CAPÍTULO 2
O sol emitia os primeiros raios da manhã quando Galeano saía do estacionamento da pousada de beira de estrada em que havia passado a noite. Calculara mal a distância e agora precisava voltar para a estrada. Estava ansioso para chegar, pois havia escutado muitas histórias interessantes sobre a igreja de pedra. Entre as muitas versões que ouvira, uma dizia que em noite de lua de cheia, focos de luzes coloridas dançavam no interior da igreja, e mesmo no ápice da alta temperatura o local era totalmente refrigerado. Não conseguia entender como era possível numa região semiárida, escassa de chuva e atingida pelo forte calor, existir um lugar imune às variações climáticas. Precisava descobrir o que estava por trás das lendas. Ligou o som do veículo e acelerou, verificando uma vez ou outra o mapa rodoviário. Olhou as anotações que pegara com algumas pessoas que encontrou ao longo da viagem e seguiu à risca todas as orientações.
***
O calor incomodava, mas nem ao menos podia abaixar os vidros, ou então, o interior do carro seria inundado pela poeira vermelha produzida pela própria velocidade. A estrada não estava bem conservada, notava-se a ausência de ações do governo na região. “O desrespeito reina sobre o povo em qualquer lugar” — pensou enquanto dirigia por aquela estrada desconhecida, de terra esburacada. Reduziu a velocidade, engatou a segunda marcha e começou a subida da serra do Jatobá, nome descoberto através do mapa da região.
O carro avançava sempre nas marchas primeira e segunda, devido ao péssimo acesso da estrada. Enquanto avançava lentamente, aproveitava para contemplar as belezas das serras com suas vegetações singulares. Aos trinta e cinco anos de idade, era a primeira vez que adentrava no coração sertanejo do Estado. Pouco antes do meio-dia entrou no povoado, a estátua do Padre Cícero na entrada dava sinal de como era intensa a vida religiosa naquele lugar. Parou o veículo e pediu informações a uma moça que estava varrendo a calçada de uma mercearia, como indicava a placa de publicidade na fachada.
— Onde encontro uma pousada? — Galeano perguntou.
A moça deixou o que estava fazendo e se aproximou do carro, com o auxílio das mãos arrumou a gasta blusa decotada e falou:
— No final da rua. Ao lado da igreja fica a pousada da Dona Carminha. Sempre há quartos vazios.
Galeano não deixou de notar que a moça se insinuava ao falar. Ela tinha uma beleza que não passava despercebida, os cabelos presos em forma de rabo de cavalo, pele morena e lábios carnudos.
— Obrigado — ele agradeceu.
— Não há de quê — respondeu a moça. Antes que o carro arrancasse complementou. — Se precisar de algo mais, não deixe de me procurar — piscou o olho esquerdo e voltou a varrer a calçada.
***
Seguindo as instruções da moça, Galeano não teve dificuldades para encontrar o local. Uma velha placa deteriorada pela ação do tempo indicava: Pousada Mata Verde. Saberia mais tarde que o nome do estabelecimento era referência à comunidade onde a proprietária nascera. Estacionou o carro embaixo de um pé de castanhola e se encaminhou para a pousada. Não houve burocracia. Uma senhora aparentando cinquenta anos apenas lhe pediu a cédula de identidade. Ele deduziu que aquela senhora magra e alta com um lenço preto prendendo os cabelos, vestida com blusa de mangas compridas e calça jeans, era a dona Carminha, a proprietária. Fato confirmado durante o jantar na noite daquele mesmo dia. Galeano ficou com um quarto nos fundos da pensão, com vista para um morro no lado norte. Tomou banho, vestiu uma calça jeans e uma camisa polo de cor preta e desceu para o salão de janta. Não demorou muito para surgir uma garçonete, ou pelo menos parecia ser. Ela não demonstrou simpatia pela sua presença ali. Ficou em silêncio enquanto o servia e logo saiu pela mesma porta que havia entrado. Pouco tempo depois a anfitriã se aproximou da mesa.
— Posso me sentar por um instante? — perguntou a recém-chegada.
— Será um prazer ter a sua companhia — respondeu Galeano.
Ela sentou-se no lado oposto da mesa, posição frontal a ele. Sem titubear o fulminou com uma pergunta indiscreta.
— Sei que o seu nome é Galeano Silveira, mas me diga, qual o seu interesse em nosso povoado?
Antes de responder ele pensou em ser mal-educado, mas, após uma fração de minuto, moderadamente respondeu:
— Sou fotógrafo. Trabalho para uma revista de turismo e estou aqui para fazer algumas fotos para uma edição especial.
— Não me entenda mal querer saber sobre a sua atividade. Quando algum forasteiro aparece, levanta suspeita de todos no povoado. Se olhar ao redor, notará que os demais hóspedes não tiram os olhos do senhor.
Galeano disfarçadamente olhou a sua volta e confirmou que a mulher tinha razão. Sua atenção foi chamada pela voz da companheira.
— Já sofremos muitos golpes por estranhos que aparecem no povoado, principalmente durante a festa da rapadura ou do padroeiro.
Ele já estava se levantando quando ela comentou:
— Se o senhor fala mesmo a verdade, não precisa temer. A propósito, meu nome é Carminha, qualquer coisa que aconteça aqui no meu estabelecimento, fale comigo antes de qualquer outra coisa. Fui clara?
— Perfeitamente — respondeu Galeano voltando a sorver o último gole de café.
***
Na manhã do dia seguinte, era o primeiro domingo do mês, dia de missa na capela do povoado. Galeano acordou cedo para conhecer melhor a localidade. Notara que a agricultura e a pecuária eram as culturas predominantes. As características rurais estavam estampadas no cotidiano das pessoas. Enquanto muitas mulheres varriam a frente de suas residências, os homens conduziam os animais para os pastos. Mesmo sendo um aglomerado de casas, com poucas fileiras de ruas, ainda mantinham os costumes e hábitos rurais. Poucos minutos depois a rua já parecia um formigueiro humano, era como se todos tivessem resolvido ir à igreja ao mesmo tempo. Quando Galeano entrou, já estava sendo iniciada a celebração eucarística.
Notou que o Padre era jovem, barbeado e cabelo bem penteado e que tinha a pele clara e os olhos verdes. Notou também que a população gostava dele, principalmente as moças que se aglomeravam nas primeiras fileiras. Sentou-se no ultimo banco de madeira e pôde conferir a bela arquitetura com as ornamentações, estátuas e santos da Igreja Católica Apostólica Romana. Muitas senhoras com véus negros cobrindo a cabeça rezavam fervorosamente. Um rapaz acompanhava os cânticos dedilhando um violão. Os coroinhas executavam as ordens do Sacerdote. Era impressionante como a Igreja ainda conseguia manter os rituais seculares.
Galeano esperou o término da Celebração para conversar com o padre. Apresentou-se ao sacerdote:
— O senhor é o Padre Lucas?
— E você Galeano Silveira? Já esperava a sua chegada — respondeu o Padre.
— Um amigo em comum me enviou. Porém, ninguém pode saber o que realmente vim fazer aqui.
— Eu sei — falou Lucas. — Como está Marcos? — complementou em seguida
— Está bem.
— Da última vez em que nos falamos ele estava preocupado. Há mais de um mês que não nos vimos.
— Ele anda muito ocupado com as tarefas da Paróquia, mas, prometeu lhe fazer uma visita.
— Pegue este mapa que eu mesmo rascunhei e guarde-o em segurança. Amanhã cedo siga para o Cedro.
— Fazer o que lá?
— É lá que está localizada a igreja de pedra. Oficialmente você é fotógrafo, então não vai despertar a desconfiança de ninguém.
— Tem acesso para carro?
— Não, alugue uma moto.
— Onde consigo uma?
— Na saída da rua tem uma borracharia, o dono sempre tem uma moto para alugar. Já é de costume ele alugar para turistas e romeiros. E para fotógrafos, é claro — falou padre Lucas estampando um tímido sorriso.
— Quando voltamos a nos ver?
— Daqui a um mês, mas, caso você resolva tudo antes, me procure na casa Paroquial de Torrões.
— Como vou encontrar o caminho desta cidade?
— No mapa que lhe dei.
— Obrigado, padre — ele agradeceu e dirigiu-se até a saída da igreja, mas o padre o chamou.
— Galeano.
— Sim?
— Tenha cuidado.
Galeano acenou com um gesto facial e deixou a capela com o padre Lucas mergulhado nos próprios pensamentos.
CAPÍTULO 3 Sentada na varanda, tomava café com leite, contemplando as luzes das cidades circunvizinhas. Pérola encolhida próximo dela. Era vantajoso morar no cume da serra, tinha toda a ribeira ao alcance dos olhos. Fora feliz, disso não tinha dúvidas. Mas, desde que o esposo arranjara uma amante, o descontrole visitou seu casamento. Aos quarenta anos não tinha mais ambições na vida. Agradecia muito ao falecido por ter sido resgatada da prostituição, mas, ao mesmo tempo, o culpava por tanto sofrimento. A esperança de ser absolvida era inexistente. Se pelo menos tivesse dinheiro para pagar um advogado particular. O único bem que tinha era uma fazenda falida que nem podia vender por causa da hipoteca. O frio acompanhado da névoa bailava dificultando a visão, impossibilitando continuar contemplando as luzes das cidades. Era hora da visita. Não demorou muito para chegar ao casebre onde encontrou o sogro na calçada, sentado no velho tambore
CAPÍTULO 4 Há três dias chegara à Silvestre. A chuva não dava trégua. Para não ficar alheio, passava o dia lendo no quarto, ou no salão, bebendo alguma coisa. Na noite anterior esteve com a moça que trabalhava na mercearia de Genaro, a mesma moça que lhe indicara a pensão no dia de sua chegada ao povoado. Estava lendo Pássaros Feridos de Colleen Mccllough quando uma voz desviou sua atenção. — Posso sentar-me aqui? — perguntou a recém-chegada. — Não há mesas vagas — complementou em seguida. Galeano desviou a atenção do livro e voltou seus olhos em direção a voz, reconhecendo a dona. — Fique à vontade — disse-lhe. A moça sentou-se de frente a ele e chamou a garçonete pelo nome. — Teresa! — não demorou muito e logo foi atendida. — Pois não, senhora — falou a garçonete. — Traga-me um café com leite. — É para já — a garçonete saiu e pouco tempo depois retornou com o pedido. —
CAPÍTULO 5 Melissa sentiu uma lágrima descer na face. Guardou a revista que encontrara naquela manhã junto de uns objetos obsoletos. Desde a noite anterior ficara preocupada com Severino. Percebeu que ele perguntava sobre fatos acontecidos há muitos anos e não conseguia lembrar assuntos recentes. Referia-se ao filho como se ele ainda estivesse vivo. Quando ele foi dormir, não conseguiu trocar de roupa. Ela o ajudou a vestir uma camisa de frio e a tirar os chinelos. Cada vez mais sentia a necessidade de saber mais sobre a doença que aos poucos devorava seu único amigo. Quando retornou ao casarão procurou incansavelmente pela antiga revista que continha um artigo explicando passo a passo o Mal de Alzheimer. Após ler novamente o artigo, teve certeza que o coronel Severino Vargas estava vivendo a segunda fase da doença. Talvez ela não estivesse ao seu lado quando ele adentrasse na terceira fase. Não conseguiu mais conter o choro. Escondeu o rosto
CAPÍTULO 6 Parecia o cenário de um filme de faroeste. O vilarejo estava deserto, exceto por alguns cães passeando pela rua e bêbados cambaleando pelas calçadas ou adormecidos aos pés das paredes. Se não fossem os bares em pleno funcionamento, qualquer um diria que ali era um povoado fantasma. Galeano estacionou a moto sob a sombra da marquise da pensão. Antes de entrar olhou em volta. A poeira conduzida pelo vento o fez proteger os olhos com a mão. Por uma fração de minuto percebeu um vulto se esgueirando pelas sombras das residências. Assim como surgiu, também desapareceu. Focou o olhar na direção onde estava o vulto, mas havia desaparecido. Poderia estar sendo seguido, ele pensou. Rapidamente descartou a possibilidade. Entrou no salão da pensão, passando direto para o quarto. Naquela noite não desceu para jantar, informou à Carminha que não queria ser incomodado. Pouco tempo depois uma batida na porta o fez ficar alerta. Ficou em silêncio a
CAPÍTULO 7Aquele lugar era seu refúgio e fortaleza, amava incondicionalmente aquele lar. Muitas vezes se encontrava inundada em lágrimas pela real possibilidade de ser condenada e deixar aquele pedaço de chão para sempre. Sabia que as recordações lhe acompanhariam para qualquer lugar. Odiava-se por não tentar procurar alguma prova que ajudasse na defesa. A casa era enorme e nunca procurara pelo cofre que ficava escondido no escritório, aliás, para isto era preciso primeiro encontrar a chave. Ela nunca conseguiria arrombar aquela porta fabricada de cedro, a árvore mais resistente da região. Nos primeiros dias após a morte do esposo, procurou a chave como uma louca busca sair do sanatório. Depois de sucessivos fracassos, desistiu e se conformou com a situação. Ocupava o tempo cuidando do sogro e aproveitando cada minuto que lhe restava
CAPÍTULO 8 Quase não conseguira dormir. Mesmo fechando a porta do quarto à chave não se sentia segura com um estranho dormindo sob o mesmo teto. Melissa havia deduzido várias hipóteses de quem realmente era o recém-chegado. Ele poderia ser realmente quem disse ser, mas também poderia estar ali a mando de alguém que desejasse vê-la morta. Talvez fosse um policial disfarçado, investigando a sua real culpa pelo assassinato de Manoel Vargas. Quando acordou naquela manhã o visitante não se encontrava mais na sala, onde dormira no desconfortável sofá. Tomada por um impulso correu para o terreiro e constatou que a moto permanecia no mesmo lugar onde fora deixada no dia anterior. Deduziu que ele pudesse ter ido buscar um mecânico no povoado. Sentia-se estranha. Um sentimento irreconhecível tomava forma. Tentou não pensar nele, mas poucos minutos depois estava criando a imagem dele nas recentes lembranças. Resolveu ocupar a mente com os
CAPÍTULO 9 Era a capitã do próprio mundo, permitindo o naufrágio de toda a tripulação. Dona das sagradas paisagens que a mente inventara para enganar as besteiras de uma sociedade hipócrita comandando um sistema ainda mais hipócrita, regido por certas leis determinando que a liberdade deve sempre existir. Não era aplicado ao seu caso. Melissa constantemente se revoltava com as regras que a justiça lhe aplicara. Enquanto o veredito não saísse ela estava proibida de sair da própria casa. A solidão lhe consumia dia após dia. Muitas vezes agradecia a Deus por ter o sogro próximo, mesmo desmiolado era uma boa companhia. Em outras oportunidades culpava Deus por tanto sofrimento. Estava cansada e se pegara inúmeras vezes pensando em suicídio. Estranhamente, se sentia feliz com a presença do fotógrafo em sua casa. Não dissera nada a Severino. Desde cedo estava frustrada pela ausência dele. “Não posso ficar neste jogo de nervos e ne
CAPÍTULO 10 Olhou o relógio, eram cinco horas da manhã. Pensou dormir mais uma hora. Vozes discutindo o fizeram levantar rapidamente. Já devidamente vestido saiu em busca do local de onde vinham as vozes. Deu a volta pela lateral da casa e viu um homem de estatura mediana, gordo, bigode espesso cobrindo o lábio superior. Usava calça e camiseta militar. Aproximou-se com cautela até uma distância que lhe permitia ouvir claramente. Entedeu claramente a situação: a cadela permitiu que aquele homem entrasse por ser alguém conhecido. — Por favor, me deixe em paz — falou Melissa arrumando o cabelo. — Já lhe disse mais de uma vez que no momento não estou a fim de encontros. — Você se faz de difícil, mas, deitava com qualquer um em troca de uns centavos quando morava no cabaré. — Seu porco imundo. Não permito tal liberdade... — os soluços afogaram as palavras de Melissa. — Por favor, me deixe terminar de tirar o leite. C