Dois dias se passaram desde que Alice falou pela primeira vez. De vez em quando ela dizia uma coisa ou outra, o que já era um grande avanço. Mas ainda passava a maior parte do tempo calada.
Amélia tinha parado de se empenhar muito em fazer amizade com ela, visto que tia Rosário estava satisfeita ao ouvir Alice perguntar sobre o jantar. O que incomodava tia Rosário naquele momento era o fato das aulas estarem prestes a começar. Ela tinha protegido bem a sobrinha das fofocas da cidade até o momento, mas na escola seria muito mais difícil.
A primeira pessoa com quem Alice tinha falado após todo o trauma que passou fora Amélia, por isso tia Rosário ainda confiava que algo de bom poderia sair da amizade das duas. Ela era professora a mais de quinze anos e sabia que por natureza, as crianças confiavam mais em outras crianças do que em adultos para contar segredos ou até desabafar.
Amélia entrou relutantemente no quarto, que apesar de também ser seu era habitado somente por Alice a maior parte do dia. Alice se ocupava em enrolar papeis de jornal e fazer tubinhos esticados, mas Amélia não se preocupou em perguntar o significado daquilo.
— O que acha da escola?
— Eu não gosto.
De vez em quando ela respondia quando falavam com ela, principalmente se fosse a prima.
— Daqui a poucos dias as aulas vão voltar. Eu, o Mauricio e a mamãe vamos pra escola. Mas a minha mãe não estuda lá, ela é professora.
Alice continuou brincando distraidamente com seus papeis.
— Quer ir também?
— Não sei.
Sem mais insistências da parte de Amélia a conversa acabou. Tia Rosário não tinha esperado um bom resultado. Compreendendo o trauma por qual Alice tinha passado decidiu que ela só voltaria para a escola no próximo ano e se comprometeu em ensiná-la pelo menos um pouco de matemática e ciências.
A manhã toda se passou, quando a tarde caiu e Amélia se cansou de girar a cadeira de rodas pela sala estreita pensando no inferno que seriam os retornos das aulas de matemática, resolveu dar uma nova chance a Alice.
As crianças tem essa insistência, elas nunca desistem de verdade de alguém para brincar.
Quando entrou no quarto ele estava vazio. Procurou a prima por toda a casa, mas ela não estava lá.
O que Alice estava fazendo eram rosas de papel para os mortos, colocou todas em uma sacola e saiu de casa rumo ao cemitério. Ela não se preocupou em fazer aquilo escondida, mas a sorte tinha conspirado a seu favor o tempo todo. Ninguém ficou curioso sobre o que ela estava fazendo com os jornais; no almoço apenas ouviu Mauricio e tia Rosário falarem sobre a escola para depois tirarem uma soneca. Passou pela sala para ir a rua exatamente no momento em que Amélia tinha ido bisbilhotar o sono da mãe.
Os poucos passantes que viam aquela criança indo em direção ao famigerado "cemitério dos loucos" só prestavam atenção no fato dela ainda estar de pijamas. Quando chegou em frente ao portão sentiu um estremecimento tomar conta do seu corpo, a ideia de que seus pais estavam enterrados ali passou novamente por sua mente mas estando muito preocupada com a visão do cadeado enferrujado atrapalhando sua passagem, esqueceu.
Notou que o muro que cercava o cemitério era baixo, com alguns pulos ela seria capaz de passar para o outro lado, seu problema agora era apenas a sacola que estava carregando.
Pensou um pouco, tempo suficiente para outra criança ver ao longe aquela figura perto do portão do cemitério e sair correndo. De repente, teve uma ideia. Incomodada com o cabelo longo o tempo todo caindo no seu rosto tinha feito duas trancinhas pela manhã. Trancinhas que sua nova família também não tinham notado. Tirou a liga que prendia a ponta de uma das tranças e amarrou a boca da sacola com as rosas de papel para que não voassem.
Num instante, a sacola foi passada por cima do muro e caiu do outro lado. Restava agora ela passar.
Alice estudou a altura do muro por algum tempo, um lado do cabelo trançado e o outro solto. Se esticou o máximo possível e com algum esforço conseguiu passar uma das pernas pelo muro. Em um pulo estava do outro lado. Apanhou rapidamente a sacola do chão e examinou o local.
O cemitério tinha muitos túmulos, os mais antigos ficavam mais ao fundo e estavam mais sujos que os da frente, que com um pouco de esforço podia se ver uma data e um nome. Aquele cemitério havia sido fundado há apenas 70 anos, quando um surto de varíola levou a vida da metade dos internos do manicômio. Não querendo superlotar o cemitério da cidade, e já tendo que lidar com vários preconceitos em relação aquelas pessoas, que naquela época eram tratadas muito piores, o governo os enterrou em um terreno baldio qualquer. Depois de um tempo, e sem nenhuma cerimônia, apenas cercaram o lugar.
Alice andou por algum tempo pelo cemitério, de vez em quando lia o nome de algum morto em voz alta. Os pés afundando na terra lamacenta, sem perceber pedaços de ossos aqui e ali que a areia cuspia para fora, já que muitas daquelas pessoas não tiveram direito nem a um caixão.
O muro dos fundos do cemitério era muito mais alto do que o da frente, provavelmente porque dava para uma rua mais importante. Sem perceber, Alice pisava em alguma coisa podre que vermes passeavam devorando lentamente. Os vermes rastejaram pelo seu pé e tornozelo direito sem que ela notasse, encarava o muro com uma espécie de curiosidade, ouvindo atentamente o som que vinha lá de trás. Do outro lado do muro, um grupo de bêbados cantava uma música de amor enquanto riam e faziam piadas sobre suas mulheres.
Os homens se afastaram e com indiferença Alice olhou para a perna.
— O que são essas minhoquinhas?
Passou a mão pelo tornozelo e a limpou na camisa do pijama, abriu a sacola e começou a depositar suas rosas de papel perto de cada lápide.
— Celeste, Juan, esse não tem nome... Mia...
As rosas que Alice fez não foram suficientes para todos, o que causou nela uma profunda tristeza.
— Eu prometo que vou fazer mais — Falou com sincera preocupação, como se estivesse justificando sua suposta maldade para pessoas que realmente pudessem ouvir.
Tia Rosário levantou da cama e saiu rapidamente quando Amélia disse que Alice havia sumido. Naturalmente, pensou que ela tinha decidido fugir e rumou para a saída da rua, sem se importar com o lado do cemitério.Alice tinha acabado de pular o muro e voltava tranquilamente para casa, felizmente Amélia a viu a tempo de gritar pela mãe, que correu e abraçou a sobrinha.- Onde você estava?Alice sentiu pelo tom de repreensão da tia que não devia contar a verdade, apesar de não ver problema em ter ido dar um pouco de atenção para aquelas pessoas tão abandonadas.- Estava brincando.- Brincando
Compartilhando a raiva que sentiam por Marco, Alice e Amélia se tornaram mais próximas. Como tia Rosário suspeitava, Alice confiava mais na prima para conversar do que em qualquer adulto. O único assunto proibido entre as duas eram os pais de Alice, mas um dia essa conversa aconteceu.— Você sente falta deles; dos seus pais?— Sim.— Eu também sinto falta do meu pai.— Como ele morreu?— Um acidente no trabalho. Ele era pedreiro.— Meus pais trabalhavam em uma agência de turismo.&m
Todas as crianças estavam ansiosas para o primeiro dia de aula nas escolinhas de Esperanza. Todas exceto Alice, que não frequentaria a escola naquela ano.Tia Rosário lhe deu mil recomendações, mandou ela ficar em casa lendo e fazendo qualquer coisa até ela e os filhos chegarem na hora do almoço.— A escola não é tão legal assim, queria eu ficar em casa — Mauricio a encorajou quando viu seu rostinho triste.— Tudo bem, é só por algumas horas e ano que vem você vai com a gente — Amélia falou.Alice permaneceu calada enquanto os três saiam, ouviu bem a conversa de tia Rosário e Amélia por trá
Quando tia Rosário chegou mais tarde a primeira coisa que encontrou foi dona Ana de braços cruzados e batendo o pé no chão.— Aconteceu alguma coisa?— Sabe quem eu vi saindo do cemitério?— Alice? Ela foi pra lá?— Foi, mas já voltou. Eu fiquei aqui vigiando a porta como a boa amiga que sou e...Tia Rosário não esperou que ela terminasse de falar e entrou em casa, Alice estava sentada em uma cadeira na sala de estar lendo um livro infantil de Maurício como se nada tivesse acontecido.— Você saiu de casa?
Afinal, dona Ana tinha sido útil. Ela vigiara todos os dias durante uma semana se Alice saia de casa para suas travessuras.Marco, que parecia ter se tornado um residente constante ia satisfeito falar para tia Rosário que dona Ana não tinha visto nada de suspeito aquela manhã, em troca ganhava alguma moeda.Alice sabia desse esquema, Amélia tinha contado a ela. Para não magoar a tia e nem levar outra bronca se limitava a ficar em casa fazendo qualquer coisa para passar o tempo, mas seu coração não tinha se conformado com o fato de não ter descoberto o nome daquele morto.Uma noite chegou aos seus ouvidos que dona Ana estava internada após ter sofrido um acidente na cozinha. Comemorou intimamente esse acontecim
TOC é um transtorno psiquiátrico de ansiedade que tem como principal característica a presença de crises recorrentes de obsessões e compulsões.Pacientes com este transtorno sofrem com imagens e pensamentos que os invadem insistentemente e, muitas vezes, sem que consigacontrolá-los oubloqueá-los. Para essas pessoas, a única forma de controlar esses pensamentos e aliviar o que eles provocam é por meio de rituais repetitivos, que podem muitas vezes ocupar o dia inteiro e trazer consequências negativas na vida social.Inês ValentinaParrilla- 1891Aos domingos acordamos cedo, as boas fam&iacu
Alice escutou toda a história de Inês. Nessa altura a chuva já tinha aumentando muito e seu corpo estava congelando. Não conseguia mais sentir a ponta dos dedos, mas isso não a fazia ter a mínima vontade de sair dali.— Eu sinto muito pelo que aconteceu com você. Olha, seu pai e seu irmão foram muito idiotas.Inês tinha parado de falar.— Na minha família também tínhamos tradições. Eu só podia abrir os presentes de natal depois que meus pais acordassem.Por um longo tempo o silêncio reinou, nenhuma palavra de Inês passou pelos ouvidos de Alice. Ela concluiu que tinha sido muito triste para a menina revive
De fato, Amélia foi a única criança a apresentar um trabalho sobre o cemitério dos loucos. O problema é que as fontes históricas de suas informações não era confiáveis ou nem sequer existiam, isso sem mencionar o fato de que as crianças que falaram sobre a praça e sobre a igreja ficaram assustadas com aquela história de varíola.Na volta pra casa, Amélia e a mãe tiveram uma conversa.— Não fique triste, não se pode tirar notas altas em tudo.— Acontece que as apresentações são as únicas coisas em que vou bem!— Você fez o trabalho com esse tema por