Capítulo 5 - Uma noite arriscada

— Por favor, me explique de novo. — Eu ainda estava o seguindo. Nós ainda estávamos no campus, indo em direção ao prédio onde ficava o dormitório dele. Meus tênis ainda permaneciam em minhas mãos e meus pés afundavam na macia grama.

     — Não tenho mais tempo — diz ele.

     — Tem muito tempo sim! — O fiz parar novamente com um tapa forte em seu braço. — Se me esperou até sair daquele quarto, pode me dar uma explicação!

     — Não vou explicar de novo e pronto! — Ele continuou a caminhar. — Você ficou prestando atenção em outra coisa porque quis!

     — Eu estava prestando atenção em você!

     Tudo bem que era nos seus olhos, mas isso conta, não é verdade, diário? Bom, os olhos dele fazem parte do mesmo, então minha afirmação não está errada. É claro que como sou uma sábia garota — que até agora não demonstrei ser —, não posso dizer que o tempo todo fiquei observando seus olhos. Pelo pouco tempo que o conheço, sei que ele vai fazer de tudo para que eu diga a verdade, sendo que não existe nenhuma verdade do tipo: estou apaixonada por você, me beije.

     — Mas não me ouviu.

     — Me diga, por favor. São apenas palavras. Podemos acabar com tudo isso se disser logo o que me disse antes.

     — Até quando vai me perturbar por isso?

     — Pra sempre, se for necessário.

     Assim que eu terminei de falar, ao longe, vi mais ou menos cinco lanternas. Todas elas se moviam de forma aleatória, iluminando diversos locais. Se tudo isso significar perigo, quero que fique longe.

     — O que é aquilo? — perguntei apontando para os pequenos pontos brilhantes.

     — São vigias noturnos. A coisa é simples: se nos pegarem, estamos mortos.

     Ele me puxou para de trás de uma estátua de bronze. Não é um dos melhores lugares para se esconder, porém é o único.

     — Mas não estamos fazendo nada de errado — sussurrei.

     — Claro que estamos. Você não sabe da regra que é proibido sair dos prédios depois das onze da noite?

     — Eu achei que eles não levavam tão á sério assim. Achei que esse tipo de regra era só pra deixar os alunos intimidados.

     — Agora você sabe o quanto eles levam á sério. Essa é uma das regras mais perigosas de se quebrar. — Ele deu uma olhada rápida no local. — Consegue correr rápido?

     — Claro que sim. Por que a pergunta?

     — Primeiro porque hoje de manhã você foi muito lerda... — Eu podia sentir que ele queria rir de mim, mas só não o fez porque poderia chamar a atenção dos vigias noturnos.

     — Já tentou correr como eu corri?

     — Correr sem camisa é ainda mais fácil

     — Se você fosse mulher, entenderia.

     — Continuando: segundo porque eles estão mais perto do prédio onde está os dormitórios das garotas. Talvez se a gente correr bem rápido, nós temos chance de chegar no meu dormitório sem sermos pegos.

     — E como vou ir pro meu dormitório?

     — Não tem jeito — Ele abriu um sorriso. — Ou é dormir no meu quarto ou é dormir no meu quarto. Você vai ter que arriscar a passar uma noite comigo.

     — Uma noite? Uma noite inteira? Não tenho nenhuma outra escolha?

     — Não.

     Suspirei de uma maneira prolongada, tentando fazer com que o tempo passasse, mesmo sabendo que isso nunca daria certo e digo:

     — Então vou arriscar.

     Ele começou a correr e eu fui atrás. O problema — por que sempre tem que ter um problema? —, era que eu estava descalça, então pisava em várias pedras até que, infelizmente, pisei em uma meio pontiaguda e caí no chão. Senti uma leve dor vindo do meu pé. Olhei e vi que tinha um corte na sola que já estava sangrando. Maldita pedra pontiaguda. Com poucos segundos, a leve dor se transformou em forte dor, o que me custou lágrimas e a vontade de gritar por ajuda. Dali eu não conseguiria mais passar. Se apenas sentada no chão o corte já dói, se eu tentar ficar de pé vai ser pior ainda.

     ★Dica 21 = Não corra descalço principalmente se estiver fugindo de vigias noturnos.★

     Eu queria uma maneira de chamar o Abridor de Malas para minha direção, mas se eu gritasse, teria risco de chamar a atenção dos vigias. Tudo que eu conseguia fazer era usar toda minha força para conter os terríveis e altos gemidos de dor.

     Depois de pouco tempo, ele pareceu notar minha falta e olhou para trás. Quando realmente viu aonde eu estava, veio correndo em minha direção.

     Ele se aproximou rapidamente e quando chegou perto suficiente, percebi que estava ofegante. Antes mesmo de eu ter tempo para dizer algo, ele sussurrou:

     — Você tinha que cair justamente agora?

     — Desculpa, mas eu estou machucada. Não tem como continuar. Pode ir sem mim. Um dia a diretora ia descobrir isso mesmo.

     Um sorriso brotou em seu rosto. Não entendi o motivo e não estava com muita cabeça para perguntar, felizmente, ele disse:

     — Pode deixar que não vai ser hoje que ela vai descobrir.

     Eu não esperava por isso, mas ele me pegou no colo e me carregou — mesmo sendo um pouco pesada — até seu quarto. No caminho, minha cabeça se encheu de dúvidas. Por que, exatamente, ele não quer que a diretora descubra? Sou aluna nova, não faria muita diferença na minha vida. Talvez ele possa ser alguém confiável e queria mostrar isso a mim... Ok, ainda não consigo vê-lo como confiável.

     Em seu quarto, ele me deitou no chão — eu queria que fosse cama, mas tudo bem —, pegou seu travesseiro e deitou minha cabeça. O quarto estava uma escuridão total. A única fonte de luz era uma pequena parte da janela que não foi coberta pela cortina. Foi até meio complicado quando ele foi colocar o travesseiro debaixo da minha cabeça.

     — Essa foi por pouco. Quase fomos pegos. — Mesmo a luz sendo pouca, consegui ver que ele movia a cabeça de um lado para o outro, parecendo preocupado. É claro que ele deveria estar assim, se o colega de quarto dele acorda e nos vê, nossa situação iria ser mais complicada do que já está.

     — Obrigada — agradeci.

     — Pelo o quê?

     — Por... Digamos que você me salvou. Achei que me deixaria lá pra poder se safar com mais facilidade.

     — Hm. Sabe, posso ser um idiota, como diz você, mas achei que foi o certo ter voltado. — Ele deu de ombros.

     Eu apenas dei um sorriso, embora acho que ele nem viu. Ele estava ocupado demais vendo se o colega de quarto dele tinha a possibilidade de acordar logo. Depois de alguns minutos ali, parada, observando-o, lembrei o verdadeiro motivo de eu tê-lo seguido até aqui.

     — Me diz: por que minha blusa está aqui?

     — Você ainda insiste com isso?

     — É claro que sim. E espero que meu pé machucado não tenha sido em vão.

     Ele suspirou longamente. Percebi que ele estava tentando fazer o que eu tinha tentado fazer pouco tempo depois dele sugerir a idéia de eu vir pra cá. Ele queria que o tempo passasse pra não ter que dizer nada, mas já tentei e é totalmente inútil.

     — Diga. — Sentei com dificuldade por causa do pé.

     — Porque eu queria costurar pra dar a minha namorada. — Ele tapou o rosto com as mãos.

     — Você? — Eu não sabia se ria ou ficava surpresa. Bom, meu cérebro escolheu rir. Não posso acreditar que ele queria costurar. Não que eu duvide da capacidade masculina de fazer esse tipo de coisa, mas isso não é normal. Pelo menos isso não acontecia na cidade em que eu morava.

     — Se você for rir de mim, faça isso baixo. Esqueceu que não sou o único que durmo aqui? — Ele tapava minha boca com uma de suas mãos. Pode parecer estranho, mas gostei de a mão dele ter tapado minha boca.

     — Desculpa, não consegui me segurar. É que é meio estranho ouvir isso de um garoto como você. Quer dizer, não tenho nada contra, mas porque não pediu pra alguém fazer isso?

     — Bom, é que... Ah, me deixe fazer as coisas sozinho. — Ele sacudiu a cabeça e revirou os olhos.

     — Tá, calma. O que conseguiu fazer até agora?

     — Espera.

     Ele se levantou e pareceu procurar dentro de algumas gavetas minha blusa. Não demorou muito e ele voltou a se sentar do meu lado. Quando ele me entregou a blusa, usei a pouca luz para tentar enxergar o que ele tinha feito. Fiquei embasbacada quando realmente vi. Minha blusa parecia que nunca tinha sido rasgada. Não pode ser possível que ele fez isso sozinho. Ele deve ter comprado outra blusa, só pode. Nenhuma costura pode ser capaz de restaurar tão perfeitamente uma blusa arruinada.

     — Foi você mesmo que fez? — perguntei quase não acreditando no que meus olhos estavam vendo.

     — Foi sim. É que quando eu era pequeno, minha mãe me ensinou a costurar, mas não conte a ninguém. Isso não é o tipo de coisa que você... deveria saber. Promete que não conta?

     — Talvez — respondi.

     — Talvez?

     — Sim, talvez.

     — Por que talvez?

     — Porque foi o que você me disse quando te pedi pra guardar segredo sobre as minhas calcinhas.

     — Ta bom, eu vou guardar o segredo.

     — Agora que eu tenho um segredo seu? Nem pensar.

     — Não seja cruel, lembra que eu te salvei.

     — Isso não ajuda em nada. Amanhã eu vou levar um grande castigo por sua culpa! — quase gritei.

     Imediatamente ele tapou minha boca. Acho que exagerei um pouco em quase ter gritado. Quer dizer, sei que ele teve muita culpa por eu ter que ficar de castigo amanhã, mas isso não era motivo pra quase gritar e encrencar nós dois mais ainda. Melhor eu aprender a me controlar.

     — Fale mais baixo. Ou prefere levar outro castigo?

     — Não importa, apenas devolva a minha blusa. Foi apenas pra isso que vim até aqui. Eu só quero minha blusa de volta.

     — Eu não. Quem costurou ela foi eu.

     — E quem comprou ela foi eu.

     — Se você pegar a blusa o que posso dar pra minha namorada?

     Comecei a pensar. Ele tinha razão. Eu sei que não é certo roubar a blusa dos outros, mas me bateu uma pena dele. Eu não queria que ele se desfizesse da blusa que ele daria a namorada, porém, não queria ficar sem minha blusa favorita.

     Não demorou muito e logo me veio a solução:

     — Posso fazer uma troca com você? — perguntei.

     — Que tipo de troca?

     — Eu pego minha blusa de volta e eu te dou essas duas que estou usando. Assim nós dois podemos sair ganhando.

     — Pode ser. — Ele dá de ombros.

     Ainda bem que hoje não estou usando as blusas que goste muito. Por mim, daria essas blusas pra qualquer pessoa.

     Eu comecei a tirar minha blusa, ficando só de sutiã. Sabe, diário, eu sei que é impróprio ficar apenas de sutiã pra um garoto desconhecido que conheci quando abriu minha mala de calcinha, mas não posso levantar e não tenho tempo — nem pé — pra ficar com frescura. E quer saber, diário, eu fiquei totalmente sem blusa e sutiã hoje de manhã. Acho que ficar de sutiã agora não faz muita diferença.

     Quando terminei de tirar a blusa, percebi que ele olhavapra mim do mesmo jeito que eu tinha olhado pros olhos dele quando estávamos lá no pátio, andando sem rumo.

     — O que você está olhando? — indaguei, arqueando um pouco uma de minhas sobrancelhas.

     — Nada de mais. — Ele deu de ombros.

     — Espero que não seja “nada de mais” mesmo, senão você vai sair daqui cego, entendeu?

     — Claro. Eu entendi. — Ele apenas sorriu e, por um momento, decidiu olhar nos meus olhos. Depois de alguns segundos, ele se encostou no que eu julguei ser sua cama por estar vazia e começou a olhar pro teto, abraçando seus joelhos. Eu daria tudo pra descobrir no que ele estava pensando.

     Vesti minha blusa favorita novamente. Eu estava morrendo de saudade dessa blusa. É tão bom tê-la de volta e, melhor ainda, ela está novinha.

     — Feliz? — perguntou ele quando percebeu que eu já havia colocado-a. Mas não me olhava. Continuava vidrado no teto.

     — Você não sabe quanto! Eu estava morrendo de saudade dela!

     — Mas você só ficou algumas horas longe dela. E também, é apenas uma blusa.

     — Que parte de “minha blusa favorita”, você não entendeu?

     — Nunca me disse que era sua blusa favorita.

     Ele deixou de abraçar os joelhos e olhou pra mim. Ele parecia querer saber mais.

     — Sério? Então estou dizendo agora — digo.

     Tudo ficou em silêncio por um tempo. Até que ele levantou mais uma vez e sumiu no escuro. Ouvi um zíper se abrindo e várias coisas se mexendo. Acho que ele deve estar procurando alguma coisa.

     — Ah, sabia que você estava aqui. — Depois dele ter dito isso, vi uma luz na minha cara. É claro, uma lanterna.

     — Será que dá pra não me deixar cega? — Eu tentava tapar a luz branca que vinha no meu olho, mas era quase inútil.

     — Ok. — Ele a desligou e se sentou do meu lado mais uma vez. — Você acha que eu estava brincando? — Ele reacendeu a lanterna nos meus olhos.

     — Brincando? Do que está falando? — Tentei pegar a lanterna de suas mão, mas ele foi mais rápido.

     — Quando eu disse que seus olhos eram bonitos. — Novamente ele a desligou. — Quer dizer, não é todos os dias que temos a oportunidade de ver alguém com olhos negros.

     — Pelo que eu saiba, a maioria das pessoas tem olhos pretos. — Voltei a deitar no travesseiro, depois de ter fracassado em tomar a lanterna da mão dele.

     — Não. A maioria das pessoas tem olhos castanho-escuro, os seus são realmente negros. Gosto disso.

     — Ah, valeu. Mas eu os odeio.

     Ele riu.

     — É sempre assim. Sempre odiamos o que temos.

     — Pois é, ninguém dá valor ao que tem...

     — ... até perdê-lo — completou meu pensamento.

     Ele pareceu entrar em seu modo pensativo mais uma vez, porque não ouvi mais nada além de sua respiração. Eu não tinha muita coisa a dizer, então permaneci calada, até que ele tivesse algo a acrescentar.

     — Ah, que droga! — exclamou ele em baixa voz, enquanto colocava a lanterna ligada perto da porta. Não entendi muito o por quê desse ato.

     — Que foi? — perguntei meio confusa.

     — Seu sangue. Quando vierem limpar esse quarto amanhã, é capaz de suspeitarem.

     — É apenas sangue.

     — As coisas aqui são meio diferentes. Tipo, quando uma pessoa se machuca aqui no colégio, elas são obrigadas a ir para a enfermaria e lá eles fazem registro. Quando vierem limpar o quarto e virem que ninguém aqui está com nenhum tipo de ferimento, vão procurar por todos os quartos todas as pessoas feridas e conferir se cada uma delas tem registro.

     — E se não tiver...?

     — Bom, ou a pessoa é expulsa ou apenas tem que cumprir algum castigo. Expulsar alunos é uma coisa meio rara. Não querem adquirir má fama. Mesmo assim, os castigos que eles dão não são os melhores. Mas não estou afim de ser pego e tenho certeza que você também não.

     — De maneira alguma. — Sacudi a cabeça. Eu queria muito ter um plano.

     Pensei, pensei e pensei, e me veio um plano um tanto genial a cabeça.

     — Me dê sua mão. — Estendi a minha, esperando que ele não questionasse meu pedido.

     — Pra quê? — Não sei como ainda tinha esperanças de que ele não fizesse nenhuma pergunta.

     — Apenas me dê a sua mão. Eu tenho um plano.

     Depois de exigir um pouquinho mais, de maneira hesitante, ele estendeu sua mão. Quando a segurei, percebi que ele estava tremendo um pouco. Eu não sei se era por minha causa ou se era apenas o nervosismo de seu colega de quarto acordar ou que alguém entrasse pela porta.

     Com minha unha, fiz um corte o mais fundo que consegui na mão dele. Logo começou a sangrar.

★Dica 22 = Mantenha a unha afiada. É muito útil em situações como essas.★

     Meu plano havia dado certo. Só espero que ele seja esperto o bastante para inventar uma mentira para explicar como foi que se cortou durante a noite. Se ele me fez ficar de castigo apenas contando uma mentira, consegue fazer isso nesse caso. Ele não deve ser burro ao ponto de nos entregar.

     — Mas que diabos de unha afiada é essa? — perguntou ele um tanto assustado.

     — É a minha unha — afirmei rindo de seu espanto. —  Agora ninguém vai suspeitar de nada.

     — Devo admitir que foi uma boa ideia.

     Respondi ao seu elogio apenas com um sorriso. Depois repensei se era assim que eu deveria tê-lo respondido. Ele nem deve ter visto meu sorriso.

     Nós ficamos conversando mais algumas bobagens e pegamos no sono. Quando isso aconteceu, era mais ou menos duas da madrugada. Talvez esta noite não tenha sido tão ruim assim quanto eu imaginava. Gostei de conhecê-lo.

     Dormimos ali mesmo no chão.

23 de Março de 2014

     Quando acordei, eu estava virada pra direita. Seus braços estavam entrelaçados um pouco acima da minha cintura. Dividíamos o mesmo travesseiro, então eu podia ouvir sua calma respiração com facilidade. Depois de alguns segundos, senti o leve cheiro de um gostoso perfume masculino. Nós estávamos de mãos dadas e... Espera: mãos dadas?Que coisa absurda é essa? Nossas mãos estavam perfeitamente encaixadas. Ok, acho que isso entra na minha lista de coisas estranhas que me acontecem três dias depois de eu ter chegado nesse colégio.

     Eu não acredito nisso. É tudo culpa de... de... de... Alguém. Como eu posso ter acordado desse jeito? Eu precisava sair dali, mas... estava tão confortável. Ficar ali mais um tempinho não era crime, não é, diário?

     Infelizmente, ele acordou pouco depois de eu ter me acomodado. Quase nem deu para aproveitar esse momento, o que me deixou meio frustrada.

     — Você está acordada tem quanto tempo? — perguntou ele enquanto retirava seus braços de mim e bocejava.

     — Eu acabei de acordar — menti. Não queria me entregar.

     Virei de barriga para cima e encarei o teto até ter coragem de dizer:

     — Você fez isso de propósito?

     Virei-me novamente de lado, mas dessa vez para encará-lo.

     Como tudo permaneceu calado, resolvi tentar explicar:

     — Sabe, me abraçou enquanto eu dormia. — Senti minhas bochechas corarem. Eu não devia ter perguntado isso.

     Ele sorriu e encarou o teto.

     — Talvez.

     — Droga, lá vem você com esse “talvez” de novo! — Não sei porque, mas me deu uma certa vontade de lhe dar um soco. Ele parece estar brincando comigo.

     — Relaxa, tá? Só tenha certeza de uma coisa: nada é por acaso.

     Eu realmente não deveria ter perguntado. Com a claridade da manhã, ele deve ter percebido o quanto estou corada. Mesmo que tenha percebido, não disse nada sobre o assunto.

     — Pode ir embora agora se quiser. Já está de manhã, tem a sua blusa de volta e consegue andar.

     Não era bem o que eu queria ter ouvido. Aliás, nem sei porque me importo com isso.

     — Eu sei, estou indo — falei.

     Me levantei e senti uma pontada de dor no meu pé machucado. Ignore-a e eu sabia que mais tarde, daria uma passada rápida na enfermaria apenas para que eu me certificasse de que está tudo bem. Isso se eu conseguir lembrar.

     — É melhor ir mesmo antes que alguém suspeite de alguma coisa.

     — Sim, só preciso dos meus tênis — olhei tudo a minha volta —, onde eles estão?

     — Não sei. Não peguei.

     — Como posso saber se está falando a verdade?

     — Pra que eu pegaria seu tênis?

     — Não sei, e você repetiu a mesma frase quando eu estava me ferrando com a diretora, o que o torna ainda menos confiável.

     — Mas eu não peguei. Juro. Você não lembra onde deixou?

     — A última vez que o vi, ele estava na minha mão lá no pátio e... Oh, não. Abridor de Malas, acho que não tenho dúvida de que ele estava lá.

     — Você ficou doida de ter deixado no pátio? — disse ele desesperado —  Agora que vão suspeitar mesmo.

     — Foi sem querer. Quando você me levantou, eu devo ter deixado cair.

     — Que droga! Estamos ferrados... estamos ferrados... estamos ferrados... — seu desespero ainda estava nas alturas.

     Eu dei um tapa na cara dele.

     — Para de repetir isso. Eu vou sair por aquela porta e vou pegar meus sapatos. Tudo vai ficar bem.

     Enquanto eu caminhava em direção a porta, ele segurou meu braço e disse:

     — Desde quando me chama assim?

     — O quê? Abridor de Malas?

     — É.

     — Tem um tempo... Te incomoda?

     — De certa forma, achei um misto de estranho e legal. Pode continuar me chamando assim se quiser.

     Assenti e continuei a andar. Agora ele tem um apelido. E pareceu gostar da minha estranha criatividade. Na realidade, nem sei de onde tirei esse apelido estranho. Mas confesso ser divertido pronunciar o apelido dele. Me faz lembrar o quanto foi um idiota por ter aberto minha mala.

     Eu saí pela porta, sendo mais discreta possível, porém, aquela coisa da diretora estava por lá. Gelei quando terminei de fechar a porta e me encontrava a poucos centímetros dela. É claro que a diretora irá me fazer um interrogatório, por mais que eu rezasse em silêncio.

     ★Dica 23 = Se você tiver que fugir de alguém e é obrigado a passar por um corredor, verifique se não há ninguém, antes de ir entrando.★

     — O que está fazendo aqui, mocinha? — perguntou a diretora.

     Uma raiva surgiu em mim. Eu não consigo suportar ser chamada de mocinha e já é a terceira vez que isso acontece aqui. Não quero ser vista como uma garotinha.

     — Pare de me chamar de mocinha, droga! Eu tenho dezessete anos! Nesse colégio não estudam “mocinhas”, estudam  ADOLESCENTES!

     ★Dica 24 = Nunca dê nenhum tipo de resposta a diretora, pois ela pode destruir a sua vida em um piscar de olhos.★

     — NUNCA GRITE COMIGO, ENTENDEU? OU POSSO FAZER COISAS MUITO PIORES QUE AQUELA PROFESSORA! — berrou ela.

     Ela fez com que eu me calasse. Eu queria continuar protestando e começar a fazer discursos em defesa aos adolescentes e de que eles não são mais crianças, entretanto, apenas abaixei a cabeça e segui meu caminho. Arrumar mais uma confusão com a diretora só iria me deixar pior.

     Devagar e ainda assustada com a diretora, saí do prédio dos meninos e caminhei um pouco tensa pelo campus em direção ao prédio feminino. Diário, confesso que a última pessoa que eu esperava que estivesse no corredor onde exatamente fica o quarto do Abridor de Malas, era a diretora. Estou falando sério quando digo que eu esperava até a Betânia. Esperava qualquer pessoa. Menos a diretora.

     No meio do campus, olhei ao redor do local onde eu havia caído e até mesmo a pedra em que eu havia machucado meu pé — ali ainda estava meu sangue, só que seco. Procurava e procurava todos os lugares, mas nenhum sinal deles. O que será que aconteceu com os meus tênis? Aposto que descobriram. Quer saber, nem preciso apostar comigo mesma, porque eu já sei que é verdade e não posso mais negar. Sabe-se lá aonde estão eles agora.

      Persistente, continuei a procurar durante o dia todo, até o pôr-do-sol. Depois que o céu alaranjado já estava quase se tornando de um azul denso, desisti e voltei pro meu quarto.

     — Eu sabia! — exclamou Betânia quase pulando em mim.

     — Do que você está falando?

     — Apenas entre e feche a porta.

     Foi o que eu fiz.

     — Agora pode me explicar do que você está falando? — pergunto.

     — Sim, eu posso: você gosta dele!

     Mais uma vez senti meu corpo gelou. Acabei de virar uma estátua humana. Como ela pode saber do meu segredo super pessoal? Quer dizer, não estou dizendo que gosto dele, mas como ela pode suspeitar de algo do tipo, sem ao menos saber sobre meus pensamentos? Sem ao menos saber qualquer segredo meu?

     — Do que está falando, sua doida? — perguntei, tentando disfarçar meu desespero.

     — Você gosta daquele garoto!

     — De onde tirou essa ideia ridícula? E de qual garoto você está falando?

     — Do seu diário. E não se finja de sonsa, porque eu sei que você sabe de quem estou falando.

     ★Dica 25 = Nunca deixe seu diário sozinho, pois pessoas curiosas como a Betânia podem querer descobrir algumas coisas.★

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