Lorde Reginald Alistair Ashbourne entrou na pequena delegacia da cidade com passos firmes e decididos. O lugar era simples, com poucas mesas e uma cela nos fundos. Um homem que estava preso olhou para ele, fez uma careta de desagrado e se virou, fechando os olhos contra a parede, como se preferisse ignorá-lo.
O xerife, um homem de aparência robusta e já envelhecido, levantou os olhos e o observou de cima a baixo, tentando entender o que alguém tão bem vestido faria em uma cidade tão pacata como aquela.
— Pois não, senhor? — perguntou, com um tom de curiosidade, avaliando cada detalhe do visitante.
— Boa tarde, xerife. Meu nome é Sir Reginald Ashbourne — disse ele, com uma voz grave e autoritária. — Estou à procura de meu sobrinho... E, de acordo com a garçonete, o homem enterrado... — Ele hesitou, como se ainda tentasse acreditar no que estava dizendo. — Donovan Motter Ashbourne. Preciso que exumem o corpo para realizar um teste de DNA.
O xerife levantou-se da cadeira, colocou as mãos nos bolsos da calça e balançou a cabeça lentamente, como quem lamentava a situação.
— Era um bom rapaz, quieto, trabalhador... e um bom marido — disse ele, com uma certa tristeza na voz. — Espero, senhor Ashbourne, que o Donovan que está enterrado lá não seja seu sobrinho, porque, pelo que eu sei, ele não tinha parentes vivos. Mas, na minha profissão, pessoas que não dizem a verdade fazem parte da rotina... — Ele gritou em direção ao preso, com um tom sarcástico: — Não é mesmo, Roney?
O preso, que estava deitado na cama da cela, levantou uma mão, como se pedisse para ser deixado em paz. O xerife voltou sua atenção para Sir Reginald.
— Bem, senhor, como ele é seu sobrinho e não seu filho, vou precisar da autorização da senhora Ashbourne. — Ele fez uma pausa ao ver a expressão surpresa no rosto de Reginald. — Ah, sim... — continuou, com um sorriso irônico — Aqueles dois se casaram, tanto na igreja quanto no cartório, e eu, com bom gosto, fui testemunha. Então, senhor Ashbourne, me traga uma autorização por escrito da senhora Ashbourne, e faremos tudo dentro da lei.
Sir Reginald suspirou pesadamente, sentindo o peso da situação.
— Senhora Ashbourne... A herdeira de Donovan... — disse ele, mais para si mesmo do que para o xerife.
Enquanto isso, Evelyn estava em casa, guardando a última louça do jantar no pequeno armário quando uma batida na porta a surpreendeu. Ela se aproximou da porta e, afastando a cortina que cobria o vidro, viu a última pessoa que gostaria de ver.
— Já é tarde, vá embora — ela disse, sem vontade de enfrentá-lo.
— Por favor, preciso conversar com você e pedir sua autorização — ele respondeu, com uma calma que a irritou.
As notícias já haviam se espalhado, e ela sabia exatamente o que ele queria.
— Só um momento, por favor. — Ela disse, tentando manter a compostura.
Ele aceitou, e ela, com passos pesados, foi para trás do biombo. Alguns minutos se passaram, mas para ele pareceu uma eternidade, até que ela apareceu vestindo um roupão que era dois números maiores do que seu tamanho. Ele a observou, mas manteve-se quieto.
Ela abriu a porta e ele entrou, fazendo com que o pequeno quarto parecesse ainda menor, sua presença alta e imponente preenchendo todo o espaço. Ele carregava uma pasta, mas não parecia interessado no conteúdo imediato. Seus olhos se fixaram na estante, onde uma foto do casamento de Evelyn e Donovan estava exposta. Com passos largos, ele se aproximou e, com mãos trêmulas, pegou o porta-retrato. Ao lado, outra foto de Donovan em sua moto, com um sorriso feliz estampado no rosto.
Ele ficou em silêncio por um momento, olhando para as fotos. Então, falou, com a voz embargada pela emoção:
— Ele amava motocicletas... Tinha uma coleção na garagem. Participava de vários ralis, ganhava prêmios. A Condessa Clenci, minha cunhada, sempre o apoiava. Mas meu irmão, o Conde Ashbourne, discordava totalmente. Quando Albert, o filho mais velho, adoeceu e não resistiu, todas as atenções se voltaram para Donovan. Mas ele... não queria saber dos negócios da família. As brigas entre os três eram diárias. Então, ele vendeu todas as motocicletas e desapareceu. Há dois anos estávamos procurando por ele. E sua ligação... me trouxe até ele... — A voz dele se apagou, cheia de dor e frustração.
Evelyn não sabia o que dizer, nem o que fazer. Ela ficou parada, escutando suas palavras com o coração apertado. As lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto, e ela tentou se controlar, mas não conseguiu.
— Sinto muito — falou com a voz rouca pelo choro.
Ele colocou o porta-retrato no lugar e virou-se para ela. Seu rosto, antes vulnerável, agora parecia um mármore frio, sem qualquer vestígio da tristeza que havia transparecido instantes antes. Passando a mão pelos cabelos, ele disse:
— Evelyn Prescott Ashbourne... — Ele repetiu o sobrenome, como se o peso das palavras lhe causasse desconforto. — Nosso primeiro contato não foi exatamente... agradável. Eu não deveria tê-la julgado tão rápido. Mas entenda, Evelyn, foram dois anos procurando por Donovan, e quando finalmente recebo uma pista, descubro que ele pode estar morto. Até entrar por aquela porta, eu tinha certeza de que não era ele. Mas agora, vendo essa foto... não tenho mais dúvidas. — Ele suspirou, apertando o maxilar, tentando conter a frustração. — Amanhã volto. Temos muito o que conversar. Tenha uma boa noite.
Antes que ele saísse, Evelyn murmurou:
— "сокровище".
Ele parou imediatamente, mas não se virou.
— Donovan às vezes repetia essa palavra enquanto dormia...
Ela respirou fundo antes de continuar:
— "сокровище" significa "tesouro". Meu pai era poliglota e ensinou várias línguas a seus filhos e netos. "Tesouro" em russo... Era assim que ele chamava Donovan, porque tinham o mesmo nome.
O silêncio se instalou por um instante, pesado e significativo. Então, quase como uma confirmação sussurrada, Evelyn acrescentou:
— Sim... Donovan sabia falar russo.
E saiu, deixando atrás de si um rastro sutil da fragrância marcante de sua colônia. Evelyn permaneceu imóvel, sentindo um arrepio percorrer-lhe a espinha sem saber exatamente o porquê.
6
Após deixar o modesto quarto e cozinha de Evelyn nos arredores da cidade, Reginald se dirigiu ao hotel no centro. O quarto era simples, mas cuidadosamente limpo, com um leve aroma de lavanda no ar, quase suave demais para disfarçar o peso que ele carregava. Assim que trancou a porta, o alívio de estar sozinho foi quase palpável, mas a ansiedade em seu peito continuava a apertar. Ele se moveu até o frigobar, suas mãos trêmulas denunciando a tensão que há horas estava se acumulando. Abriu três garrafinhas de uísque de uma vez, sem hesitar, despejando o líquido ambarino em sua garganta com rapidez, tentando afogar a angústia que o devorava. Cada gole queimava, mas a sensação não era suficiente para acalmar o turbilhão dentro dele. O álcool descia queimando, mas a tensão nos seus músculos ainda estava lá, cravada como se ele não conseguisse se livrar da carga emocional que o sufocava.Um soluço inesperado escapou de sua garganta, vindo de um lugar profundo e inesper
Fazia quase duas semanas que Reginald tinha deixado a cidade. Evelyn sentia um alívio imenso, pensando que, depois da partida dele, sua vida voltaria ao normal. Doce engano.Beth, a garçonete que trabalhava com ela, insistia para que ligasse para a família de Donovan e exigisse dinheiro para comprar uma casa para ela e seu filho. Afinal, Reginald tinha dito que seu falecido marido era um homem muito rico. Mas Evelyn rebatia, dizendo que, se Donovan fosse realmente quem ele procurava, Reginald já teria voltado no dia seguinte para pedir autorização para exumar o corpo. O fato de não ter retornado a deixava com sentimentos conflitantes: um misto de alívio e decepção.Até mesmo seu antigo senhorio foi até a lanchonete, oferecendo novamente a casa onde morava antes. Ele sorriu, confiante, e disse que ela poderia pagar o aluguel quando recebesse a herança. Muito irritada, Evelyn respondeu que não havia herança alguma e que, em poucos meses, liquidaria sua dívida com ele
Evelyn Prescott Ashbourne ainda tentava absorver tudo o que havia acontecido nos últimos quatro meses. O primeiro encontro com Donovan ficaria marcado para sempre em sua memória. O casamento, sua morte súbita... Um frio percorreu seu corpo ao pensar na vida do marido sendo ceifada tão cedo. O telefonema, a vinda de Reginald... Tudo havia deixado sua vida de ponta-cabeça.Quem era o homem que estava dentro do caixão, sendo transportado em um avião particular luxuoso? Essa pergunta martelava sua mente enquanto olhava para seu vestido preto simples, que destoava gritante do ambiente sofisticado ao seu redor. Seus pensamentos foram interrompidos por uma voz feminina, de leve sotaque inglês.— Lady Ashbourne?O nome soou tão pomposo que Evelyn pensou que a comissária estivesse se dirigindo a outra pessoa. Mas não, era ela. Evelyn era a senhora Ashbourne. Não aquela senhora Ashbourne a quem a aeromoça se dirigia com tanto respeito, mas sim a viúva de um órfão.— A senhora dese
Depois dos cumprimentos e lágrimas. Evelyn foi conduzida para um dos quartos de hóspedes. O requinte e o luxo do ambiente contrastavam com seu vestido preto de algodão. Sobre a cama, repousava um vestido igualmente preto, lindíssimo e aparentemente muito caro. Ao tocá-lo, sentiu a maciez da seda. O tecido era tão fino que ela temeu danificá-lo com suas mãos ásperas, calejadas de tanto varrer o chão e torcer panos na lanchonete.A mãe de Donovan informou que haveria uma cerimônia no mausoléu da família, reservada apenas para parentes e amigos mais próximos. Evelyn procurou sua mala e a encontrou sobre uma cadeira. Mais uma vez, comparou sua bagagem simples com o ambiente ao redor e constatou como destoava daquele lugar.Mal terminou de lavar o rosto e passar um batom rosado nos lábios, uma batida suave na porta interrompeu seus pensamentos. Deixando o batom na pia do banheiro, foi atender. Do outro lado, um homem de aproximadamente sessenta anos, vestido com um unifo
A condessa olhava fixamente para Evelyn, os olhos marejados brilhando sob a luz suave do abajur. Com um gesto hesitante, segurou as mãos da jovem, sentindo o leve tremor que as percorria. A respiração lhe ficou presa na garganta. Fitava os olhos de Evelyn como se quisesse confirmar, nas profundezas deles, que era mesmo verdade.O silêncio no quarto pesava como um véu de incerteza, até que a condessa murmurou:— Grávida... — repetiu, como se precisasse ouvir a palavra em voz alta para acreditar.As lágrimas deslizaram por seu rosto, mas não era apenas felicidade. Havia algo mais — um toque de arrependimento, uma sombra do passado voltando a assombrá-la. Lentamente, sua mão se moveu, pousando sobre o ventre de Evelyn. Fechou os olhos por um breve momento e, num murmúrio quase imperceptível, sussurrou:— Me perdoe...Me perdoe? Repetiu, Evelyn, mentalmente. Franziu levemente a testa, sem entender completamente aquelas palavras. Mas antes que pudesse perguntar, o con
Ao descer para a sala de chá, o conde foi direto ao carrinho de bebidas, servindo-se de uma dose de uísque.Reginald o observou e comentou:— Henry, sabes que não podes beber. A sua pressão...Henry deu de ombros, com um meio sorriso cínico.— Só alguns goles não vão me matar, Reginald.— Se quiser correr o risco… — retrucou o irmão, seco. — E está tudo certo com a viúva de Donovan? Algum problema de saúde?Henry virou-se devagar, saboreando o momento. Seu sorriso se alargou, carregado de sarcasmo.— Evelyn está ótima. Mais do que isso — está grávida. Uma bênção inesperada, não acha? Finalmente, um herdeiro direto.Deu um gole demorado, antes de completar:— Posso finalmente parar de me preocupar com o futuro. Agora é só nomear um conselho, manter a engrenagem funcionando... até que o pequeno esteja pronto para ocupar seu lugar de direito.Colocou o copo de volta no carrinho de bebidas com um estalo leve, como um ponto final. E, com aquele mesmo sorriso frio, despedi
Desde a noite em que revelou sua gravidez, Evelyn não tinha mais visto Reginald. Já se passavam duas semanas. E, por mais que tentasse não pensar nisso, a ausência dele era um vazio inquieto. Justificava para si mesma que era apenas pela semelhança com Donovan — os olhos idênticos, o modo como erguiam a sobrancelha quando contrariados, a forma como caminhavam com elegância distraída. Mas, no fundo, sabia que era mais do que isso.Era um misto confuso de saudade, raiva e rejeição. Evelyn oscilava entre a mágoa de ter sido ignorada e o alívio de não ter de lidar com o desprezo silencioso de Reginald. Às vezes, sonhava com ele — não como ele era agora, frio e distante, mas como nos primeiros dias, quando seu olhar parecia curioso, talvez até gentil. Depois acordava aflita, com a sensação de que havia se perdido em um labirinto emocional sem saída.Nos jantares formais organizados pelos sogros, onde era apresentada a parentes e acionistas da empresa, Evelyn sentia-se como uma peça fora do
A manhã nasceu com cheiro de decisão. Evelyn olhava pela janela do quarto, sentindo no rosto o toque leve do sol. Apesar da acolhida calorosa na mansão dos sogros, ela precisava de mais. Não apenas espaço, mas autonomia. Independência. Algo que refletisse quem ela era — não quem esperavam que fosse.Na sala de estar, com as mãos pousadas sobre o ventre ainda discreto, Evelyn falou com firmeza: — Eu não tenho do que reclamar, de verdade. Vocês foram maravilhosos comigo. Mas eu preciso de privacidade, de liberdade para tomar as rédeas da minha vida. De um espaço só meu.Cecil, com o rosto materno um tanto aflito, tentou disfarçar a decepção.— Mas, minha querida, e o bebê? Você não deveria enfrentar isso sozinha...Henry se adiantou, franzindo o cenho.— Você terá ajuda aqui. Segurança. Conforto.— Eu sei — respondeu ela, a voz embargada. — Mas também preciso respirar, fazer minhas escolhas. Quero criar meu filho com dignidade, não como uma hóspede eterna.A tensão cres