela época eram tratadas muito piores, o governo os enterrou em um terreno baldio qualquer. Depois de um tempo, e sem nenhuma cerimônia, apenas cercaram o lugar.

Alice andou por algum tempo pelo cemitério, de vez em quando lia o nome de algum morto em voz alta. Os pés afundando na terra lamacenta, sem perceber pedaços de ossos aqui e ali que a areia cuspia para fora, já que muitas daquelas pessoas não tiveram direito nem a um caixão.

O muro dos fundos do cemitério era muito mais alto do que o da frente, provavelmente porque dava para uma rua mais importante. Sem perceber, Alice pisava em alguma coisa podre que vermes passeavam devorando lentamente. Os vermes rastejaram pelo seu pé e tornozelo direito sem que ela notasse, encarava o muro com uma espécie de curiosidade, ouvindo atentamente o som que vinha lá de trás. Do outro lado do muro, um grupo de bêbados cantava uma música de amor enquanto riam e faziam piadas sobre suas mulheres.

Os homens se afastaram e com indiferença Alice olhou para a perna.

— O que são essas minhoquinhas?

Passou a mão pelo tornozelo e a limpou na camisa do pijama, abriu a sacola e começou a depositar suas rosas de papel perto de cada lápide.

— Celeste, Juan, esse não tem nome... Mia...

As rosas que Alice fez não foram suficientes para todos, o que causou nela uma profunda tristeza.

— Eu prometo que vou fazer mais — Falou com sincera preocupação, como se estivesse justificando sua suposta maldade para pessoas que realmente pudessem ouvir.

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