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Capítulo 04 - Não tenha medo dos mortos

Tia Rosário levantou da cama e saiu rapidamente quando Amélia disse que Alice havia sumido. Naturalmente, pensou que ela tinha decidido fugir e rumou para a saída da rua, sem se importar com o lado do cemitério.

Alice tinha acabado de pular o muro e voltava tranquilamente para casa, felizmente Amélia a viu a tempo de gritar pela mãe, que correu e abraçou a sobrinha.

- Onde você estava?

Alice sentiu pelo tom de repreensão da tia que não devia contar a verdade, apesar de não ver problema em ter ido dar um pouco de atenção para aquelas pessoas tão abandonadas.

- Estava brincando.

- Brincando de pijama no meio da rua e com o cabelo feio desse jeito? E ainda pior, saiu de casa sem minha permissão?

Alice abaixou a cabeça e ficou em silêncio. Tia Rosário lhe deu um longo sermão sobre o perigo de sair na rua sem a supervisão de um adulto. Secretamente, Amélia se sentiu orgulhosa por nunca ter desobedecido a mãe daquele jeito e concordava com tudo que ela dizia.

Ao anoitecer, Amélia ainda se esforçava para descobrir o que exatamente Alice havia ido fazer na rua. Não tinha acreditado nem um pouco naquela história de ter ido brincar. Por que sair para brincar na rua se podia simplesmente brincar com ela?

Pensou com seus botões até se cansar, quando ouviu uma batida na porta que tia Rosário atendeu. Era dona Ana, a vizinha que gostava de oferecer doces mas que tinha o defeito de ser terrivelmente fofoqueira.

Dona Ana entrou com um rapaz moreno a acompanhando. Sem serem convidados os dois se sentaram á mesa e tia Rosário se apressou em servir o chá.

Dona Ana colocou a bandeja de doces sobre a mesa e deu um tapa na mão no rapaz quando ele tentou pegar um. Amélia o reconheceu.

Era o afilhado de dona Ana, Marco. Sempre nas férias ele vinha do Brasil visitar a madrinha, era conhecido por perseguir e irritar as crianças que se arriscavam a brincar com ele. Uma vez tinha pego a cadeira de rodas de Amélia e a deixado no chão enquanto dava voltas pela rua apostando corridas com as outras crianças. Ela se lembrava bem, ele parecia muito mais velho desde a última vez que o viu, mas Amélia nunca esqueceria daquele rosto maldoso.

- Você cresceu muito, Marco. - Tia Rosário sorriu, entregando as xícaras.

- Soube que o seu irmão faleceu, sinto muito.

Claro, aquela visita era uma boa desculpa para dona Ana conseguir uma fofoca nova. Amélia apenas não entendia o motivo de Marco está ali.

- Sim...

- E a criança está com você?

- Está.

- Como ela é? Posso conhecer ela?

- A Alice ainda está sofrendo muito pelos pais e se adaptando a nova vida.

- Mas nós não vamos morder - Marco falou com seu sotaque esquisito.

Derrotada, tia Rosário mandou Mauricio chamar Alice e apenas pediu para Ana não fazer perguntas demais. Amélia não tirou os olhos de Marco, que de vez em quando a olhava e fazia uma careta.

Segurando a mãozinha do primo, Alice se aproximou, tinha se arrumado e estava mais apresentável. Dona Ana e Marco a olharam dos pés a cabeça, o que a fez estremecer.

- Quantos anos você tem?

Sem obter resposta, Marco se zangou.

- Ela ainda não aprendeu a falar?

Alice deu alguns passos para trás e apertou as mãos, ela não tinha medo dos mortos do cemitério, tinha medo dos vivos. Aquele garoto era definitivamente um dos vivos que a assustavam.

- E você ainda não aprendeu a ter educação? - Amélia enrubesceu de raiva e foi em defesa da prima.

- E você ainda não aprendeu a andar?

Um silêncio tomou conta da sala, até mesmo Alice que não tinha muita reação com as coisas olhou assustada para Amélia. Ela não falou nada, apenas virou sua cadeira e foi para o quarto.

- Pelo amor de Deus, Rosário. Eu não sei o que deu nesse menino, deve ser a puberdade. - Dona Ana tentou se desculpar.

Amélia ouviu as palavras de Ana antes de bater a porta do quarto, pouco segundos se passaram e Alice entrou.

- Vai embora, eu quero ficar sozinha.

- Ele é um idiota.

Pela primeira vez Amélia ficou calada e Alice insistiu na conversa.

- Eu tenho mais medo dos vivos do que dos mortos, eles sim podem nos machucar.

- Por que disse isso?

- Não sei.

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