Uma semana após a chegada de Alice havia se passado, as crianças já tinham se acostumado com a presença dela, mas tia Rosário estava perturbada com o fato dela ainda não ter falado nada.
Todas as suas tentativas de conversa ou de fazer Alice sair de casa falhavam. Amélia tinha perdido um pouco do medo que sentia pela menina, mas achava desconfortável o fato de ter que dividir o quarto com alguém que mal respirava.
— Vamos levar a Alice para conhecer a cidade hoje. Só nos duas.
— Ela não vai querer ir.
— Falei com um médico sobre ela e ele disse que ela pode estar passando por estresse pós traumático ou alguma coisa assim...
— O que é isso?
— Apenas temos que tentar distrair ela um pouco, eu não tenho dinheiro para pagar um psicólogo.
O pequeno salário que tia Rosário recebia como professora do primário mal era suficiente para comprar o que comer e o que vestir. Ela treinou várias vezes o que ia dizer para convencer Alice a sair. Alice nunca tinha dito não as suas tentativas fracassadas, mas também nunca tinha feito o favor de ao menos levantar da cama. O sentimento ruim que tia Rosário sentia por ter perdido o irmão se multiplicava quando via o sofrimento refletido na menina, e se sentia impotente por não ser capaz de fazer nada para ajudar.
Determinada a fazer pelo menos ela sair de casa para sentir o vento no rosto, tia Rosário deixou Maurício com a vizinha e ajudou Alice a vestir seu melhor vestido.
— Rosa não combina com ela — Amélia falou, enquanto se esticava o máximo na cadeira de rodas para se olhar na penteadeira que agora praticamente era sua.
— Nós estamos nos arrumando assim porque vamos dar uma volta. Você vai conhecer os lugares legais da cidade.
Sem obter resposta, tia Rosário colocou a mão da menina sobre seu braço e saiu acompanhada por Amélia.
Alice não teve nenhuma reação e nem tentou se soltar, apenas deixou que tia Rosário a guia-se para fora, os raios de sol bateram no seu rosto pela primeira vez em dias e ela apertou os olhos, incomodada com a luz. O resto do passeio se mostrou sem mais reações da parte de Alice. Amélia a tia Rosário conversavam sobre a escola, o parque ou qualquer outro assunto que pudesse chamar sua atenção. De vez em quando algum conhecido as viam e perguntavam sobre a menina, mas tia Rosário sempre dava um jeito de não citar os pais. Elas ainda não tinha conversado sobre nada, e isso incluía a morte de Fabián e Rossana.
Parque, padaria, praça, igreja, as opções foram se esgotando. Tia Rosário resolveu voltar.
— Me deixe mostrar a rua pra ela — Amélia sugeriu. — Posso falar um pouco sobre os nossos vizinhos.
Cansada e sem muitas opções, tia Rosário parou a porta de casa e observou a duas "passearem" pela rua.
Amélia fazia um grande esforço para girar a roda da cadeira com apenas uma das mãos e segurar o braço de Alice com a outra. Na esperança de ajudar a mãe e conquistar a amizade de Alice, ela falava sobre cada vizinho com entusiasmo quando passavam pelas casas. Alice permanecia de cabeça baixa encarando o chão. Ela tinha ficado quase o tempo todo assim.
— Quem mora naquela casa é a dona Ana, ela é brasileira. Faz uns docinhos ótimos em época de festa. Agora vamos voltar, tá?
Amélia sentiu um calafrio e logo sugeriu a volta. As crianças haviam chegado no finalzinho da rua após a casa de dona Ana. Porém, Alice ficara de repente difícil de conduzir, se tornou impossível para Amélia virar a cadeira e segurar seu braço ao mesmo tempo, visto que Alice não a acompanhava.
— O que foi?
Alice encarava os portões pretos e enferrujados do cemitério do hospital de Esperanza para pacientes com doenças mentais. A presença da morte a tão poucos metros de distância chamou sua atenção. Pensou nos pais e foi incapaz de dar mais um passo.
— É o cemitério de loucos, vamos embora.
Mas ela não se movia. Seus olhos examinavam os túmulos atrás do portão e do muro baixo. Imaginou que seus pais podiam estar ali, ou em um lugar como aquele. Eles não podiam ter simplesmente sumido ou virado pó, pessoas não sumiam daquele jeito. Eles podiam estar bem ali, ou pelo menos seus corpos. Mas se Alice visse o rosto da sua mãe por um última vez ela se sentiria feliz, mesmo que para isso tivesse que cavar naquela lugar com as próprias mãos.
— ALICE PARE! — Amélia gritou, já assustada.
— Meus pais estão lá.
Amélia arregalou os olhos e sentiu todo o ar dos seus pulmões sumirem. Alice tinha falado, tinha falado com ela. Seus lábios haviam se movido e formado palavras. Estava tão impactada por ter ouvido a voz fina e infantil da prima pela primeira vez que nem prestou atenção na besteira que ela havia dito.
— O quê?
— Meus pais estão lá.
— Não, não estão. Seus pais... Seus pais não estão em lugar algum. — Se arrependeu por ter dito isso, pensou que faria Alice chorar.
Tia Rosário, vendo de longe que as meninas pareciam conversar, se alegrou. Lugares como aquele despertavam a curiosidade das crianças. Alice provavelmente estaria fazendo perguntas sobre o cemitério a Amélia. Andou até elas devagar, dando um tempo para que conversassem mais. Amélia estava tão estupefata que nem percebeu a mãe se aproximando, mas antes que Alice pudesse dar o primeiro passo em direção ao cemitério tia Rosário segurou seu ombro.
— Do que estão falando?
— Ela falou, mãe. Ela acha que os pais dela estão lá.
Alice encarou tia rosário pela primeira vez.
— Eu me lembro. Lembro do enterro do seu marido, você estava grávida do pequeno e tinha menos rugas.
Para Alice aquela era a primeira vez em cinco anos que realmente via sua tia. Na última semana tudo que passava diante dos seus olhos era a escuridão.
— Isso já faz muito tempo, mas que bom que falou comigo. Vamos pra casa?
— Que lugar é aquele?
— É um cemitério.
— O seu marido não foi enterrado nesse cemitério, o lugar que ele estar tinha rosas, velas e era bonito. Esse lugar não tem rosas e é feio. Se eu soubesse onde os meus pais estão enterrados eu iria todos os dias deixar rosas e velas para eles.
Tia Rosário prestou atenção em cada palavra de Alice, estudando tudo que ela dizia e pensando em uma boa resposta, assustada por ela ter citado os pais. Amélia apenas estranhava o som de sua voz e tentava se acostumar a ela.
Sem saber o que responder e não ousando explicar a Alice que os pais não estavam enterrados em nenhum lugar, tia Rosário se limitou a explicar o motivo do cemitério ser feio.
— Esse cemitério é para os pacientes do manicômio, por isso não é tão organizado e bonito quanto os outros.
— E o que isso tem a ver?
— A maioria dos loucos são indigentes abandonados e não tem famílias que se importem com eles — Amélia se precipitou em responder, querendo um pouco da atenção de Alice.
— Amélia! — tia Rosário a repreendeu.
Alice olhou o cemitério mais uma vez, com pena daqueles túmulos abandonados e pessoas esquecidas. Almas solitárias abandonadas durante a vida e agora após a morte. Para Alice um cemitério de loucos merecia tanta atenção quando um cemitério de pessoas normais.
— Que pena — Disse unicamente e voltou a se calar. Não falou mais nada durante aquele dia.
Dois dias se passaram desde que Alice falou pela primeira vez. De vez em quando ela dizia uma coisa ou outra, o que já era um grande avanço. Mas ainda passava a maior parte do tempo calada.Amélia tinha parado de se empenhar muito em fazer amizade com ela, visto que tia Rosário estava satisfeita ao ouvir Alice perguntar sobre o jantar. O que incomodava tia Rosário naquele momento era o fato das aulas estarem prestes a começar. Ela tinha protegido bem a sobrinha das fofocas da cidade até o momento, mas na escola seria muito mais difícil.A primeira pessoa com quem Alice tinha falado após todo o trauma que passou fora Amélia, por isso tia Rosário ainda confiava que algo de bom poderia sair da amizade das duas. Ela era professora a mais de quinze anos e sabia que
Tia Rosário levantou da cama e saiu rapidamente quando Amélia disse que Alice havia sumido. Naturalmente, pensou que ela tinha decidido fugir e rumou para a saída da rua, sem se importar com o lado do cemitério.Alice tinha acabado de pular o muro e voltava tranquilamente para casa, felizmente Amélia a viu a tempo de gritar pela mãe, que correu e abraçou a sobrinha.- Onde você estava?Alice sentiu pelo tom de repreensão da tia que não devia contar a verdade, apesar de não ver problema em ter ido dar um pouco de atenção para aquelas pessoas tão abandonadas.- Estava brincando.- Brincando
Compartilhando a raiva que sentiam por Marco, Alice e Amélia se tornaram mais próximas. Como tia Rosário suspeitava, Alice confiava mais na prima para conversar do que em qualquer adulto. O único assunto proibido entre as duas eram os pais de Alice, mas um dia essa conversa aconteceu.— Você sente falta deles; dos seus pais?— Sim.— Eu também sinto falta do meu pai.— Como ele morreu?— Um acidente no trabalho. Ele era pedreiro.— Meus pais trabalhavam em uma agência de turismo.&m
Todas as crianças estavam ansiosas para o primeiro dia de aula nas escolinhas de Esperanza. Todas exceto Alice, que não frequentaria a escola naquela ano.Tia Rosário lhe deu mil recomendações, mandou ela ficar em casa lendo e fazendo qualquer coisa até ela e os filhos chegarem na hora do almoço.— A escola não é tão legal assim, queria eu ficar em casa — Mauricio a encorajou quando viu seu rostinho triste.— Tudo bem, é só por algumas horas e ano que vem você vai com a gente — Amélia falou.Alice permaneceu calada enquanto os três saiam, ouviu bem a conversa de tia Rosário e Amélia por trá
Quando tia Rosário chegou mais tarde a primeira coisa que encontrou foi dona Ana de braços cruzados e batendo o pé no chão.— Aconteceu alguma coisa?— Sabe quem eu vi saindo do cemitério?— Alice? Ela foi pra lá?— Foi, mas já voltou. Eu fiquei aqui vigiando a porta como a boa amiga que sou e...Tia Rosário não esperou que ela terminasse de falar e entrou em casa, Alice estava sentada em uma cadeira na sala de estar lendo um livro infantil de Maurício como se nada tivesse acontecido.— Você saiu de casa?
Afinal, dona Ana tinha sido útil. Ela vigiara todos os dias durante uma semana se Alice saia de casa para suas travessuras.Marco, que parecia ter se tornado um residente constante ia satisfeito falar para tia Rosário que dona Ana não tinha visto nada de suspeito aquela manhã, em troca ganhava alguma moeda.Alice sabia desse esquema, Amélia tinha contado a ela. Para não magoar a tia e nem levar outra bronca se limitava a ficar em casa fazendo qualquer coisa para passar o tempo, mas seu coração não tinha se conformado com o fato de não ter descoberto o nome daquele morto.Uma noite chegou aos seus ouvidos que dona Ana estava internada após ter sofrido um acidente na cozinha. Comemorou intimamente esse acontecim
TOC é um transtorno psiquiátrico de ansiedade que tem como principal característica a presença de crises recorrentes de obsessões e compulsões.Pacientes com este transtorno sofrem com imagens e pensamentos que os invadem insistentemente e, muitas vezes, sem que consigacontrolá-los oubloqueá-los. Para essas pessoas, a única forma de controlar esses pensamentos e aliviar o que eles provocam é por meio de rituais repetitivos, que podem muitas vezes ocupar o dia inteiro e trazer consequências negativas na vida social.Inês ValentinaParrilla- 1891Aos domingos acordamos cedo, as boas fam&iacu
Alice escutou toda a história de Inês. Nessa altura a chuva já tinha aumentando muito e seu corpo estava congelando. Não conseguia mais sentir a ponta dos dedos, mas isso não a fazia ter a mínima vontade de sair dali.— Eu sinto muito pelo que aconteceu com você. Olha, seu pai e seu irmão foram muito idiotas.Inês tinha parado de falar.— Na minha família também tínhamos tradições. Eu só podia abrir os presentes de natal depois que meus pais acordassem.Por um longo tempo o silêncio reinou, nenhuma palavra de Inês passou pelos ouvidos de Alice. Ela concluiu que tinha sido muito triste para a menina revive