C.R.SANTOS
Evelyn acordou com a chuva forte batendo na janela do pequeno quarto que alugava no subúrbio de Bell Buckle, no Tennessee. Olhou as horas no pequeno relógio da mesa de cabeceira e percebeu que ainda faltava meia hora para se levantar, mas já não conseguia mais dormir. Levantou-se e foi tomar um banho.
Uma hora depois, estava dentro do trem a caminho do Daisy's, uma charmosa lanchonete com estilo anos oitenta, onde trabalhava. Olhando pela janela, avistou uma mulher com duas crianças caminhando pela calçada. O grande guarda-chuva protegia os três. A menina mais nova carregava uma mochila rosa nas costas, o objeto parecia maior que ela, deixando-a um pouco curvada para frente. Órfã de pai e mãe, Evelyn nunca conheceu aquela sensação de proteção que toda mãe deveria ter por seus filhos.
Ao saltar na estação, ergueu a gola do casaco e correu até a porta. Sob o grande toldo que cobria a frente da lanchonete, um jovem alto, de cabelos escuros penteados para trás, observava a chuva com um semblante pensativo. Ao lado dele, uma motocicleta. Evelyn simpatizou com ele imediatamente. Sorriu e falou:
— Quer entrar e tomar um café enquanto espera a chuva passar?
Ele riu, exibindo o sorriso mais bonito que ela já tinha visto.
— Hoje não. Não vim preparado — respondeu, com um sotaque inglês que surpreendeu Evelyn.
— Pode entrar, é por conta da casa.
— Vou aceitar, então — disse ele, agora com um sorriso mais alegre.
Foi assim que nasceu uma amizade. Durante a conversa, Evelyn contou que trabalhava na lanchonete para pagar a faculdade comunitária e o aluguel de um quarto no subúrbio. Apesar das dificuldades, mantinha seus sonhos vivos e acreditava que a educação seria a chave para uma vida melhor. O trabalho, embora cansativo, ajudava a sustentá-la enquanto equilibrava a rotina puxada de estudos e trabalho.
Ele, por sua vez, apresentou-se como Donovan Alistair Ashbourne. Evelyn se surpreendeu ao ouvir aquele sobrenome, sempre presente nas grandes revistas de negócios. Ele pertencia a uma das famílias mais ricas e influentes da Inglaterra? Mas como alguém com um passado tão humilde poderia estar ligado a pessoas tão poderosas?
Donovan explicou sua história de forma tranquila, sem alarde. Revelou que, quando foi abandonado em um orfanato, não tinha nome nem sobrenome. A funcionária que o encontrou havia trabalhado para a família Ashbourne e, ao ver sua saúde frágil, decidiu lhe dar o nome do antigo patrão, um aristocrata que havia falecido já em idade avançada. Para ela, era improvável que o bebê sobrevivesse, mas, caso o pior acontecesse, ao menos teria um nome digno gravado em sua lápide.
Evelyn, tocada pela sinceridade de Donovan, acreditou em sua versão da história. Como ela, ele também era órfão e lutava para sobreviver. Trabalhava como entregador e dividia um apartamento simples com amigos. Inicialmente, tornaram-se apenas amigos, compartilhando suas experiências e desafios cotidianos. Com o tempo, o vínculo cresceu e, após alguns meses, começaram um relacionamento sério. Casaram-se em uma cerimônia simples, sem grandes festividades, mas felizes por estarem juntos.
Com seus salários modestos, conseguiram alugar uma pequena casa em um bairro tranquilo. Apesar das dificuldades financeiras, tentavam construir uma vida juntos. A rotina era exaustiva, ambos trabalhavam muito e ganhavam pouco, mas faziam o possível para equilibrar os estudos de Evelyn e os empregos de ambos.
A vida seguia com altos e baixos típicos de um casal jovem em busca de seus sonhos. No entanto, em um domingo aparentemente comum, algo estranho aconteceu, abalando as certezas de Evelyn.
Naquele dia, Donovan assistia à TV. Ele escolheu um canal russo, e Evelyn, na cozinha preparando o almoço, ficou curiosa. Não entendia nada do que era dito, apenas ouvia vozes abafadas em uma língua estrangeira. Tudo parecia normal até que ouviu Donovan rindo. O som chamou sua atenção e, para sua surpresa, ele começou a falar em russo, repetindo algumas frases do programa. Sua risada parecia natural, como se realmente compreendesse o que estava sendo dito. Evelyn se aproximou, confusa.
— Donovan, você fala russo? — perguntou, surpresa.
Ele tentou manter a calma e respondeu com um sorriso nervoso:
— Não, só repeti o que ouvi. Não entendo nada do que eles estão dizendo.
No entanto, Evelyn percebeu algo estranho. Seu olhar evitou o dela por um instante e seu sorriso pareceu forçado. Ele insistiu que era apenas uma brincadeira, que estava se divertindo com a sonoridade da língua. Mas a mente de Evelyn começou a questionar a sinceridade da situação. Talvez fosse apenas uma coincidência, mas algo dentro dela dizia que havia mais por trás daquela risada.
Nos dias seguintes, Evelyn tentou ignorar o episódio, mas a dúvida crescia. Em silêncio, passou a observar Donovan com mais atenção. Será que ele tinha algo a esconder? Será que o homem com quem se casou tinha um segredo ainda não revelado? As perguntas pairavam no ar, mas ela não sabia como abordá-lo. A verdade era que o amava profundamente e entendia que nem sempre era possível esconder os fantasmas no armário.
Certa noite, ao chegar em casa, Evelyn se surpreendeu ao encontrar uma bela mesa de jantar montada, com flores e um aroma delicioso no ar.
— Donovan, que lindo! — falou, emocionada. — Onde conseguiu tudo isso?
Ele sorriu, aproximou-se e beijou seus lábios. — Madame? — disse, carregando ainda mais o sotaque inglês, arrancando uma gostosa gargalhada dela e fazendo-a esquecer o trabalho na lanchonete e as aulas cansativas.
— Hoje faz sete meses que nos casamos, e eu estou muito feliz por ter você ao meu lado. Apesar de todas as dificuldades, das lutas diárias, estou feliz e te amo muito.
Ela se emocionou, os olhos se encheram de lágrimas. Puxou o rosto dele e o beijou longamente. Donovan a ergueu da cadeira, pegou-a no colo e a levou para o quarto. Aquela noite de amor foi sublime para os dois. Mais tarde, abraçados e felizes, adormeceram, sem pensar, por um momento sequer, nas tristezas do passado.
01
Eram quase oito e meia da manhã quando Donavan despertou. O calor do corpo de Evelyn ainda envolvia seus sentidos, e a lembrança da noite maravilhosa de amor o fez sorrir. Há muito tempo não sentia aquela mistura de liberdade e autonomia. Com cuidado para não acordá-la, saiu da cama, calçou os chinelos e vestiu o roupão. Antes de sair do quarto, ficou ali, parado, admirando-a. Evelyn dormia tranquilamente, sua respiração suave, os fios de cabelo espalhados pelo travesseiro. Uma pontada no estômago o atingiu. O peso do passado sempre voltava, e ele se condenava por não ter contado toda a verdade a ela.— Espero que um dia você me perdoe, minha Evelyn... Queria ter te conhecido antes das decisões que tomei — sussurrou, sua voz carregada de arrependimento.Seguiu para a cozinha, sentindo falta dos cafés da manhã londrinos. Por mais que quisesse esquecer sua vida passada, certos hábitos eram difíceis de abandonar.Enquanto preparava o café, Evelyn acordou ao escu
O tempo passava lentamente, e Evelyn se arrastava com ele. Alguns dias depois, retornou ao trabalho, tentando esquecer sua dor. Mas a saudade rasgava seu peito a cada manhã, a cada vez que se levantava, e nas longas noites mal dormidas. Alguns fregueses a olhavam com dó, outros trocavam palavras de encorajamento. O xerife entrava todos os dias para tomar um café e perguntar como ela estava indo. "Conforme o tempo", ela respondia, agradecida, mas vazia.Os dias seguiam, e as contas começaram a se acumular. A conta do hospital, o aluguel da casa, as dívidas... Sem seguro e sem conseguir localizar o responsável pela tragédia, tudo estava se agravando. O dono da casa onde morava exigiu que ela desocupasse o imóvel. Sem alternativas, Evelyn retornou ao antigo quarto alugado, aquele lugar onde nunca imaginara que voltaria.Ainda fechada em sua dor, tentando lidar com a perda, algo inesperado aconteceu. Após um longo expediente na lanchonete, Evelyn desmaiou. A out
Os dias pareciam se arrastar na rotina árdua de Evelyn. Depois do telefonema que a abalou, ela havia decidido não fazer o aborto. Algo em seu interior dizia que os sobrenomes coincidiam por mais do que simples acaso. Havia algo mais por trás disso, algo que ela precisava descobrir. A verdade estava ao seu alcance, e ela sentia que não poderia ignorá-la.Era uma manhã comum, e Evelyn estava preparando o café, quando o som da campainha quebrou sua concentração. Um freguês havia chegado. Ela não se virou, mas, com a voz firme, falou:— Pode sentar, já irei atendê-lo.Ela viu Beth, a atendente mais velha, ajeitando os cabelos e passando batom, como sempre fazia antes de ir para o atendimento. Com rapidez, ela pegou o bloco de notas e foi até o cliente, mas retornou logo depois, com um olhar carregado de desagrado.— Ele quer ser atendido por você — disse, seu tom de incompreensão evidente. — E ainda falou o seu nome.Evelyn franziu a testa, um desconforto imediato a percorr
Lorde Reginald Alistair Ashbourne entrou na pequena delegacia da cidade com passos firmes e decididos. O lugar era simples, com poucas mesas e uma cela nos fundos. Um homem que estava preso olhou para ele, fez uma careta de desagrado e se virou, fechando os olhos contra a parede, como se preferisse ignorá-lo.O xerife, um homem de aparência robusta e já envelhecido, levantou os olhos e o observou de cima a baixo, tentando entender o que alguém tão bem vestido faria em uma cidade tão pacata como aquela.— Pois não, senhor? — perguntou, com um tom de curiosidade, avaliando cada detalhe do visitante.— Boa tarde, xerife. Meu nome é Sir Reginald Ashbourne — disse ele, com uma voz grave e autoritária. — Estou à procura de meu sobrinho... E, de acordo com a garçonete, o homem enterrado... — Ele hesitou, como se ainda tentasse acreditar no que estava dizendo. — Donovan Motter Ashbourne. Preciso que exumem o corpo para realizar um teste de DNA.O xerife levantou-se da
Após deixar o modesto quarto e cozinha de Evelyn nos arredores da cidade, Reginald se dirigiu ao hotel no centro. O quarto era simples, mas cuidadosamente limpo, com um leve aroma de lavanda no ar, quase suave demais para disfarçar o peso que ele carregava. Assim que trancou a porta, o alívio de estar sozinho foi quase palpável, mas a ansiedade em seu peito continuava a apertar. Ele se moveu até o frigobar, suas mãos trêmulas denunciando a tensão que há horas estava se acumulando. Abriu três garrafinhas de uísque de uma vez, sem hesitar, despejando o líquido ambarino em sua garganta com rapidez, tentando afogar a angústia que o devorava. Cada gole queimava, mas a sensação não era suficiente para acalmar o turbilhão dentro dele. O álcool descia queimando, mas a tensão nos seus músculos ainda estava lá, cravada como se ele não conseguisse se livrar da carga emocional que o sufocava.Um soluço inesperado escapou de sua garganta, vindo de um lugar profundo e inesper
Fazia quase duas semanas que Reginald tinha deixado a cidade. Evelyn sentia um alívio imenso, pensando que, depois da partida dele, sua vida voltaria ao normal. Doce engano.Beth, a garçonete que trabalhava com ela, insistia para que ligasse para a família de Donovan e exigisse dinheiro para comprar uma casa para ela e seu filho. Afinal, Reginald tinha dito que seu falecido marido era um homem muito rico. Mas Evelyn rebatia, dizendo que, se Donovan fosse realmente quem ele procurava, Reginald já teria voltado no dia seguinte para pedir autorização para exumar o corpo. O fato de não ter retornado a deixava com sentimentos conflitantes: um misto de alívio e decepção.Até mesmo seu antigo senhorio foi até a lanchonete, oferecendo novamente a casa onde morava antes. Ele sorriu, confiante, e disse que ela poderia pagar o aluguel quando recebesse a herança. Muito irritada, Evelyn respondeu que não havia herança alguma e que, em poucos meses, liquidaria sua dívida com ele
Evelyn Prescott Ashbourne ainda tentava absorver tudo o que havia acontecido nos últimos quatro meses. O primeiro encontro com Donovan ficaria marcado para sempre em sua memória. O casamento, sua morte súbita... Um frio percorreu seu corpo ao pensar na vida do marido sendo ceifada tão cedo. O telefonema, a vinda de Reginald... Tudo havia deixado sua vida de ponta-cabeça.Quem era o homem que estava dentro do caixão, sendo transportado em um avião particular luxuoso? Essa pergunta martelava sua mente enquanto olhava para seu vestido preto simples, que destoava gritante do ambiente sofisticado ao seu redor. Seus pensamentos foram interrompidos por uma voz feminina, de leve sotaque inglês.— Lady Ashbourne?O nome soou tão pomposo que Evelyn pensou que a comissária estivesse se dirigindo a outra pessoa. Mas não, era ela. Evelyn era a senhora Ashbourne. Não aquela senhora Ashbourne a quem a aeromoça se dirigia com tanto respeito, mas sim a viúva de um órfão.— A senhora dese
Depois dos cumprimentos e lágrimas. Evelyn foi conduzida para um dos quartos de hóspedes. O requinte e o luxo do ambiente contrastavam com seu vestido preto de algodão. Sobre a cama, repousava um vestido igualmente preto, lindíssimo e aparentemente muito caro. Ao tocá-lo, sentiu a maciez da seda. O tecido era tão fino que ela temeu danificá-lo com suas mãos ásperas, calejadas de tanto varrer o chão e torcer panos na lanchonete.A mãe de Donovan informou que haveria uma cerimônia no mausoléu da família, reservada apenas para parentes e amigos mais próximos. Evelyn procurou sua mala e a encontrou sobre uma cadeira. Mais uma vez, comparou sua bagagem simples com o ambiente ao redor e constatou como destoava daquele lugar.Mal terminou de lavar o rosto e passar um batom rosado nos lábios, uma batida suave na porta interrompeu seus pensamentos. Deixando o batom na pia do banheiro, foi atender. Do outro lado, um homem de aproximadamente sessenta anos, vestido com um unifo