Grace
Solto Harry assim que ouço passos descendo as escadas. Jenny me dá um olhar estranho e olha para Harry, franze as sobrancelhas e vai para a cozinha. Lembrei que ela me disse que gosta de garotos loiros e de olhos azuis. Antes que eu pergunte para Harry se Natan veio, ouço uma voz familiar:
— Senti sua falta, amiga favorita! — Natan grita e me puxa para um abraço apertado.
— Natan! — exclamo. — Onde está Angela?
— Ela ainda está em Nova York... — Natan me responde enquanto entramos. — Mas ela estará aqui em algumas semanas.
Entrelaço meus dedos com Harry e os acompanho até a sala. Vou até a cozinha, para servi-los com alguma bebida ou alguma coisa e Natan me segue, dizendo que está com muita fome para esperar na sala, enquanto Harry fica admirando os quadros de Hannah e as muitas fotos espalhadas pelas paredes.
Quando chego ao balcão, sinto um puxão na minha mão. Olho para baixo e Jenny está tentando esconder-se atrás de mim, longe de ser a garota ousada que eu tinha conhecido.
— Não seja tímida. Ele não morde — comento. Natan sorri. Ergo as sobrancelhas e coloco minha mão ao redor dela. — Natan, esta é Jenny. — Eu a empurro para frente, e ela solta um suspiro insatisfeito. — Jenny, diga olá para Natan.
Ela lhe dá um rápido aceno, mas permanece do meu lado.
— Eu acho que você pode fazer melhor do que isso, Jenny. Você estava me dizendo uns dias atrás que ele é o seu tipo favorito: loiro e de olhos azuis.
— Grace! — Ela diz entre dentes, e seu rosto fica vermelho como um tomate.
— Eu sou o seu favorito? — Natan sorri. — Os outros meninos vão morrer de inveja.
Jenny ficou mais à vontade com Natan depois que ele empurrou dois canudos em seu nariz e começou a fazer ruídos estranhos. Kath achou hilário.
— Você quer vir para a minha primeira atuação de teatro amanhã? — Jenny está segurando minha mão, olhando para Natan, que está na porta, pronto para ir. Faço uma careta e olho para ela:
— Jenny... Natan é muito ocupado.
— Na verdade, eu não estou muito ocupado no momento. Nós ganhamos uma pausa de alguns dias antes de voltar para rotina do trabalho. Não me importaria de ir a um teatro. Faz tempo que não assisto um.
Eu nunca tinha visto Jenny sorrir tão largo em todo esse tempo que a conheço. Então peço para ela dizer um boa noite de despedida e subir para seu quarto, porque já está na hora de dormir. Ela grita um tchau e sobe as escadas correndo.
Dou risada e volto minha atenção para eles. Natan se vira para Harry e lhe dá um tapa no ombro.
— Te espero no carro. Até amanhã, Grace.
— Tchau, Natan!
— Então... — Harry sorri. — Que tal irmos jantar em algum lugar amanhã?
— Amanhã é sexta, não posso. Hannah vai precisar de mim, e Jenny vai receber as amigas dela aqui para uma noite do pijama — respondo. Ele assente com a cabeça, comprimindo os lábios.
— Tudo bem, vamos no sábado então.
— Sim, vamos sábado — respondo. Harry me beija com carinho, depois me dá um beijo na testa.
— Te vejo amanhã, linda.
— Até amanhã — lhe dou um beijo no rosto.
Londres, Inglaterra
Sexta-feira, 14 de setembro de 2018
Reajusto meu telefone para apoiá-lo melhor entre meu rosto e meu ombro enquanto eu tento cozinhar o almoço. Não dá certo.
— Aguenta aí, mãe. Só um segundo — digo, e coloco o celular no viva voz em cima do balcão.
— Você sabe que eu odeio viva voz. Grace, me tira do viva voz.
— Eu sou a única aqui, mãe. Ninguém pode ouvir você e eu preciso das duas mãos agora.
— Pelo menos você está cozinhando e não comendo besteiras todas as noites. Você ganhou peso? Você precisa ganhar peso minha filha, aquele lugar deve ter te deixado desnutrida e você não quer me contar.
Reviro os olhos. Ela não consegue acreditar que estou bem. Fisicamente, pelo menos. Só ganhei algumas cicatrizes. Ela não precisa saber que tenho pesadelos quase todas as noites com as pessoas que conheci e que foram assassinadas brutalmente.
Ela não precisa saber que ainda acordo gritando e apavorada. Que, lentamente, depois de muitos dias perdidos, eu voltei à vida. Tento seguir o conselho de Hannah, em colocar meus pensamentos no papel, apesar de ela insistir que eu marque uma consulta com um terapeuta.
Ao invés disso, digo à minha mãe que tenho um encontro amanhã. Ela ainda não sabe que conheci Harry naquele lugar. Para ela, ele é um britânico lindo que encontrei enquanto levava Jenny aos treinos de futebol.
Um dia vou dizer-lhe como eu sobrevivi, apesar de tudo. Eu vou dizer-lhe que quando acordo nas manhãs, parece impossível sentir prazer em qualquer coisa, porque eu tenho medo que isso possa ser tirado de mim. É quando eu faço uma lista na minha cabeça de cada ato de bondade que eu vi alguém fazer. É quando me lembro do amor que sentem por mim. Quando lembro que minha família está segura e bem. Quando lembro que tenho Harry na minha vida.
— Na verdade, eu perdi alguns quilos, mãe.
— Espero que não sejam muitos — resmunga.
Dou risada.
— Mãe, você sempre reclama...
— Apenas sinto sua falta. Quando você vai voltar para casa? Você não vai esperar até o Natal, não é? O que você está cozinhando? Alguma coisa gostosa?
Adiciono brócolis, cenoura e água no óleo de canola quente e depois os giro em torno da frigideira.
— Eu também sinto a sua falta. E eu não sei. Vou olhar a agenda da Hannah... frango e legumes refogados, e eu espero que esteja ótimo.
— Você temperou o frango antes? Você sabe que tem que temperar primeiro? Deixar marinar.
— Sim, mãe. O frango está temperado aqui em cima do balcão ao meu lado.
— Você acrescentou algo a mais?
— Não, mãe — sorrio.
— Por que você está comendo nesse horário?
— Esqueceu o fuso horário, mãe? É a hora do almoço aqui.
— Ah, sim, eu esqueci. O que você vai fazer hoje? Elas não estão te mantendo muito ocupada no trabalho, estão?
— Vamos assistir ao teatro da Jenny no parque mais tarde. Harry e Natan vão nos acompanhar. E eu estou me mantendo ocupada. Gosto assim e você sabe disso. Preciso manter a mente ocupada.
— Você não está saindo sozinha à noite, está?
— Claro que sim — reviro os olhos. Ela sabe que nunca mais irei sair por essas ruas sozinha depois que o sol se pôr. Não é seguro.
— Grace! Não revire os olhos para mim!
Solto uma gargalhada, porque minha mãe me diverte, mesmo quando me repreende, e me sinto bem. Parece que eu não ria há muito tempo.
— Grace? — Ela diz, com a voz preocupada.
— Estou aqui.
— Está com saudades de casa?
— Só de vocês. Diga ao Gab que disse um oi.
— Filho? Gabriel! Grace está dizendo oi.
Eu pude ouvir Gab de algum lugar na casa.
— Oi Gracie! Sinto sua falta, bobona!
Minha garganta aperta e lágrimas ameaçam cair. Meu irmãozinho está feliz. As coisas estão voltando ao normal e isso me faz sorrir.
— Tive que dar comprimidos antigases para ele esta semana. — Minha mãe diz. Eu podia ouvir a expressão divertida na voz dela e eu rio novamente.
— Sinto muita falta de vocês.
— Também sentimos saudades, filha.
Katherine está pegando flores amarelas do gramado. Ela pega duas de cada vez, e depois as solta no colo de Harry. Ele tinha uma coleção de quase doze, e sorria cada vez que ela vinha até ele. Harry é uma pessoa completamente diferente quando sorri, tão brilhante, como se pudesse iluminar até mesmo os dias mais nublados. — Então, estava pensando... — Natan começa, enquanto descansa a cabeça na mão, deitado de lado no gramado. Ele está puxando folhas da grama e brincando com elas. — Que tal sairmos beber numa noite dessas? — Eu acho uma boa ideia. Só tem que ser no dia da minha folga. — Ótimo! — Natan sorri pra mim. — Então acho que podemos ir para o The Globe. Antes que eu possa dizer alguma coisa, Harry olha para nós com as sobrancelhas franzidas. — Ela não vai para o The Globe. — O que há de errado? — Natan pergunta. Harry olha para ele como se estivesse louco: — É um bar, Natan! Cheio de velhos bêbad
Londres, Inglaterra Sábado, 15 de setembro de 2018 Harry vem me buscar em uma hora, e a minha longa conversa com Sara no telefone mal me deixou tempo suficiente para arrumar meu cabelo. Sara é a minha amiga brasileira, e converso com ela apenas sobre o meu dia a dia aqui. Ela não sabe das outras coisas. Inventei desculpas por ter demorado entrar em contato e ela esqueceu disso no momento que falei do meu encontro hoje. Para ela, Harry é só um cara que conheci em Londres, e que me fez esquecer com quem eu sonhava. Isso bastou para deixá-la feliz. Coloquei o vestido azul marinho que comprei da promoção na King Street. Depois de calçar meu único tênis all star, fui para o quarto de Hannah. Quando eu disse a ela sobre o jantar, ela me ofereceu o livre acesso ao seu closet. Ela estava sempre indo para eventos sociais, deixando-a na posse de alguns acessórios que eu só via através da vitrine no shopping. Me c
Assim que o show termina, Harry já está com seu celular na orelha. Ele liga e desliga duas vezes, e suspira, irritado. — O que foi? — pergunto e ele dá de ombros, coçando a parte de trás do pescoço. — O idiota, que abre a porta dos fundos, não está atendendo. Estamos presos aqui até que ele retorne, porque eu não vou sair pela entrada da frente com você. Franzo a testa. Por que ele está com raiva? — Posso ir primeiro. Pegar o seu carro e- Harry me interrompe, com o tom de voz firme: — Grace, nós não vamos sair pela frente. Pensei em perguntar por que ele estava sendo tão resistente. Quer dizer, os fotógrafos não estavam esperando por mim. Eu poderia entrar e sair sem que eles sequer levantem suas câmeras. Passei por situações piores na Tailândia, eu posso lidar com alguns fotógrafos. — Vamos lá — Harry diz, acenando com a cabeça para as portas do saguão. — Eu vou tentar ligar novamente. Você precis
— Eu não achei que seria esse tumulto... — Sim — Harry suspira novamente. — É assim que eles são o tempo todo, então, quando eu te pedir para fazer algo, me escute. Engulo em seco, concordando com a cabeça. — Não faça isso de novo — Harry diz depois de ligar o carro. Forço um sorriso e respondo: — Desculpe. Eu só... eu só queria ir embora. — Então você deveria ter me dito. Respiro fundo e pergunto: — Quem era ela? — Tiffany... eu costumava sair com ela, antes de... antes de tudo. — Ela era a sua namorada? Harry para no sinal vermelho e olha para mim. — Não. Nunca tive uma namorada antes de você... ela era alguém que eu chamava quando queria sexo — Harry responde. Fico em silêncio e olho para a janela. — O que elas disseram? —pergunta, ainda olhando para mim. — Quero dizer, o que fez você querer sair daquele jeito? — Isso não é importante — sussurro. — É importante para mim. <
Londres, Inglaterra Sábado, 15 de setembro de 2018 A porta do elevador está prestes a se fechar nas costas de Harry quando entro, e depois que ela se fecha, e antes que eu possa impedir minha loucura, aperto o botão de parar. — Grace, você está louca? — Harry pergunta. — Você realmente precisa que eu responda a essa pergunta? — Eu preciso lembrar que você tem pavor de pequenos lugares apertados? — Não, não tem necessidade — resmungo, olhado ao redor — estou muito ciente. — Grace — Harry diz, com gentileza. — E se nós permitirmos que o elevador se mova de novo, antes que você tenha uma pane mental? Afasto a ideia da minha cabeça. Tenho outras coisas em mente. — Me desculpe — digo. — Tudo bem — Harry diz, sem entender. — É só apertar o botão... — Não, não por isso. Pelo que eu disse antes. Sinto muito que eu tenha feito você se sentir como se não fosse sufici
Volto para casa de Hannah, com Harry me seguindo, somente para devolver o carro e então volto com Harry para o apartamento dele. Quando chego, vou direto deitar em sua cama enquanto ele vai ao banheiro. Faz semanas desde que eu dormi com ele, então sua cama é um conforto bem-vindo. Acho que vai ser sempre um conforto para mim. Eu ainda tenho problemas para dormir sozinha. Mesmo com as pílulas para dormir que comprei, minhas noites são inquietas e muitas vezes tenho flashes daquela casa quando eu fecho meus olhos. Os flashes não são quase tão ruins quanto os pesadelos, mas eles ainda são um lembrete constante da turbulência na minha vida. Depois que nos acomodamos para dormir, tenho dificuldade para manter meu cérebro desligado. Toda vez que fecho meus olhos, vejo Derek na minha frente. O homem que eu matei com um tiro na cabeça. Quanto mais eu tento e luto contra os pensamentos, mais vivos eles se tornam. Ele está bem aqui comigo, dentro da minha mente. Então a figur
Londres, Inglaterra Domingo, 16 de setembro de 2018 Na manhã seguinte, Harry me leva até a casa de Hannah. Agora ele está sentado em frente ao balcão, comendo os donuts que compramos no caminho, em um silêncio confortável. O episódio da madrugada foi quase esquecido, por enquanto. Sei que Harry vai me fazer ir para uma consulta com o terapeuta mais tarde. Eu estava me servindo uma xícara de café quando ouvi a porta da frente sendo aberta, e os passos que parecem de elefante pelo corredor. — Grace! — Jenny grita. — Grace, estamos em casa! Você sentiu nossa falta? Tia Ju me mostrou suas fotos no computador! Você se divertiu no show? Por que você deixou Harry tocar em você?! Você provavelmente tem piolhos agora! Você devia ir ao médico! As fotos que tiraram ontem já estão na internet? Abro um sorriso, e Harry faz uma careta, enquanto Jenny e Katherine invadem a cozinha. — Oh
Londres, Inglaterra Quarta-feira, 19 de setembro de 2018 Eu sabia que já era hora de eu me recompor e conseguir ajuda, porque tudo o que eu queria fazer era desaparecer. A primeira vez que fui ver a Dra. Thompson, foi o dia depois do meu ataque no apartamento do Harry. Nós decidimos que eu iria vê-la duas vezes por semana, na segunda e na quarta-feira. Durante a primeira sessão, lhe disse tudo o que tinha acontecido desde maio: Brasil, minha família, Hannah e as meninas, o sequestro, Harry e as mortes que vi ou causei. Contei tudo, sobre como foi minha infância e porque eu não procurei a terapia no início, quando os sonhos com Harry começaram a me tirar da realidade. A Dra. Thompson está me ajudando a ver que, o que Chase fez não foi culpa minha. Eu ainda abrigo a culpa sobre isso, mas não tanto quanto eu costumava fazer. Ela está me ajudando a aprender a tolerar as minhas emoçõ