Os dias pareciam se arrastar na rotina árdua de Evelyn. Depois do telefonema que a abalou, ela havia decidido não fazer o aborto. Algo em seu interior dizia que os sobrenomes coincidiam por mais do que simples acaso. Havia algo mais por trás disso, algo que ela precisava descobrir. A verdade estava ao seu alcance, e ela sentia que não poderia ignorá-la.
Era uma manhã comum, e Evelyn estava preparando o café, quando o som da campainha quebrou sua concentração. Um freguês havia chegado. Ela não se virou, mas, com a voz firme, falou:
— Pode sentar, já irei atendê-lo.
Ela viu Beth, a atendente mais velha, ajeitando os cabelos e passando batom, como sempre fazia antes de ir para o atendimento. Com rapidez, ela pegou o bloco de notas e foi até o cliente, mas retornou logo depois, com um olhar carregado de desagrado.
— Ele quer ser atendido por você — disse, seu tom de incompreensão evidente. — E ainda falou o seu nome.
Evelyn franziu a testa, um desconforto imediato a percorrendo. Ela olhou para trás e, quando seus olhos encontraram os do desconhecido, um arrepio percorreu sua espinha. Seus olhos eram negros, profundos, como se ele pudesse ver através dela. Um olhar tão penetrante que Evelyn sentiu como se estivesse sendo consumida por ele. Sua mão tremia ao pegar o bloco de notas e, com um esforço imenso, ela se aproximou da mesa.
— Bom dia — disse, tentando manter a calma em sua voz. — O que vai querer?
Ele a analisou sem disfarçar, seus olhos varrendo-a da cabeça aos pés. Evelyn sentiu seu rosto queimar, suas palmas das mãos suarem. Era como se ela fosse apenas um objeto sendo estudado minuciosamente. Ela teve vontade de pegar o café quente e derramar na cabeça daquele homem insolente, mas se controlou, mantendo a compostura.
— O que vai querer, senhor? — repetiu, agora com um tom mais firme.
Foi então que ele falou, sua voz profunda e imponente, penetrando seus ouvidos e fazendo seu corpo estremecer.
— Foi você quem ligou para a casa dos Ashbourne.
A pergunta, ou melhor, a afirmação, pegou-a de surpresa. Evelyn se recompôs rapidamente, mas não conseguiu esconder a tensão no rosto.
— Eu… Eu… — Ela não conseguia pronunciar as palavras.
Ele continuou, como se tivesse tudo sob controle, seus olhos ainda fixos nela.
— Foi Donovan quem pediu para ligar? Onde ele está? O garoto fujão.
A irritação de Evelyn cresceu, uma onda de raiva a invadindo. Ela deu um passo à frente, olhando-o diretamente nos olhos.
— Quem é você? — Sua voz se elevou, carregada de frustração, desafiando a arrogância do homem. Mas também sabia, sem querer admitir, que o olhar do homem à sua frente lembrava o olhar de seu falecido marido.
O desconhecido, como se nada pudesse abalar sua confiança, se acomodou melhor na cadeira e cruzou os braços, uma postura que exalava segurança absoluta.
— Sou o tio dele — disse calmamente, com uma leveza que só aumentava a irritação de Evelyn. — Vim buscar meu sobrinho, levá-lo de volta, de onde ele nunca deveria ter saído.
Evelyn parou por um momento, atônita, mas se controlou rapidamente. Não havia tempo para se perder em confusão.
— Então, sinto muito, você errou de pessoa. Meu marido... — Ela parou, sentindo uma dor aguda no peito ao mencionar Donovan. — Meu marido não é a pessoa que está procurando. Ele não tem parentes, é órfão e foi criado em um orfanato.
Ela deu um passo para trás, tentando se afastar, mas o homem a interrompeu com um sorriso de escárnio.
— Seu marido... — falou devagar, como se duvidasse de que ela realmente tivesse se casado. — Foi essa a história que ele contou para você? — perguntou ele, com uma risada contida. — É bem típico dele. Sempre teve um talento para criar histórias convincentes. Eu até disse a ele que, além de herdeiro de uma vasta fortuna, poderia muito bem ser um escritor talentoso.
Evelyn o encarou com uma intensidade crescente, seu rosto agora endurecido pela raiva.
— Já falei, você está enganado. Esse Donovan que está procurando não é o meu marido.
O silêncio se abateu sobre o lugar, pesado e carregado de tensão. Todos os olhares estavam voltados para eles, expectantes, ninguém ousava piscar, não queriam perder qualquer detalhe. O desconhecido, sem perder a compostura, continuou a encará-la.
— Está certo. Diga onde ele está. Meu sobrinho... Se não for ele, então... — Ele fez uma pausa, seu tom agora mais ameaçador. — Volto para a Inglaterra e deixo vocês em paz.
A frustração tomou conta de Evelyn, e a dor que sentia a cada palavra daquele homem foi se transformando em uma mistura de raiva e impotência. Os dias sem Donovan, a gravidez inesperada, as dívidas, somadas àquele homem arrogante, a fizeram finalmente explodir, sem se importar com os olhares à sua volta.
— Está bem — ela disse, as palavras saindo com uma ferocidade inesperada, colocando as mãos sobre a mesa e o encarando bem de perto. — Meu marido está enterrado no cemitério municipal, do outro lado da cidade, nos fundos da igreja.
Aquelas palavras foram como um bálsamo, e Evelyn sentiu uma sensação de paz se espalhar por seu corpo. Com um soluço profundo, ela abriu a porta e correu para fora, sem olhar para trás. Não percebeu o rosto pálido do homem, nem seus olhos arregalados de surpresa. Ela apenas fugiu, desesperada.
Evelyn foi para casa, jogou-se na cama e chorou. Chorou por ela, por Donovan, pelo bebê que iria nascer em um mundo sem o pai. Chorou por ter sido, pela primeira vez após tanto tempo, arrancada de sua agonia — aquele desconhecido a fizera sentir, mesmo que por um momento, um frágil suspiro de paz, como se tivesse finalmente encontrado um caminho. O travesseiro absorveu cada lágrima, cada gemido abafado, até que o cansaço venceu sua dor, e ela adormeceu com as mãos sobre a barriga ainda plana, onde uma vida minúscula insistia em crescer.
5
Lorde Reginald Alistair Ashbourne entrou na pequena delegacia da cidade com passos firmes e decididos. O lugar era simples, com poucas mesas e uma cela nos fundos. Um homem que estava preso olhou para ele, fez uma careta de desagrado e se virou, fechando os olhos contra a parede, como se preferisse ignorá-lo.O xerife, um homem de aparência robusta e já envelhecido, levantou os olhos e o observou de cima a baixo, tentando entender o que alguém tão bem vestido faria em uma cidade tão pacata como aquela.— Pois não, senhor? — perguntou, com um tom de curiosidade, avaliando cada detalhe do visitante.— Boa tarde, xerife. Meu nome é Sir Reginald Ashbourne — disse ele, com uma voz grave e autoritária. — Estou à procura de meu sobrinho... E, de acordo com a garçonete, o homem enterrado... — Ele hesitou, como se ainda tentasse acreditar no que estava dizendo. — Donovan Motter Ashbourne. Preciso que exumem o corpo para realizar um teste de DNA.O xerife levantou-se da
Após deixar o modesto quarto e cozinha de Evelyn nos arredores da cidade, Reginald se dirigiu ao hotel no centro. O quarto era simples, mas cuidadosamente limpo, com um leve aroma de lavanda no ar, quase suave demais para disfarçar o peso que ele carregava. Assim que trancou a porta, o alívio de estar sozinho foi quase palpável, mas a ansiedade em seu peito continuava a apertar. Ele se moveu até o frigobar, suas mãos trêmulas denunciando a tensão que há horas estava se acumulando. Abriu três garrafinhas de uísque de uma vez, sem hesitar, despejando o líquido ambarino em sua garganta com rapidez, tentando afogar a angústia que o devorava. Cada gole queimava, mas a sensação não era suficiente para acalmar o turbilhão dentro dele. O álcool descia queimando, mas a tensão nos seus músculos ainda estava lá, cravada como se ele não conseguisse se livrar da carga emocional que o sufocava.Um soluço inesperado escapou de sua garganta, vindo de um lugar profundo e inesper
Fazia quase duas semanas que Reginald tinha deixado a cidade. Evelyn sentia um alívio imenso, pensando que, depois da partida dele, sua vida voltaria ao normal. Doce engano.Beth, a garçonete que trabalhava com ela, insistia para que ligasse para a família de Donovan e exigisse dinheiro para comprar uma casa para ela e seu filho. Afinal, Reginald tinha dito que seu falecido marido era um homem muito rico. Mas Evelyn rebatia, dizendo que, se Donovan fosse realmente quem ele procurava, Reginald já teria voltado no dia seguinte para pedir autorização para exumar o corpo. O fato de não ter retornado a deixava com sentimentos conflitantes: um misto de alívio e decepção.Até mesmo seu antigo senhorio foi até a lanchonete, oferecendo novamente a casa onde morava antes. Ele sorriu, confiante, e disse que ela poderia pagar o aluguel quando recebesse a herança. Muito irritada, Evelyn respondeu que não havia herança alguma e que, em poucos meses, liquidaria sua dívida com ele
Evelyn Prescott Ashbourne ainda tentava absorver tudo o que havia acontecido nos últimos quatro meses. O primeiro encontro com Donovan ficaria marcado para sempre em sua memória. O casamento, sua morte súbita... Um frio percorreu seu corpo ao pensar na vida do marido sendo ceifada tão cedo. O telefonema, a vinda de Reginald... Tudo havia deixado sua vida de ponta-cabeça.Quem era o homem que estava dentro do caixão, sendo transportado em um avião particular luxuoso? Essa pergunta martelava sua mente enquanto olhava para seu vestido preto simples, que destoava gritante do ambiente sofisticado ao seu redor. Seus pensamentos foram interrompidos por uma voz feminina, de leve sotaque inglês.— Lady Ashbourne?O nome soou tão pomposo que Evelyn pensou que a comissária estivesse se dirigindo a outra pessoa. Mas não, era ela. Evelyn era a senhora Ashbourne. Não aquela senhora Ashbourne a quem a aeromoça se dirigia com tanto respeito, mas sim a viúva de um órfão.— A senhora dese
Depois dos cumprimentos e lágrimas. Evelyn foi conduzida para um dos quartos de hóspedes. O requinte e o luxo do ambiente contrastavam com seu vestido preto de algodão. Sobre a cama, repousava um vestido igualmente preto, lindíssimo e aparentemente muito caro. Ao tocá-lo, sentiu a maciez da seda. O tecido era tão fino que ela temeu danificá-lo com suas mãos ásperas, calejadas de tanto varrer o chão e torcer panos na lanchonete.A mãe de Donovan informou que haveria uma cerimônia no mausoléu da família, reservada apenas para parentes e amigos mais próximos. Evelyn procurou sua mala e a encontrou sobre uma cadeira. Mais uma vez, comparou sua bagagem simples com o ambiente ao redor e constatou como destoava daquele lugar.Mal terminou de lavar o rosto e passar um batom rosado nos lábios, uma batida suave na porta interrompeu seus pensamentos. Deixando o batom na pia do banheiro, foi atender. Do outro lado, um homem de aproximadamente sessenta anos, vestido com um unifo
A condessa olhava fixamente para Evelyn, os olhos marejados brilhando sob a luz suave do abajur. Com um gesto hesitante, segurou as mãos da jovem, sentindo o leve tremor que as percorria. A respiração lhe ficou presa na garganta. Fitava os olhos de Evelyn como se quisesse confirmar, nas profundezas deles, que era mesmo verdade.O silêncio no quarto pesava como um véu de incerteza, até que a condessa murmurou:— Grávida... — repetiu, como se precisasse ouvir a palavra em voz alta para acreditar.As lágrimas deslizaram por seu rosto, mas não era apenas felicidade. Havia algo mais — um toque de arrependimento, uma sombra do passado voltando a assombrá-la. Lentamente, sua mão se moveu, pousando sobre o ventre de Evelyn. Fechou os olhos por um breve momento e, num murmúrio quase imperceptível, sussurrou:— Me perdoe...Me perdoe? Repetiu, Evelyn, mentalmente. Franziu levemente a testa, sem entender completamente aquelas palavras. Mas antes que pudesse perguntar, o con
Ao descer para a sala de chá, o conde foi direto ao carrinho de bebidas, servindo-se de uma dose de uísque.Reginald o observou e comentou:— Henry, sabes que não podes beber. A sua pressão...Henry deu de ombros, com um meio sorriso cínico.— Só alguns goles não vão me matar, Reginald.— Se quiser correr o risco… — retrucou o irmão, seco. — E está tudo certo com a viúva de Donovan? Algum problema de saúde?Henry virou-se devagar, saboreando o momento. Seu sorriso se alargou, carregado de sarcasmo.— Evelyn está ótima. Mais do que isso — está grávida. Uma bênção inesperada, não acha? Finalmente, um herdeiro direto.Deu um gole demorado, antes de completar:— Posso finalmente parar de me preocupar com o futuro. Agora é só nomear um conselho, manter a engrenagem funcionando... até que o pequeno esteja pronto para ocupar seu lugar de direito.Colocou o copo de volta no carrinho de bebidas com um estalo leve, como um ponto final. E, com aquele mesmo sorriso frio, despedi
Desde a noite em que revelou sua gravidez, Evelyn não tinha mais visto Reginald. Já se passavam duas semanas. E, por mais que tentasse não pensar nisso, a ausência dele era um vazio inquieto. Justificava para si mesma que era apenas pela semelhança com Donovan — os olhos idênticos, o modo como erguiam a sobrancelha quando contrariados, a forma como caminhavam com elegância distraída. Mas, no fundo, sabia que era mais do que isso.Era um misto confuso de saudade, raiva e rejeição. Evelyn oscilava entre a mágoa de ter sido ignorada e o alívio de não ter de lidar com o desprezo silencioso de Reginald. Às vezes, sonhava com ele — não como ele era agora, frio e distante, mas como nos primeiros dias, quando seu olhar parecia curioso, talvez até gentil. Depois acordava aflita, com a sensação de que havia se perdido em um labirinto emocional sem saída.Nos jantares formais organizados pelos sogros, onde era apresentada a parentes e acionistas da empresa, Evelyn sentia-se como uma peça fora do