Giulia Ricciardi
A luz dourada do fim da tarde atravessava as janelas do meu quarto, iluminando o cavalete à minha frente. Minha tela quase terminada retratava um campo florido que eu havia visto em um verão distante, quando ainda era criança. Pintar era o meu refúgio, um dos poucos momentos em que eu sentia que podia ser eu mesma, sem as amarras da vida que meu sobrenome impunha.
Enquanto passava o pincel pelos últimos detalhes de uma flor, ouvi a porta do quarto se abrir. Francesca entrou sem bater, como sempre fazia, segurando uma maçã meio comida. Seus longos cabelos estavam presos em um rabo de cavalo despretensioso, e seus olhos brilhavam com uma curiosidade irritante.
— Giulia, você vai mesmo fazer essa cara de quem comeu e não gostou para o rapaz de amanhã? — ela perguntou, encostando-se na porta.
Revirei os olhos, ainda focada no quadro.
— Não estou com paciência para isso agora, Francesca.
Ela se aproximou, sentando-se na beira da cama, e me olhou com aquele ar travesso que só ela tinha.
— Só estou dizendo... Ele pode ser bonito. Interessante até. Vai que você se surpreende?
Deixei o pincel de lado e me virei para encará-la.
— Francesca, não é só uma questão de "dar uma chance". Aceitar ver esse homem amanhã é quase o mesmo que aceitar um noivado. Sabe como papà é. Ele vai pressionar, insinuar, manipular... E antes que eu perceba, estarei presa a alguém que eu nem conheço.
Ela deu uma mordida na maçã e respondeu, com a boca cheia:
— Mas e se ele for incrível? A vida pode te surpreender, sorella.
Suspirei profundamente, cruzando os braços.
— Não quero que minha vida dependa de surpresas ou sorte, Francesca. Não quero viver infeliz com alguém que eu não amo.
O sorriso travesso dela desapareceu, dando lugar a uma expressão mais séria.
— Tudo bem, entendi. Mas... — Ela hesitou antes de continuar. — Talvez seja hora de superar essa história com Lorenzo.
A menção do nome dele me fez estremecer, e meus músculos ficaram tensos.
— Isso não tem nada a ver com ele, Francesca — retruquei, seca.
Ela arqueou as sobrancelhas, desafiadora.
— Não tem? Porque, para mim, parece que você ainda está presa nessa fantasia impossível.
Levantei-me, tentando afastar a irritação crescente, e comecei a organizar os pincéis na mesa.
— Você não entende. Isso não é sobre Lorenzo. É sobre mim. Sobre o que eu quero para a minha vida.
Ela se levantou também, cruzando os braços, parecendo pronta para rebater.
— Então me explica, Giulia. Porque, do jeito que vejo, você está se prendendo a um homem que nunca poderá ser seu.
— Você acha que eu não sei disso? — Minha voz saiu mais alta do que eu pretendia, carregada de frustração. Virei-me para encará-la, meus olhos fixos nos dela. — Isso não é sobre ele, Francesca. Não é sobre um homem. É sobre liberdade. Sobre não ter cada detalhe da minha vida decidido por papà. Você acha que é fácil viver assim? Que eu posso simplesmente ignorar tudo e me contentar?
Ela desviou o olhar, parecendo incomodada com minha explosão. A tensão no quarto era palpável, e eu sabia que se continuássemos, acabaríamos brigando de verdade.
Francesca deu um passo para trás, segurando o resto da maçã com força.
— Tudo bem, Giulia. Acho melhor eu ir antes que uma de nós diga algo que vai se arrepender depois.
Assenti, tentando recuperar a calma.
— É melhor mesmo.
Ela saiu do quarto sem dizer mais nada, fechando a porta com mais força do que o necessário. Quando fiquei sozinha, soltei o ar que nem tinha percebido estar segurando. Meu coração estava acelerado, e minha mente girava em círculos.
Por que Francesca não entendia? Não era só sobre Lorenzo. Claro, ele era uma peça importante no quebra-cabeça, mas o que eu queria — o que eu precisava — era mais do que isso. Eu queria ser livre para escolher. Para viver.
Olhei para o quadro inacabado, agora sob a luz mais fraca do sol poente. Peguei o pincel novamente e tentei me concentrar, mas minhas mãos tremiam. A discussão havia deixado um gosto amargo na minha boca.
Talvez Francesca estivesse certa em uma coisa: eu estava presa, mas não a Lorenzo. Eu estava presa a um mundo que não era meu. E a cada dia que passava, essa prisão parecia mais apertada.
...
A noite avançava lentamente, mas eu continuava no meu quarto, mergulhada no silêncio reconfortante que ninguém ousara interromper. Para minha surpresa — e alívio —, ninguém veio me chamar para jantar ou perguntar se eu precisava de algo. Francesca provavelmente sabia que ainda estávamos no limite de uma briga, e papà devia estar ocupado com seus próprios assuntos para se lembrar de mim.
Sentada na cama com meu notebook no colo, percorria páginas e páginas na internet, tentando encontrar algo para ocupar minha mente. O curso de pintura que eu frequentava era maravilhoso, mas insuficiente para preencher o vazio que sentia. Não era o suficiente para calar a insatisfação que crescia dentro de mim a cada dia.
Eu sempre gostei de aprender coisas novas. Desde que terminei a faculdade de Artes, passei a me inscrever em qualquer curso que me parecesse interessante. Já que papà não permitia que Francesca ou eu trabalhássemos — alegando que não precisávamos "nos rebaixar" —, ao menos os cursos me davam a sensação de que eu fazia algo por mim.
Enquanto clicava de página em página, meus olhos se detiveram em algo que chamou minha atenção: um curso de moda. Não era exatamente sobre artes, mas envolvia criatividade, estética e um mundo que sempre me fascinou. Moda era algo que eu gostava desde adolescente, mas nunca considerei seguir por esse caminho. Talvez agora fosse o momento.
Sem pensar muito, me inscrevi. A primeira aula já seria amanhã. Fechei o notebook, sentindo uma pontada de empolgação que não experimentava há tempos. Por um breve momento, deixei de lado as preocupações com papà, com o rapaz que ele queria me apresentar, e até mesmo com Lorenzo.
Passei horas lendo sobre o curso, pesquisando os trabalhos de estilistas famosos e imaginando como seria mergulhar nesse universo. Quando dei por mim, a noite já havia caído completamente, e o relógio marcava quase meia-noite.
Foi só então que percebi o quanto estava faminta. Levantei-me, sentindo o peso das horas que passei sentada, e desci as escadas em direção à cozinha. A casa estava silenciosa, exceto pelo ocasional som de passos vindo dos seguranças que faziam a ronda noturna. Peguei um sanduíche e uma taça de vinho na cozinha e, em vez de voltar para o quarto, decidi ir para o jardim.
A noite estava clara, iluminada por uma lua cheia brilhante e um céu salpicado de estrelas. Sentei-me em um banco de pedra, segurando minha taça e o prato com o sanduíche, enquanto observava o reflexo da lua na piscina. O ar fresco era um alívio bem-vindo depois de horas confinada no quarto.
De longe, avistei os seguranças andando pelo perímetro da propriedade. A visão deles, sempre alertas, sempre presentes, trouxe de volta aquela sensação incômoda de prisão. Não era só sobre o controle de papà; era sobre todo o mundo em que nasci. Um mundo que não me dava espaço para errar, experimentar ou, às vezes, simplesmente respirar.
Enquanto mordiscava o sanduíche, pensei no curso de moda. Era uma pequena rebeldia, eu sabia. Papà provavelmente torceria o nariz se soubesse que me inscrevi em algo tão "fútil" aos olhos dele. Mas era algo meu. Algo que eu podia controlar e que me dava uma fagulha de liberdade, mesmo que mínima.
Terminei de comer e fiquei ali, apreciando a quietude da noite. O jardim sempre fora um dos meus lugares favoritos na casa, especialmente quando todos já estavam dormindo. Era como se, naquele momento, o mundo fosse só meu.
No entanto, mesmo sob as estrelas, com o vento suave balançando meu cabelo, não conseguia escapar da sensação de que algo estava faltando. Havia uma inquietação constante dentro de mim, algo que nem os cursos, nem as noites silenciosas no jardim, nem mesmo a pintura conseguiam preencher.
Apertei a taça de vinho entre os dedos, olhando para o céu. Eu amava minha família, mas desejava tanto escapar da sombra deles. Queria mais para minha vida do que ser a filha obediente e submissa de Domenico Ricciardi.
Suspirei profundamente, decidindo que amanhã seria um novo dia. O curso de moda seria meu pequeno passo em direção a algo diferente, algo que fosse apenas meu. E, por agora, isso teria que ser o suficiente.
Giulia RicciardiO som de batidas suaves na porta me tirou do sono. Com esforço, abri os olhos, vendo a luz da manhã já entrando pelas cortinas entreabertas.— Senhorita Giulia — chamou a voz de Sílvia, uma das empregadas da casa. — Seu pai pediu para avisar que a senhorita deve descer em dez minutos para o café da manhã.Suspirei profundamente, sentindo o peso da obrigação logo ao acordar.— Obrigada, Sílvia. Já estou descendo — respondi, minha voz ainda rouca de sono.Levantei-me, sentindo a preguiça do corpo após a noite anterior. Fui direto para o banheiro, onde tomei um banho rápido e frio para despertar de vez. Enquanto a água escorria pelo meu corpo, meus pensamentos vagavam para o que me esperava no dia. A aula do curso de moda começaria hoje, e eu estava animada. Era uma pequena fuga para um mundo só meu, ainda que temporária.Depois do banho, escolhi uma roupa prática: uma calça jeans justa, uma regata branca e uma jaqueta jeans que completava o visual. Coloquei alguns acess
Lorenzo SalvatoreUma semana depois...A sala de reuniões da mansão Ricciardi estava silenciosa, exceto pelo som das vozes firmes de meus homens enquanto discutimos os detalhes finais da segurança para a viagem. Uma grande movimentação como essa exigia planejamento impecável, e eu não tolerava falhas. A fazenda da família Ricciardi, localizada em uma região isolada do interior, era grandiosa e cheia de história, mas também um alvo perfeito para qualquer um que quisesse causar problemas.Minha responsabilidade era garantir que nada acontecesse.— Quero que as escoltas sejam divididas em dois grupos — expliquei, apontando para o mapa sobre a mesa. — Um à frente do comboio, monitorando qualquer movimento suspeito na estrada, e outro na retaguarda, para evitar surpresas.Os homens assentiram, absorvendo cada instrução. Domenico estava sentado à cabeceira da mesa, silencioso, mas com o olhar atento. Eu sabia que ele confiava plenamente em mim, mas ainda assim, era impossível ignorar a pres
Giulia Ricciardi Era impossível conter minha animação enquanto colocava as últimas peças na mala. Um casamento na fazenda da família significava uma pausa na rotina opressiva da casa em Milão. Alice, minha prima, sempre foi como uma irmã mais velha para mim, e agora que ela iria se casar, eu estava emocionada em fazer parte desse momento tão especial. Os vestidos das madrinhas estavam impecáveis. Meu tio, Antônio, havia contratado um estilista renomado para cuidar de tudo, e o resultado era deslumbrante. Os vestidos verde musgo, que combinavam perfeitamente com o cenário da fazenda, tinham cortes elegantes e delicados, destacando a beleza de cada uma de nós. Só de imaginar a cerimônia, cercada pela natureza, com Alice radiante em seu vestido de noiva, meu coração se enchia de felicidade. Depois de arrumar minha mala com roupas para os quatro dias, itens de higiene, sapatos e, claro, o vestido de madrinha, fui tomar um banho rápido. A água quente ajudou a relaxar meus músculos, mas
Lorenzo Salvatore Assim que desci do quarto onde havia deixado minhas coisas, fui direto procurar Luis e Alice. Eles estavam no grande salão principal, cercados por familiares e amigos, todos oferecendo parabéns e felicitações pelo casamento. Esperei um momento apropriado antes de me aproximar. — Lorenzo! — Luis me avistou primeiro, abrindo um sorriso largo enquanto se aproximava para me cumprimentar. — Que bom que veio, irmão. — Obrigado pelo convite, Luis. — Apertei sua mão firmemente antes de dar um leve abraço. — Alice, meus parabéns. Você está radiante. — Obrigada, Lorenzo. — Alice respondeu com um sorriso tímido, segurando a mão de Luis. — E obrigado por estar aqui. Luis me olhou com curiosidade, inclinando levemente a cabeça. — E sua mãe e sua irmã? Por que não as trouxe? — A Anna foi para um acampamento com a escola — expliquei, lembrando do entusiasmo dela ao falar sobre a viagem. — E minha mãe está cheia de encomendas de costura. Ela disse que mandará presentes depois
Giulia RicciardiAcordei com o som das risadas e vozes animadas de Francesca e Liz. Ainda meio grogue, demorei alguns segundos para me situar. O quarto estava iluminado pela luz da manhã que atravessava as cortinas, e as duas já estavam de pé, aparentemente discutindo o que vestir para o evento de hoje.— Finalmente! Achei que você não ia levantar nunca. — Francesca provocou, olhando para mim pelo espelho enquanto arrumava os cabelos.Liz virou-se com um sorriso caloroso.— Bom dia, dorminhoca!— Bom dia, meninas. — Respondi, esfregando os olhos. — Parece que vocês já estão animadas para o dia.— Claro que estamos! — Liz respondeu, rindo. — Hoje é o grande dia das mulheres.Lembrei-me do que Alice tinha nos contado na noite anterior: um amigo secreto “adulto”, algo ousado e divertido que ela havia organizado para nós. A ideia era que cada uma levasse um presente que pudesse ser usado por qualquer uma das participantes, sem saber para quem o presente seria. Confesso que a ideia me deix
Lorenzo SalvatoreA sala de jogos estava cheia de fumaça, risadas e o som inconfundível de copos sendo colocados na mesa com força. Era um ambiente tipicamente masculino, recheado de camaradagem e rivalidade saudável. Eu estava ali, com o controle na mão, focado na partida de videogame. A tela brilhava com intensidade enquanto Marco e eu esmagávamos Luis e Giovanni em uma partida intensa de futebol virtual.— Anda, Luis! Vai deixar o moleque passar por você assim? — gritou Stefan, rindo, enquanto tomava um gole de sua bebida e assistia ao massacre que acontecia na tela.— Ele tem sorte! Só isso! — Luis respondeu, a voz embargada pela frustração.— Sorte? É habilidade, meu caro. Aprende com os melhores — provoquei, lançando um olhar de canto para ele, enquanto Marco ria alto ao meu lado.Luis tentou recuperar o controle da situação, mas Marco marcou mais um gol, arrancando um coro de zoações dos outros homens na sala. Era um espaço de relaxamento raro, onde, apesar das tensões que todo
Giulia RicciardiSentei-me na beira da cama, ainda tentando processar o que havia acabado de acontecer. Meu coração batia descompassado, como se eu tivesse corrido uma maratona, e meu rosto queimava de vergonha e... outra coisa que eu não ousava nomear.Levantei os olhos para o quarto bagunçado, evidência clara da minha pressa anterior, e soltei um suspiro pesado. Como diabos Lorenzo tinha me pegado nessa situação? O controle do vibrador... Ah, meu Deus.Tudo começou quando Francesca e eu subimos para trocar de roupa. Ela foi rápida, sempre prática, pegou suas coisas e saiu antes de mim, dizendo algo sobre atender uma ligação importante. Fiquei sozinha no quarto, e então, o pensamento surgiu. Não era a primeira vez que eu me sentia curiosa sobre o presente que tinha recebido no amigo secreto. Aquele vibrador controlado à distância era discreto e intrigante. Eu queria saber como funcionava, se era tão poderoso quanto Alice tinha sugerido ao comprá-lo.Procurei pelo controle no fundo da
Giulia RicciardiO clima ao redor da piscina era leve e descontraído, as conversas fluíam como o vinho que, em breve, começaria a ser servido. Francesca estava ao meu lado, rindo de algo que Matteo havia dito a Giovanni, mas eu mal prestava atenção. Meu olhar teimava em buscar Lorenzo, mesmo que eu tentasse disfarçar. Ele estava com Marco e Filipe, perto da mesa, e por mais que estivesse cercado de pessoas, parecia alheio a tudo.Foi então que Liz sugeriu que todos bebessem um pouco para animar ainda mais o fim de tarde.— Ótima ideia! — Meu irmão exclamou, já se levantando. — Vamos pegar os vinhos e os uísques.Os homens se prontificaram a ir até a cozinha e à adega buscar as bebidas, enquanto nós, as mulheres, ficamos encarregadas dos petiscos. Francesca e eu fomos até a mesa no canto da varanda, onde estavam as tábuas de frios. Salames, queijos e pães foram colocados nos pratos com agilidade.— Você está estranha. — Francesca murmurou, me olhando de soslaio enquanto dividíamos o tr