Max Fos
Os documentos que pedi ao RH finalmente chegaram. Enquanto os analisava, algo mexeu profundamente comigo. Priscila. O tanto que ela trabalhou nesta empresa ao longo dos anos era impressionante. As horas extras, os projetos, as noites viradas... Tudo isso só reafirmava algo que eu já sabia: ela não era apenas mais uma funcionária. Ela era a espinha dorsal de tudo que construímos aqui. E então me veio uma certeza que há dias vinha rondando minha mente: não podemos abrir a filial no Canadá. Não sem ela. Decidi chamar meu pai para uma reunião urgente. Precisávamos conversar. Enquanto o esperava, continuei analisando os papéis. Algo chamou minha atenção: em 14 anos, Priscila só apresentou sete atestados médicos. Sete, em toda uma vida dedicada a esta empresa. Isso já era impressionante. Mas havia um atestado em particular que me deixou intrigado. Trinta dias afastada. A data... era daquela época. Eu estava fora, mas nós estávamos juntos. E ela nunca mencionou nada disso. Por quê? Peguei o atestado para olhar mais de perto. Lá estava o código CID: 003. A curiosidade me corroeu. Abri o celular para pesquisar o significado, mas antes que pudesse digitar qualquer coisa, a porta do escritório se abriu com força. Meu pai entrou, com aquele olhar de autoridade que sempre carregava. — O que aconteceu nesta empresa hoje? — ele perguntou, a voz grave preenchendo a sala. Coloquei o celular de lado e respirei fundo. — O Salles te ligou, não foi? — Foi. Ele disse que você surtou e demitiu o Felipe. E ainda por justa causa. — Foi exatamente o que eu fiz — respondi, direto. Peguei meu celular e abri as fotos que Felipe tinha enviado. Mostrei para ele. — Ele mandou essas fotos íntimas da Priscila. Ela saiu no domingo com o Liam, foram à praia, e ele usou isso como desculpa para expô-la. Meu pai pegou o celular, analisando as imagens em silêncio. Vi o desapontamento crescer em seu rosto. Finalmente, ele falou: — E o Salles? Não tomou nenhuma providência? — Ah, tomou — respondi, com um riso seco e amargo. — Chamou a Priscila para reclamar. Disse que ela não deveria ter levado o Liam. Como se a culpa fosse dela. Meu pai balançou a cabeça, incrédulo. Antes que ele pudesse dizer algo, continuei: — Olha, pai, vou ser direto. Vou demitir a Priscila. — O quê? — Ele franziu a testa, a irritação transparecendo. — Você está falando sério? Vai demitir a melhor funcionária dessa empresa por ciúmes? Tome vergonha na cara, Max! — Não é ciúmes! — Eu me levantei, a frustração transbordando. — A Priscila recebeu uma proposta incrível. Uma chance de recomeçar. Eu não quero que ela fique aqui por minha causa. Ela já fez a escolha dela, eu sei disso. Mas, se ela pedir demissão, vai perder benefícios importantes. Então, vou facilitar as coisas para ela. Vou demiti-la com todos os direitos. Meu pai me encarou por alguns instantes, tentando decifrar o que se passava em minha cabeça. Por fim, suspirou, cansado. — Você só pode estar louco... — Não, pai, eu não estou louco — rebati, firme. — Sei que sem a Priscila todo o investimento na filial do Canadá vai por água abaixo. Mas estou pensando nela. — Max... — Pai, a empresa deve ser prioridade, eu sei disso. Mas não acima da mãe da minha filha. Olhe isso aqui. — Joguei os documentos na mesa. — Olhe o tanto que essa mulher já fez por nós. O Felipe nem deveria ter sido cogitado. Ela sempre foi a escolha certa, mas esta empresa sempre diminuiu ela. E agora o senhor quer que eu diga para ela deixar passar a oportunidade dos sonhos dela pelo bem da empresa? Eu respirei fundo, tentando controlar a raiva que pulsava dentro de mim. — Sinceramente, a pergunta que eu deveria estar fazendo é: tem lugar para mim nesta sociedade? Porque esta empresa não tem nada a ver comigo e com os meus valores. Meu pai me olhou, sério, mas também com algo mais no olhar. Um misto de surpresa e, talvez, compreensão. Mas ele não disse nada. O silêncio entre nós era ensurdecedor. — Pai, já está na hora de parar de seguir o que os acionistas querem, a Priscila sempre foi a melhor funcionária e o salário dela não é proporcional, e quantas vezes eu falei que o tratamento com ela não era correto e o senhor não ouviu a Priscila trabalhou em um semestre mais que o próprio Salles em um ano A Priscila é responsável por mais de 68% dos nossos contratos e 50% deles só aceitam trabalhar com a Priscila, já o Felipe é responsável por 15% dos nossos contratos e nenhum que trabalha exclusivamente com ele está vendo o abismo que o separam?— falei e o meu pai estava chocado. — O Salles sempre me apresentou outros números que o Felipe... — O Salles sempre me apresentou outros números sobre o Felipe — meu pai começou, tentando justificar. — Ele te apresentou números manipulados! — interrompi, com firmeza. — E eu posso provar. Aqui estão os relatórios reais, pai. — Peguei os documentos que estavam sobre a mesa e empurrei para ele. — Leia. Compare. O Felipe é incompetente e foi protegido pelo Salles durante anos. Enquanto isso, a Priscila carregava essa empresa nas costas. Meu pai pegou os papéis, leio com antecedência. Meu pai fechou os documentos e me encarou por um longo momento. Então, para minha surpresa, ele abriu um sorriso discreto, algo que eu raramente via. — Finalmente, Max. É a primeira vez que vejo você realmente se interessar por esta empresa. — Sua voz não carregava o tom crítico de antes, mas algo que parecia orgulho. Eu o encarei, sem saber ao certo como responder. Ele sempre me acusava de ser desligado dos negócios, mais interessado em minhas viagens e na minha vida pessoal do que na responsabilidade de levar adiante o legado da família. — Não é a empresa, pai — respondi, sincero. — É a Priscila. Ele riu baixinho, balançando a cabeça. — E talvez isso seja o que a empresa precisava para ganhar sua atenção. — Pai, não pense que isso muda o fato de que houve erros graves aqui. E eu não estou aqui para perpetuar as falhas do passado. — Nem eu deveria estar, filho. — Ele suspirou e se recostou na cadeira. — É fácil perder o foco quando se administra algo tão grande. E, às vezes, deixamos as pessoas erradas no controle. Meu pai parecia mais humano naquele momento, parecia o meu pai, o avô babão. Havia algo em seu olhar que eu não via há anos no escritório: sinceridade. Ele suspirou, cruzando as mãos sobre a mesa antes de me olhar novamente, dessa vez com seriedade. — Vou lidar com o Salles. E, quanto à Priscila, eu mesmo vou garantir que ela receba o devido reconhecimento pelo que fez por esta empresa. Não podemos desfazer o que foi feito, mas podemos corrigir o rumo. A firmeza em sua voz me surpreendeu. Por um momento, parecia que estávamos no mesmo time. Um silêncio breve pairou entre nós antes que ele acrescentasse: — Sua mãe... Ela nunca aprovou essa proximidade sua com a Priscila. Sempre achou que você deveria se envolver com alguém "mais adequado", mas só virou o homem que é hoje graças a ela. Franzi o cenho, tentando entender. — Minha mãe, no começo, gostava da Priscila... Meu pai balançou a cabeça lentamente, como quem desmente algo com pesar. — Não, filho. Sua mãe sempre odiou a Priscila. Desde o dia em que fomos ao hospital, ela falou coisas horríveis sobre a garota e sempre reclamava de eu permitir que ela ficasse ainda mais presente na sua vida. Engoli em seco. Aquilo me pegou de surpresa. Minha mãe sempre parecera gostar muito da Priscila. Sempre foi fofa com ela, acolhedora até. A lembrança de momentos calorosos entre elas fez meu estômago se revirar. — Mas... Quando eu fui para os Estados Unidos, ela cuidou da Priscila... — argumentei, mais para convencer a mim mesmo do que qualquer outra coisa. Meu pai inclinou-se para frente, como quem se preparava para uma revelação difícil. — Você tem certeza de que ela cuidou? Suas palavras pairaram no ar como uma bomba prestes a explodir. Fiquei em silêncio, digerindo aquilo. Pela primeira vez, senti que meu pai estava me vendo como um homem, e não apenas como o filhinho que ele precisava proteger. Eu me levantei, decidido. O peso de tudo parecia menor quando tomei aquela decisão. — Então vamos corrigir isso, pai. Começando agora. Um sorriso surgiu em seu rosto. Não era o sorriso calculado de um empresário que havia conquistado algo. Era o sorriso de um pai que finalmente via seu filho tomar as rédeas. Ele também se levantou, colocando a mão em meu ombro. — Estou com você, Max. Quando ele saiu para resolver o que precisava, senti o silêncio voltar, mas dessa vez não era opressor. Caminhei até minha mesa e abri a gaveta, pegando um porta-retrato. Nele, o sorriso radiante de Vick me encarava. Há 15 anos, ela se foi. Quinze anos sem aquele riso contagiante, sem sua luz que fazia tudo parecer mais simples. — Eu não te protegi... Mas não vou cometer o mesmo erro com as minhas meninas. — Minha voz soou baixa, quase um sussurro, enquanto eu acariciava a moldura com os dedos. — Ah, Vick... Eu sinto tanto a sua falta. O tempo não apagou a dor, mas havia algo reconfortante em ver seu rosto. Aquele sorriso... Era o mesmo que me fazia lembrar da Nina. Minha filha sorria exatamente do mesmo jeitinho, com a mesma luz. — Você ia ser uma tia muito boba com a Nina — murmurei, enquanto um sorriso melancólico surgia no meu rosto. Quando coloquei o porta retrato na mesa eu vi o atestado da Priscila e peguei o meu celular e entrei no site de busca, e quando pesquisei CID 006 Quando li aborto não especificado o celular caiu da minha mão e a minha boca estava aberta. O mundo parecia ter parado. Meu corpo inteiro ficou imóvel, congelado em uma mistura de choque e dor que eu não sabia como processar. O atestado ainda estava ali, inofensivo e amarelado pelo tempo, mas agora carregava um peso que eu não sabia se conseguiria suportar. Aborto. As palavras ecoavam na minha mente como um trovão incessante. Eu sabia que Priscila tinha seus segredos, mas nunca imaginei algo assim. Pior ainda, durante aquele período, nós estávamos juntos. Era meu filho...ou filha. A possibilidade atravessou minha mente como uma lâmina afiada, cortando qualquer resquício de racionalidade que eu tentava manter. Minha respiração ficou pesada, meu coração martelando contra o peito. Ela estava grávida. E ela nunca me contou. Por quê? A dor veio em ondas, acompanhada de uma raiva que eu não sabia direcionar. Raiva de mim mesmo por não estar lá, por não perceber que algo estava errado. Raiva dela por esconder isso de mim. Raiva do mundo por ter permitido que ela enfrentasse aquilo sozinha. Peguei o celular novamente, as mãos trêmulas. Olhei para o atestado mais uma vez, como se precisasse confirmar o que já sabia. CID 006. Aborto não especificado. Por um momento, me vi de volta àquela época. Lembrei das mensagens dela que parecia está até mais fofa, mas do nada ela mudou até as chamadas que ela passou a ignorar, dos dias em que sua voz carregava um peso que eu não entendia. Quando ela se tornou tão fria. Mas não percebi. Meu olhar foi atraído de volta para o porta-retrato de Vick. Minha minha melhor amiga, que eu não pude proteger. Agora, a mesma culpa se agarrava a mim como uma sombra, só que desta vez era sobre Priscila... e o bebê que poderíamos ter tido. Fechei os olhos, tentando organizar os pensamentos. Priscila sempre foi forte, teimosa, mas agora tudo fazia sentido: o silêncio, as barreiras que ela erguia entre nós, as vezes em que parecia fugir de qualquer possibilidade de reconexão. Ela carregava esse segredo o tempo todo. Sozinha. Mas por quê? Não confiava em mim? Ou será que foi algo mais profundo? Algo que eu ainda não compreendia? Peguei o celular novamente e, sem pensar duas vezes, disquei o número dela. O telefone chamou uma, duas, três vezes. Meu coração batia tão forte que parecia que iria sair pela boca. Quando a ligação caiu na caixa postal, joguei o celular na mesa, frustrado. Eu precisava falar com ela. Levei as mãos ao rosto, tentando controlar a avalanche de emoções. As memórias de nós dois juntos invadiram minha mente: as noites de estudo na faculdade, os sorrisos trocados, os planos que fizemos, mesmo que nunca tivessem se concretizado. E agora isso. Levantei-me de repente, incapaz de ficar parado. Peguei o atestado e o guardei no bolso do paletó. Eu precisava de respostas. Precisava olhar nos olhos de Priscila e entender tudo. Por que ela não me contou? O que aconteceu de verdade? E... quem a fez passar por isso? Porque, no fundo, eu sabia. Priscila não faria essa escolha sozinha, não sem motivos devastadores. Algo ou alguém a levou até essa decisão. E, de alguma forma, eu ia descobrir. Peguei as chaves do carro e saí do escritório com um propósito claro. Eu não sabia como essa conversa terminaria, mas uma coisa era certa: eu não podia mais viver sem a verdade. ©©©©©©©©©© Continua...Priscila BarcellaFui até o parque próximo à empresa, ansiando por um pouco de paz em meio à correria do dia. Assim que cheguei, tirei os saltos, sentindo o alívio imediato ao colocar os pés na grama fria e macia.Com Nina nos braços, caminhei até um espaço coberto e me acomodei ali. Cuidadosamente, a coloquei no chão. Bastou um segundo de liberdade para que ela puxasse um punhado de grama e tentasse levar à boca.— Filha! — chamei, rindo enquanto tirava a grama de seus dedinhos rápidos.Mas ela, sem se abalar, já estava puxando outro punhado, com a mesma determinação de sempre.— Você é teimosa como a mamãe, é? — perguntei, sorrindo com uma mistura de exasperação e ternura.Ver Nina descobrir o mundo, mesmo nos pequenos detalhes como a grama, fazia meu coração se encher de alegria. Por alguns instantes, todo o peso da vida parecia sumir.Ficamos ali por quase duas horas. Nina estava encantada com o movimento ao seu redor, observando as crianças que corriam e gargalhavam. Quando vi um
MaxMinha mente girava, como se estivesse presa em um redemoinho de desespero. As palavras dela ecoavam como um grito abafado no fundo da minha alma. O que ela estava dizendo parecia impossível. Cruel demais para ser verdade.Se realmente o aborto não foi espontâneo, o que tinha acontecido? A gravidez já estava tão avançada…— Como assim? — Minha voz saiu trêmula, quase inaudível, enquanto eu dava um passo à frente, tentando encontrar alguma explicação nos olhos dela.Mas os olhos da Priscila só devolveram dor. Uma dor tão crua e avassaladora que me deixou sem ar. O silêncio dela foi como um soco, uma pancada que tirava qualquer resquício de chão sob meus pés.Quando finalmente falou, cada palavra foi uma lâmina afiada rasgando meu peito.Ela caminhou até o sofá e sentou-se, meio tonta, ao lado do cercadinho onde Nina dormia tranquila, alheia à tempestade que nos envolvia. Priscila fechou os olhos por um momento, como se precisasse reunir forças para continuar. E quando os abriu, sua
Priscila Barcella Eu me sentia sufocada, como se todo o ar ao meu redor tivesse sido roubado pela conversa com Max. Cada palavra que ele disse parecia carregar o peso do mundo, esmagando qualquer força que eu ainda tentava sustentar. Minhas pernas mal obedeciam quando me sentei no sofá, e uma tontura inquietante me tomou. Ao vê-lo subir as escadas com as duas bebês nos braços, uma sensação avassaladora de impotência tomou conta de mim. Tudo parecia fora de controle, distante do meu alcance.— Você está pálida — comentou Rafaela, sua voz embargada pela preocupação. Sem esperar por uma resposta, ela foi até a cozinha e voltou com um copo de água.Eu tentei agradecê-la, mas minha voz parecia presa na garganta. Peguei o copo com mãos trêmulas, percebendo só então como meus dedos mal conseguiam segurar o objeto. A água balançava, refletindo o turbilhão de emoções que eu tentava esconder.Rafaela sentou-se ao meu lado, mantendo uma distância respeitosa, mas seus olhos revelavam o quanto qu
Priscila BarcellaDepois que a filha da Marta foi embora, subi para o meu quarto, sentindo o peso daquela cena ainda grudado em mim. Assim que entrei, fui direto para o banheiro. Enchi a banheira com água quente e mergulhei, deixando que a tensão do confronto se dissolvesse aos poucos.A água quente relaxava meu corpo, mas minha mente não parava. Marta. A forma como abaixava a cabeça, como aceitava tudo sem se defender, me atormentava. Ela era forte—eu sabia disso—mas aquele fardo emocional parecia estar esmagando-a, pouco a pouco.Não entendia como alguém podia ter a sorte de ter uma mãe como Marta e simplesmente não dar valor. Ela era generosa, amorosa, sempre colocando os outros à frente de si mesma. E, mesmo assim, para a própria filha, nunca parecia suficiente.Suspirei, afundando um pouco mais na água. Marta nunca desistiria dela. Porque mães têm esse coração teimoso, que continua amando, mesmo quando quem está do outro lado não merece.E talvez fosse por isso que Liam amava do
Max Fos Fiquei com as minhas filhas até a hora em que o Marcelo chegou da escola. Hoje, ele parecia mais animado do que o normal.— Tio! — Ele gritou assim que entrou, os olhos brilhando, o corpo pulando sutilmente no mesmo lugar, como se a energia precisasse sair de algum jeito.Sorri, já acostumado com essa recepção calorosa.— Oi, amigão. Como foi a escola hoje? — perguntei, mantendo o tom de voz leve, sem pressa, sabendo que ele gostava de responder no seu próprio ritmo.Ele mexeu os dedos no ar, como se estivesse contando algo invisível, antes de falar:— Foi muito divertido! Eu fiz uma amiga. A Ayumi. — Ele pausou, franzindo levemente a testa, organizando os pensamentos antes de continuar. — Ela gosta de EA Sports FC 25! E disse que eu posso jogar na casa dela!O entusiasmo na voz dele era contagiante, mas o que mais me chamou atenção foi o jeito como seus olhos brilhavam. Ele olhava para a estante de jogos, os dedos se mexendo no ar, como se estivesse revivendo a conversa com
Max Fos Saí de casa com o peito ardendo, a raiva pulsando tão forte que parecia um tambor incessante dentro de mim. Minhas mãos tremiam ao girar a chave na ignição, e o carro rugiu como se respondesse à tempestade dentro de mim. O ar parecia denso, pesado, como se o próprio mundo conspirasse para me sufocar.A imagem de Marina — não, ela não merecia mais que eu a chamasse de mãe — invadia minha mente como um fantasma que eu nunca conseguiria exorcizar. Seu sorriso sempre tranquilo, seu olhar afetuoso, seu toque delicado… tudo agora se revelava uma farsa grotesca, um teatro bem ensaiado para esconder a monstruosidade que pulsava por trás de cada palavra mansa.Eu confiava nela.Eu a amava.E ela matou minha filha.Ela destruiu um pedaço de mim antes mesmo de eu saber que existia.A lembrança desse crime me atravessava como uma lâmina quente, queimando até os ossos. O celular tremia na minha mão enquanto eu bloqueava cada cartão ao qual ela tinha acesso. Cada clique era uma sentença, c
Priscila Barcella Era mais um dia normal. Como sempre, acordo às 6:23 da manhã, levo aproximadamente 20 minutos para me arrumar e escolho roupas que transmitam o quanto sou poderosa.Saio do meu quarto preparada para enfrentar o mundo machista das torres de metal.Assim que chego no andar inferior, vejo a minha governanta terminando de organizar o meu café da manhã na mesa da sala de jantar, junto com duas funcionárias. Gosto das coisas sempre perfeitamente alinhadas, e ela me conhece muito bem.Antes de chegar à mesa, olho pela grande janela de vidro da minha cobertura, de onde posso ver a enorme cidade cinza. Assim como lá fora, dentro do meu apartamento a decoração é toda em tons frios, pois tenho um amor pelo tom cinza e não queria nada convidativo.Quem gosta e tem peso morto é a minha irmã. Eu nunca a entendi, a Barcella sempre se contentou com pouco. Diferente de mim, ela não foi para a faculdade e muito menos quis sair daquele lugar no meio do nada. Na primeira oportunidade q
Priscila Barcella Depois de um voo de três horas e meia, aluguei um carro e dirigi por mais cinco horas, finalmente chegando em um pequeno povoado do município de Santo Antônio dos Milagres. A estrada era de terra e parecia que o tempo naquele lugar passava em câmera lenta e pouquíssimas coisas tinham mudado em 16 anos. As casas eram simples e a única diferença era nos fios de energia e novas construções, mas mesmo assim parecia existir apenas uma rua e uma praça como novidade.Fui devagar pela estrada de terra batida até chegar na casinha onde crescemos. Pouquíssimas coisas tinham mudado, mas a única diferença era que, além do reboco, a pequena casa estava pintada de branco, que já estava amarelada, com dois quartos. Apesar de ser bem diferente da minha cobertura, estar naquele lugar me causava arrepios, como se as paredes pudessem falar ou apenas de ver sentir os arrepios pelo meu corpo me pedindo para fugir daquele lugar.A casa estava cheia, e respirei fundo antes de sair do carr