CAPÍTULO 3
Sentada na varanda, tomava café com leite, contemplando as luzes das cidades circunvizinhas. Pérola encolhida próximo dela. Era vantajoso morar no cume da serra, tinha toda a ribeira ao alcance dos olhos. Fora feliz, disso não tinha dúvidas. Mas, desde que o esposo arranjara uma amante, o descontrole visitou seu casamento. Aos quarenta anos não tinha mais ambições na vida. Agradecia muito ao falecido por ter sido resgatada da prostituição, mas, ao mesmo tempo, o culpava por tanto sofrimento. A esperança de ser absolvida era inexistente. Se pelo menos tivesse dinheiro para pagar um advogado particular.
O único bem que tinha era uma fazenda falida que nem podia vender por causa da hipoteca. O frio acompanhado da névoa bailava dificultando a visão, impossibilitando continuar contemplando as luzes das cidades. Era hora da visita. Não demorou muito para chegar ao casebre onde encontrou o sogro na calçada, sentado no velho tamborete de madeira. Ele tinha o olhar perdido no vazio. Tremia de frio. Melissa o enrolou com um velho lençol e se sentou ao lado dele num outro tamborete e, juntos, ficaram em silêncio contemplando a dança da névoa sobre as suas cabeças. Era normal eles passarem duas horas seguidas em silêncio. Ela já estava acostumada com as limitações de Severino, que pioravam a cada dia. Pensava em levá-lo novamente ao médico, mas não tinha transporte e nem dinheiro para as despesas com os medicamentos. Naquela noite ele parecia estar sereno.
— Ele foi engolido pela luz — falou Severino gaguejando.
— Quem foi engolido pela luz? — quis saber Melissa.
Severino olhou para Melissa e com olhos nadando em lágrimas falou:
— Não deixe a luz me levar também.
Melissa sentiu o estômago se contrair. Abraçou o corpo esquelético do sogro e lhe sussurrou ao ouvido:
— Eu estou aqui e não vou deixar você sofrer.
Não soube com precisão quanto tempo permaneceram abraçados. Pouco tempo depois o sogro pediu para ir deitar. Ela o ajudou e quando teve certeza que ele estava dormindo, fechou a porta e foi embora. Naquela noite ela quase não dormiu, ficou reprisando a frase dita por Severino: Ele foi engolido pela luz.
***
Melissa acordou assim que o dia nasceu. O sol, de maneira preguiçosa, não havia surgido no céu, mas sim uma mansa chuva, que dificultou que ela pudesse cumpriu sua rotina matinal. Esperou uma trégua na chuva e rapidamente tirou o leite das vacas. Não demorou muito e Pedro apareceu para pegar o leite. Ele era um bom rapaz, trabalhava para Genaro e sempre foi muito atencioso. Recolhia o leite das fazendas da região para ser vendido na mercearia do patrão. Melissa raramente recebia o pagamento pela venda do leite. Geralmente mandava pelo rapaz a lista de produtos que necessitava e no dia seguinte quando ele retornava para buscar o leite, trazia-lhe as compras. Depois que Pedro saiu em disparada com sua moto, arrastando um reboque, Melissa se encaminhou para o casebre.
Sentia-se cansada com aquela rotina, sentia-se uma prisioneira em liberdade. A justiça havia proibido ela de sair dali até o resultado do julgamento e mesmo se permitisse, ela não teria coragem de abandonar o sogro. Ele sempre a apoiara desde que ela foi morar ali. Seu temperamento era bem diferente do que tinha o filho. Melissa conhecia a história de Severino, pois nos anos que convivera com ele, ouvira diversas vezes a saga de um sertanejo lutador. Ele perdeu a mulher ainda jovem e não casou novamente, falava que seu amor nunca mais seria de outra mulher. Ficou abalado com a morte da esposa e para amenizar a intensidade da dor se entregou totalmente aos negócios. Absorvia quase toda a mão de obra local como um bom e grande empregador rural.
Conquistou com esforço o seu patrimônio, que no alto da velhice passou para as mãos do filho, Manoel, que tinha a índole diferente do pai. Quando passou a administrar os negócios, a rotina na fazenda foi totalmente alterada. Os empregados passaram de companheiros para simplesmente capachos. Ele aumentou significativamente a jornada de trabalho, tornou-se um homem tirano e obcecado por dinheiro e poder. Severino tentou intervir mais foi impedido pelo filho e quando ele tentou tomar a coordenação dos negócios, Manoel entrou na justiça alegando que seu pai não estava em suas melhores condições físicas e psicológicas. Conseguiu uma liminar judicial dando-lhe totais poderes sobre o patrimônio do coronel Severino Vargas, que passou a ser chamado de ex-coronel.
Melissa lutou para impedir que Severino fosse ocupar o casebre, ela dizia ao marido que o casarão tinha espaço suficiente para todos.
— O que dirão meus amigos, lideranças e aliados políticos quando vierem aqui em casa e encontrar um velho desmiolado se metendo na minha vida? — era o que Manoel dizia.
Ela tentava convencer o sogro a não abandonar a casa que ele construiu.
— Não se preocupe, eu vou ficar bem. Muito obrigado pelo apoio — foram as últimas palavras de Severino antes de sair do casarão.
Reuniu algumas poucas coisas e se mudou para o velho casebre. Entre a sede da fazenda e o casebre existia uma distância de aproximadamente quinhentos metros. Coube à Melissa a tarefa de cuidar do sogro diariamente. Eles se tornaram um pilar de sustentação um para o outro. Nas longas ausências do marido, Melissa buscava conforto nos diálogos com o sogro, que lhe orientava a ir embora antes que fosse tarde demais, principalmente quando ela começou a sofrer agressões físicas. Ela o ajudou quando ele entrou numa profunda depressão quando soube da morte do filho. Mesmo tendo sido abandonado por Manoel, ele o amava verdadeiramente, afinal era um filho que havia morrido.
Um dia, a mente começou a brincar com ele. Ora o deixava no mundo real, ora no da fantasia. Ela estava presente quando o médico anunciou o diagnóstico de Alzheimer. Melissa não era perita no assunto, mas, sabia que era uma doença degenerativa, atualmente incurável. Certa vez havia lido numa revista que a doença tem quatro fases, e pelo que havia lido, Seu Severino, como costumava chamá-lo, estava na primeira fase. Percebendo nele certa desorientação de tempo e espaço. Muitas vezes ele não sabia em que ano, mês ou dia estavam. Melissa tinha clareza dos fatos, mas, não tinha condições financeiras para interná-lo numa clínica especializada. Ela se preocupava como se ele fosse seu próprio pai. Quem cuidaria dele quando ela fosse para a cadeia? Sofria sem saber o que iria acontecer com ele. Teriam paciência com as suas limitações? Tentava em vão afugentar tais pensamentos.
CAPÍTULO 4 Há três dias chegara à Silvestre. A chuva não dava trégua. Para não ficar alheio, passava o dia lendo no quarto, ou no salão, bebendo alguma coisa. Na noite anterior esteve com a moça que trabalhava na mercearia de Genaro, a mesma moça que lhe indicara a pensão no dia de sua chegada ao povoado. Estava lendo Pássaros Feridos de Colleen Mccllough quando uma voz desviou sua atenção. — Posso sentar-me aqui? — perguntou a recém-chegada. — Não há mesas vagas — complementou em seguida. Galeano desviou a atenção do livro e voltou seus olhos em direção a voz, reconhecendo a dona. — Fique à vontade — disse-lhe. A moça sentou-se de frente a ele e chamou a garçonete pelo nome. — Teresa! — não demorou muito e logo foi atendida. — Pois não, senhora — falou a garçonete. — Traga-me um café com leite. — É para já — a garçonete saiu e pouco tempo depois retornou com o pedido. —
CAPÍTULO 5 Melissa sentiu uma lágrima descer na face. Guardou a revista que encontrara naquela manhã junto de uns objetos obsoletos. Desde a noite anterior ficara preocupada com Severino. Percebeu que ele perguntava sobre fatos acontecidos há muitos anos e não conseguia lembrar assuntos recentes. Referia-se ao filho como se ele ainda estivesse vivo. Quando ele foi dormir, não conseguiu trocar de roupa. Ela o ajudou a vestir uma camisa de frio e a tirar os chinelos. Cada vez mais sentia a necessidade de saber mais sobre a doença que aos poucos devorava seu único amigo. Quando retornou ao casarão procurou incansavelmente pela antiga revista que continha um artigo explicando passo a passo o Mal de Alzheimer. Após ler novamente o artigo, teve certeza que o coronel Severino Vargas estava vivendo a segunda fase da doença. Talvez ela não estivesse ao seu lado quando ele adentrasse na terceira fase. Não conseguiu mais conter o choro. Escondeu o rosto
CAPÍTULO 6 Parecia o cenário de um filme de faroeste. O vilarejo estava deserto, exceto por alguns cães passeando pela rua e bêbados cambaleando pelas calçadas ou adormecidos aos pés das paredes. Se não fossem os bares em pleno funcionamento, qualquer um diria que ali era um povoado fantasma. Galeano estacionou a moto sob a sombra da marquise da pensão. Antes de entrar olhou em volta. A poeira conduzida pelo vento o fez proteger os olhos com a mão. Por uma fração de minuto percebeu um vulto se esgueirando pelas sombras das residências. Assim como surgiu, também desapareceu. Focou o olhar na direção onde estava o vulto, mas havia desaparecido. Poderia estar sendo seguido, ele pensou. Rapidamente descartou a possibilidade. Entrou no salão da pensão, passando direto para o quarto. Naquela noite não desceu para jantar, informou à Carminha que não queria ser incomodado. Pouco tempo depois uma batida na porta o fez ficar alerta. Ficou em silêncio a
CAPÍTULO 7Aquele lugar era seu refúgio e fortaleza, amava incondicionalmente aquele lar. Muitas vezes se encontrava inundada em lágrimas pela real possibilidade de ser condenada e deixar aquele pedaço de chão para sempre. Sabia que as recordações lhe acompanhariam para qualquer lugar. Odiava-se por não tentar procurar alguma prova que ajudasse na defesa. A casa era enorme e nunca procurara pelo cofre que ficava escondido no escritório, aliás, para isto era preciso primeiro encontrar a chave. Ela nunca conseguiria arrombar aquela porta fabricada de cedro, a árvore mais resistente da região. Nos primeiros dias após a morte do esposo, procurou a chave como uma louca busca sair do sanatório. Depois de sucessivos fracassos, desistiu e se conformou com a situação. Ocupava o tempo cuidando do sogro e aproveitando cada minuto que lhe restava
CAPÍTULO 8 Quase não conseguira dormir. Mesmo fechando a porta do quarto à chave não se sentia segura com um estranho dormindo sob o mesmo teto. Melissa havia deduzido várias hipóteses de quem realmente era o recém-chegado. Ele poderia ser realmente quem disse ser, mas também poderia estar ali a mando de alguém que desejasse vê-la morta. Talvez fosse um policial disfarçado, investigando a sua real culpa pelo assassinato de Manoel Vargas. Quando acordou naquela manhã o visitante não se encontrava mais na sala, onde dormira no desconfortável sofá. Tomada por um impulso correu para o terreiro e constatou que a moto permanecia no mesmo lugar onde fora deixada no dia anterior. Deduziu que ele pudesse ter ido buscar um mecânico no povoado. Sentia-se estranha. Um sentimento irreconhecível tomava forma. Tentou não pensar nele, mas poucos minutos depois estava criando a imagem dele nas recentes lembranças. Resolveu ocupar a mente com os
CAPÍTULO 9 Era a capitã do próprio mundo, permitindo o naufrágio de toda a tripulação. Dona das sagradas paisagens que a mente inventara para enganar as besteiras de uma sociedade hipócrita comandando um sistema ainda mais hipócrita, regido por certas leis determinando que a liberdade deve sempre existir. Não era aplicado ao seu caso. Melissa constantemente se revoltava com as regras que a justiça lhe aplicara. Enquanto o veredito não saísse ela estava proibida de sair da própria casa. A solidão lhe consumia dia após dia. Muitas vezes agradecia a Deus por ter o sogro próximo, mesmo desmiolado era uma boa companhia. Em outras oportunidades culpava Deus por tanto sofrimento. Estava cansada e se pegara inúmeras vezes pensando em suicídio. Estranhamente, se sentia feliz com a presença do fotógrafo em sua casa. Não dissera nada a Severino. Desde cedo estava frustrada pela ausência dele. “Não posso ficar neste jogo de nervos e ne
CAPÍTULO 10 Olhou o relógio, eram cinco horas da manhã. Pensou dormir mais uma hora. Vozes discutindo o fizeram levantar rapidamente. Já devidamente vestido saiu em busca do local de onde vinham as vozes. Deu a volta pela lateral da casa e viu um homem de estatura mediana, gordo, bigode espesso cobrindo o lábio superior. Usava calça e camiseta militar. Aproximou-se com cautela até uma distância que lhe permitia ouvir claramente. Entedeu claramente a situação: a cadela permitiu que aquele homem entrasse por ser alguém conhecido. — Por favor, me deixe em paz — falou Melissa arrumando o cabelo. — Já lhe disse mais de uma vez que no momento não estou a fim de encontros. — Você se faz de difícil, mas, deitava com qualquer um em troca de uns centavos quando morava no cabaré. — Seu porco imundo. Não permito tal liberdade... — os soluços afogaram as palavras de Melissa. — Por favor, me deixe terminar de tirar o leite. C
CAPÍTULO 11 Galeano não pediu para acompanhá-la ao casebre. Também não foi convidado. Enquanto Melissa cumpria a missão noturna, Galeano ficou sentado na calçada apreciando a dança das estrelas no céu. Num momento o céu estava estrelado, minutos depois ficava completamente tomado pela névoa. Estas alterações tornavam o lugar ainda mais agradável. Sua mente discorreu nos detalhes dos últimos acontecimentos da investigação. Sabia que cometera um grave erro ao se envolver com o alvo. Fora fraco quando a beijou. Não cometeria o erro duas vezes. Não queria sofrer e nem a fazer sofrer. Bastava o “rolo” com Márcia. Deveria ter ido embora naquela manhã, estava usando a última muda de roupa que trouxera na mochila. Estava se arriscando demais. Seus planos mentais foram atropelados pelo tom aveludado da voz de Melissa. — Pronto para jantar? Ele sorriu e acenou com a cabeça. Levantou-se e seguiu a anfitriã para dentro da casa. O cardápio