Eram quase oito e meia da manhã quando Donavan despertou. O calor do corpo de Evelyn ainda envolvia seus sentidos, e a lembrança da noite maravilhosa de amor o fez sorrir. Há muito tempo não sentia aquela mistura de liberdade e autonomia. Com cuidado para não acordá-la, saiu da cama, calçou os chinelos e vestiu o roupão. Antes de sair do quarto, ficou ali, parado, admirando-a. Evelyn dormia tranquilamente, sua respiração suave, os fios de cabelo espalhados pelo travesseiro. Uma pontada no estômago o atingiu. O peso do passado sempre voltava, e ele se condenava por não ter contado toda a verdade a ela.
— Espero que um dia você me perdoe, minha Evelyn... Queria ter te conhecido antes das decisões que tomei — sussurrou, sua voz carregada de arrependimento.
Seguiu para a cozinha, sentindo falta dos cafés da manhã londrinos. Por mais que quisesse esquecer sua vida passada, certos hábitos eram difíceis de abandonar.
Enquanto preparava o café, Evelyn acordou ao escutar o leve barulho vindo da cozinha. Espreguiçou-se, ainda envolta na preguiça da manhã, e um sorriso surgiu em seus lábios ao sentir o aroma delicioso de café recém-passado e pão assando. A porta do quarto se abriu lentamente, e lá estava Donavan, com uma bandeja nas mãos. Vestia o uniforme do trabalho, mas era seu olhar — aquele olhar cheio de ternura — que aquecia seu coração.
— Bom dia, meu amor — disse ele, com um sorriso que ela conhecia tão bem.
Evelyn se ergueu um pouco na cama, os olhos brilhando. Donavan se aproximou, colocando a bandeja ao lado dela. Na xícara simples, um café fumegante, frutas frescas e fatias de pão dourado com manteiga derretendo.
— Você fez tudo isso para mim? — perguntou, emocionada.
— Não podia deixar você acordar sem um bom café da manhã. Além do mais, queria ver esse sorriso logo cedo — disse ele, tocando suavemente seu rosto.
Ela estendeu os braços, puxando-o para perto. Um beijo demorado selou aquele momento. Depois, aconchegada contra ele, pegou um pedaço de pão e levou à boca, fechando os olhos ao sentir o sabor.
— Nossa, que delícia esse pãozinho! Foi você quem fez?
Donavan assentiu com um sorriso orgulhoso.
— Só farinha, ovo e fermento. Uma receitinha que aprendi com um dos rapazes.
Ele pegou um copo de café, bebeu um pouco e suspirou. Levantou-se devagar, relutante em quebrar a magia daquele instante.
— Preciso ir. Solano me ligou perguntando se eu queria fazer um extra agora pela manhã.
Evelyn fez um leve biquinho de desapontamento, e ele riu, tocando seu nariz de leve.
— Não fique com essa expressão, precisamos do dinheiro. Mas estarei de volta para o almoço. Nem se preocupe em cozinhar, ainda temos o jantar de ontem.
Os dois riram juntos, cúmplices de uma vida simples, mas cheia de amor.
Assim que Donavan saiu, Evelyn se enroscou novamente entre os cobertores. Sentia-se feliz, plena. Suspirando, fechou os olhos e logo o sono chegou.
O som das batidas fortes na porta ecoou pela casa, arrancando-a bruscamente do sono. O coração acelerou. Por um momento, ficou paralisada, tentando entender o que estava acontecendo. Novamente, as batidas insistiram, firmes e urgentes. Rapidamente, levantou-se e cobriu o corpo nu com o roupão de Donavan. Caminhou até a porta, olhou pelo canto da vidraça e viu o xerife John Michaels parado na soleira. Uma sensação de presságio ruim percorreu sua espinha. Com o coração martelando no peito, abriu a porta.
— Bom dia, xerife. O que aconteceu?
O homem hesitou por um instante antes de falar, como se estivesse reunindo coragem.
— Bom dia, Evelyn. Desculpe te acordar dessa forma, mas o motivo é urgente. Seu marido sofreu um acidente de moto e foi levado às pressas para o hospital.
Ela levou as mãos à cabeça, sentindo uma vertigem tomar conta de seu corpo.
— Como ele está? Ele... está muito ferido? — Sua voz saiu trêmula, quase um sussurro.
— Sinto muito, Evelyn. A batida foi forte. Um rapaz bêbado dirigindo na contramão jogou a moto dele longe. Vista-se, vou te levar ao Providence Medical Center.
Dez minutos depois, Evelyn entrou na Unidade de Terapia Intensiva. Suas pernas bambearam ao ver Donavan deitado na cama, ligado a aparelhos. Seu rosto estava irreconhecível, pálido, com cortes profundos na testa e no queixo - a pele marcada por hematomas azulados, os lábios rachados e secos. Cada respiração vinha acompanhada de um gemido mecânico da máquina que o mantinha vivo. Um tubo saía de sua boca, fixado com esparadrapo em pele ensanguentada.
Com cuidado, ela pegou a mão dele entre as suas.
— Donavan, meu amor... estou aqui. Vai ficar tudo bem.
Ele apertou fracamente sua mão. Seus lábios começaram a se mover. Evelyn se inclinou, colocando o ouvido próximo à sua boca para entender as palavras soltas que escapavam de seus lábios.
— Perdão... capacete...
— Não se preocupe com o capacete, meu amor. Compramos outro quando você sair daqui — disse ela, as lágrimas escorrendo pelo rosto.
Ele repetiu com esforço:
— Capacete... perdão...
E então, com um último respiro, sussurrou:
— Eu te amo...
Os aparelhos começaram a apitar freneticamente. O som dos alarmes foi a última coisa que Evelyn ouviu antes de ser afastada pelos médicos. Minutos se passaram — uma eternidade para ela — até que um dos médicos se aproximou. Ele não precisava dizer nada. O semblante dele já dizia tudo.
— Não... — murmurou Evelyn, levando as mãos à boca.
— Sinto muito, senhora. Os ferimentos eram graves demais, quando a moto bateu, seu marido não teve chance. O trauma craniano foi imediato. ...
A voz do médico foi ficando distante, e tudo ao seu redor se apagou.
Diante do caixão de madeira escura, Evelyn estendeu a mão trêmula. O verniz gelado sob seus dedos a fez retrair - tão diferente do calor da pele dele na manhã de ontem. As lágrimas secaram antes mesmo de nascerem. Estava entorpecida, como se sua alma tivesse se separado de seu corpo. Em menos de vinte e quatro horas, havia ido do paraíso ao inferno. Ao seu lado, Beth, sua colega de trabalho, segurava seus ombros em um gesto de apoio silencioso.
Aos poucos, os colegas de trabalho de Donavn e alguns conhecidos de Evelyn foram deixando o cemitério. Beth a conduziu para casa, preparou um chá e ficou com ela por um tempo. Antes de ir, beijou sua testa e disse:
— Tire alguns dias para descansar. Já falei com o senhor Mariva, ele concordou. Se precisar, peço reforço.
Sozinha, Evelyn ficou ali, fitando o vazio. E então, finalmente, as lágrimas começaram a rolar, seguidas por um choro desesperado, carregado de dor. Chorou até o corpo se render ao cansaço e adormeceu.
3
O tempo passava lentamente, e Evelyn se arrastava com ele. Alguns dias depois, retornou ao trabalho, tentando esquecer sua dor. Mas a saudade rasgava seu peito a cada manhã, a cada vez que se levantava, e nas longas noites mal dormidas. Alguns fregueses a olhavam com dó, outros trocavam palavras de encorajamento. O xerife entrava todos os dias para tomar um café e perguntar como ela estava indo. "Conforme o tempo", ela respondia, agradecida, mas vazia.Os dias seguiam, e as contas começaram a se acumular. A conta do hospital, o aluguel da casa, as dívidas... Sem seguro e sem conseguir localizar o responsável pela tragédia, tudo estava se agravando. O dono da casa onde morava exigiu que ela desocupasse o imóvel. Sem alternativas, Evelyn retornou ao antigo quarto alugado, aquele lugar onde nunca imaginara que voltaria.Ainda fechada em sua dor, tentando lidar com a perda, algo inesperado aconteceu. Após um longo expediente na lanchonete, Evelyn desmaiou. A out
Os dias pareciam se arrastar na rotina árdua de Evelyn. Depois do telefonema que a abalou, ela havia decidido não fazer o aborto. Algo em seu interior dizia que os sobrenomes coincidiam por mais do que simples acaso. Havia algo mais por trás disso, algo que ela precisava descobrir. A verdade estava ao seu alcance, e ela sentia que não poderia ignorá-la.Era uma manhã comum, e Evelyn estava preparando o café, quando o som da campainha quebrou sua concentração. Um freguês havia chegado. Ela não se virou, mas, com a voz firme, falou:— Pode sentar, já irei atendê-lo.Ela viu Beth, a atendente mais velha, ajeitando os cabelos e passando batom, como sempre fazia antes de ir para o atendimento. Com rapidez, ela pegou o bloco de notas e foi até o cliente, mas retornou logo depois, com um olhar carregado de desagrado.— Ele quer ser atendido por você — disse, seu tom de incompreensão evidente. — E ainda falou o seu nome.Evelyn franziu a testa, um desconforto imediato a percorr
Lorde Reginald Alistair Ashbourne entrou na pequena delegacia da cidade com passos firmes e decididos. O lugar era simples, com poucas mesas e uma cela nos fundos. Um homem que estava preso olhou para ele, fez uma careta de desagrado e se virou, fechando os olhos contra a parede, como se preferisse ignorá-lo.O xerife, um homem de aparência robusta e já envelhecido, levantou os olhos e o observou de cima a baixo, tentando entender o que alguém tão bem vestido faria em uma cidade tão pacata como aquela.— Pois não, senhor? — perguntou, com um tom de curiosidade, avaliando cada detalhe do visitante.— Boa tarde, xerife. Meu nome é Sir Reginald Ashbourne — disse ele, com uma voz grave e autoritária. — Estou à procura de meu sobrinho... E, de acordo com a garçonete, o homem enterrado... — Ele hesitou, como se ainda tentasse acreditar no que estava dizendo. — Donovan Motter Ashbourne. Preciso que exumem o corpo para realizar um teste de DNA.O xerife levantou-se da
Após deixar o modesto quarto e cozinha de Evelyn nos arredores da cidade, Reginald se dirigiu ao hotel no centro. O quarto era simples, mas cuidadosamente limpo, com um leve aroma de lavanda no ar, quase suave demais para disfarçar o peso que ele carregava. Assim que trancou a porta, o alívio de estar sozinho foi quase palpável, mas a ansiedade em seu peito continuava a apertar. Ele se moveu até o frigobar, suas mãos trêmulas denunciando a tensão que há horas estava se acumulando. Abriu três garrafinhas de uísque de uma vez, sem hesitar, despejando o líquido ambarino em sua garganta com rapidez, tentando afogar a angústia que o devorava. Cada gole queimava, mas a sensação não era suficiente para acalmar o turbilhão dentro dele. O álcool descia queimando, mas a tensão nos seus músculos ainda estava lá, cravada como se ele não conseguisse se livrar da carga emocional que o sufocava.Um soluço inesperado escapou de sua garganta, vindo de um lugar profundo e inesper
Fazia quase duas semanas que Reginald tinha deixado a cidade. Evelyn sentia um alívio imenso, pensando que, depois da partida dele, sua vida voltaria ao normal. Doce engano.Beth, a garçonete que trabalhava com ela, insistia para que ligasse para a família de Donovan e exigisse dinheiro para comprar uma casa para ela e seu filho. Afinal, Reginald tinha dito que seu falecido marido era um homem muito rico. Mas Evelyn rebatia, dizendo que, se Donovan fosse realmente quem ele procurava, Reginald já teria voltado no dia seguinte para pedir autorização para exumar o corpo. O fato de não ter retornado a deixava com sentimentos conflitantes: um misto de alívio e decepção.Até mesmo seu antigo senhorio foi até a lanchonete, oferecendo novamente a casa onde morava antes. Ele sorriu, confiante, e disse que ela poderia pagar o aluguel quando recebesse a herança. Muito irritada, Evelyn respondeu que não havia herança alguma e que, em poucos meses, liquidaria sua dívida com ele
Evelyn Prescott Ashbourne ainda tentava absorver tudo o que havia acontecido nos últimos quatro meses. O primeiro encontro com Donovan ficaria marcado para sempre em sua memória. O casamento, sua morte súbita... Um frio percorreu seu corpo ao pensar na vida do marido sendo ceifada tão cedo. O telefonema, a vinda de Reginald... Tudo havia deixado sua vida de ponta-cabeça.Quem era o homem que estava dentro do caixão, sendo transportado em um avião particular luxuoso? Essa pergunta martelava sua mente enquanto olhava para seu vestido preto simples, que destoava gritante do ambiente sofisticado ao seu redor. Seus pensamentos foram interrompidos por uma voz feminina, de leve sotaque inglês.— Lady Ashbourne?O nome soou tão pomposo que Evelyn pensou que a comissária estivesse se dirigindo a outra pessoa. Mas não, era ela. Evelyn era a senhora Ashbourne. Não aquela senhora Ashbourne a quem a aeromoça se dirigia com tanto respeito, mas sim a viúva de um órfão.— A senhora dese
Depois dos cumprimentos e lágrimas. Evelyn foi conduzida para um dos quartos de hóspedes. O requinte e o luxo do ambiente contrastavam com seu vestido preto de algodão. Sobre a cama, repousava um vestido igualmente preto, lindíssimo e aparentemente muito caro. Ao tocá-lo, sentiu a maciez da seda. O tecido era tão fino que ela temeu danificá-lo com suas mãos ásperas, calejadas de tanto varrer o chão e torcer panos na lanchonete.A mãe de Donovan informou que haveria uma cerimônia no mausoléu da família, reservada apenas para parentes e amigos mais próximos. Evelyn procurou sua mala e a encontrou sobre uma cadeira. Mais uma vez, comparou sua bagagem simples com o ambiente ao redor e constatou como destoava daquele lugar.Mal terminou de lavar o rosto e passar um batom rosado nos lábios, uma batida suave na porta interrompeu seus pensamentos. Deixando o batom na pia do banheiro, foi atender. Do outro lado, um homem de aproximadamente sessenta anos, vestido com um unifo
A condessa olhava fixamente para Evelyn, os olhos marejados brilhando sob a luz suave do abajur. Com um gesto hesitante, segurou as mãos da jovem, sentindo o leve tremor que as percorria. A respiração lhe ficou presa na garganta. Fitava os olhos de Evelyn como se quisesse confirmar, nas profundezas deles, que era mesmo verdade.O silêncio no quarto pesava como um véu de incerteza, até que a condessa murmurou:— Grávida... — repetiu, como se precisasse ouvir a palavra em voz alta para acreditar.As lágrimas deslizaram por seu rosto, mas não era apenas felicidade. Havia algo mais — um toque de arrependimento, uma sombra do passado voltando a assombrá-la. Lentamente, sua mão se moveu, pousando sobre o ventre de Evelyn. Fechou os olhos por um breve momento e, num murmúrio quase imperceptível, sussurrou:— Me perdoe...Me perdoe? Repetiu, Evelyn, mentalmente. Franziu levemente a testa, sem entender completamente aquelas palavras. Mas antes que pudesse perguntar, o con