4 NAYOLLE AKELLO
O cheiro de pão fresco era convidativo, mas eu não sentia vontade nenhuma de comer. A mesa estava posta com um café fumegante, pães quentinhos e frutas coloridas, mas tudo aquilo parecia uma cena pintada, um cenário de filme que eu não fazia parte. Manuela, com sua energia contagiante e jeito protetor, tentou mais uma vez me convencer a comer. — Ei! — chamou ela, com um olhar determinado, como se eu pudesse ouvir suas palavras. — Você precisa comer, aquele trapo de homem não merece seu sofrimento, amiga. Apenas balancei a cabeça, reprimi a sensação de que a resposta não era uma resistência, mas sim a conclusão da minha alma, silenciada por muito tempo. O peso do meu passado ainda pairava sobre mim, feito uma nuvem escura pronta para despencar. Manuela continuava ali, alinhando os pratos na mesa, seus movimentos eram rápidos e decididos, como se estivesse em um combate contra a minha dor. O jeito que ela ajeitava os talheres, com pequenas batidinhas nas bordas, parecia com um ritual que visava afastar os maus espíritos que eu carregava. — Você sabe que está segura aqui, não sabe?— disse ela, enquanto preparava um copo de suco. Seu nervosismo se manifestava nas mãos, que tremiam levemente, mas sua voz era firme. “Segura” era um conceito novo. Até poucos dias atrás, eu costumava me sentir “segura” no meu antigo lar, uma ilusão de conforto que se desfez com cada grito e cada tapa que soava como um fardo em meu peito. Meus olhos viajaram pela sala. As paredes estavam pintadas de um tom azul suave, uma cor que deveria acalmar, mas que para mim só lembrava a frieza dos dias que passei em um relacionamento que se transformou em um pesadelo. O sofá era de um marrom sutil, coberto por almofadas coloridas que contrastavam com meu estado de espírito. Manuela fora cuidadosa em deixar a casa com a luz natural abundante, mas isso apenas intensificava a sombra que eu sentia dentro de mim. — Vem, só um pedacinho — Manuela insistiu, colocando um pequeno pedaço de pão em minha frente. Seus olhos — geralmente tão vibrantes — agora estavam cheios de preocupação. Eu via a tensão se acumulando em sua mandíbula e suas sobrancelhas unidas em um leve franzido. Seu coração estava tão envolvido na minha luta. “Só um pedacinho”, eu pensei, mas as palavras moraram em minha garganta como uma bolha prestes a estourar. Eu via o olhar desesperado dela, e ao mesmo tempo me sentia culpada por não poder sair dessa bruma em que me afunda. — Por favor, não me olhe assim — murmurei, abaixando a cabeça. Era mais fácil não encarar o desespero dela. — Eu só quero que você se sinta melhor… — Ela hesitou, as mãos segurando a xícara de café, as unhas roídas delicadamente. — Você precisa voltar a viver, Nayo. Viver... A palavra ecoou em minha cabeça como uma piada cruel. O que eu sabia sobre viver? Tanta coisa havia se perdido, destruída sob o peso das mentiras e do terror que eu chamava de amor. Abri a boca, mas nada saiu. Um silêncio pesado nos envolveu. Nesse momento, as memórias vinham à minha mente como flashes turbulentos. As vezes em que ele se aproximava, com um sorriso torto que poderia enganar a qualquer um — exceto a mim, que conhecia a tempestade que se escondia atrás daquela máscara. Cada insulto que desferiu, cada golpe que me atingia, era como uma marca em minha alma. Eu sentia a angústia se expandir, uma bola de fogo em meu peito. “Se ao menos você soubesse como isso realmente doi”, pensei, mas as palavras permaneciam não ditas. A dor estava bem presente, porém, e meu corpo respondia. Era como se eu estivesse murmurando uma sinfonia de tristeza. — Às vezes, eu só… — minha voz falhou, e uma lágrima solitária escorreu pelo meu rosto. Socorro! Um gesto involuntário, e as memórias me atacaram de novo. O riso cru dele ecoando em minha mente, o jeito que ele me isolava do mundo. — Nayo, eu estou aqui! — A voz de Manuela cortou o transe, enquanto ela se aproximou, sentando-se ao meu lado, seus braços me envolvendo em um abraço apertado. Senti o calor dela, a sua compaixão infundindo alguma forma de esperança dentro de mim. Mas era uma esperança frágil, e a angústia continuava a se agarrar a mim como um pedaço de roupa suja. — Eu não quero ficar sozinha… — confessei, e as palavras saíram de minha boca como um suspiro involuntário. Minha respiração estava apertada, e a boca ainda me consumia. — Nunca mais você ficará sozinha, eu prometo — Murmurou Manuela, enquanto seus dedos acariciavam meu cabelo de forma suave, como uma mãe tentava confortar seu filho. Era o toque que meu ser sedento clamava. Por um momento, o peso em meu coração parecia diminuir, mas a confusão me envolveu. Como eu poderia esquecer? Como eu poderia simplesmente deixar tudo isso para trás? O fio de negação começava a se soltar, mas algo dentro de mim batia forte como um tambor: um veto à liberdade que eu sonhava. As roupas que eu usava, um vestido simples, verde-claro, emolduravam meu corpo de forma trêmula. Lembro-me de como ele adorava me ver vestida assim, mas não pela razão que eu desejava. O vestido agora era um símbolo da minha fragilidade. Eu não me sentia bonita nem acolhida, mas enjaulada. A fenda entre o que era meu e o que eu havia perdido parecia eterna. — Nayo, olhe para mim! — Manuela pedia, segurando meu braço, fazendo com que eu me visse. — Você é tão forte. Você tem um espírito indomável. As palavras dela se descarregaram em meu coração como um balde de água fria. “Fortaleza”. Me perdi nessa palavra. O que foi que eu havia feito de tão forte, a não ser sobreviver? Agora, tentando escapar desse ciclo infernal, imaginei o que voltaria a ser. — Não sou forte. Eu não sou nada — retruquei, olhando para o próprio reflexo da janela. Via uma mulher que não se reconhecia, olhos inchados, um rosto marcado pela dor. Um eco triste da solidão que impregnava a casa. — Você só precisa de tempo — tentou me consolar Manuela, a firmeza na sua voz se confundindo com a fragilidade do momento. Ela segurou meu olhar, suas mãos envoltas nas minhas em um gesto de apoio. — Vamos lado a lado, eu prometo. Senti meu coração apertar novamente, a pressão da expectativa que eu não estava pronta para lidar. A confusão dentro de mim era como um campo minado, cada movimento poderia desencadear uma explosão de sentimentos que eu mal conseguia controlar. A negação balançava sua espada sobre mim, pronta para cortar o fio que me ligava à esperança. Ali, naquele pequeno espaço, pequenas palavras se tornavam grandes guerrilhas. Manuela era minha aliada, mas eu ainda era a protagonista do meu próprio calvário. Um choro compulsivo começou a emanar de mim, um lamento que deixava minha alma nua diante de mim. O que poderia ser um café da manhã entre amigas estava se tornando um campo de batalha. Mas eu sabia que dentro daquela guerra repleta de sombras, havia uma luz que eu precisava buscar. — Você quer ir à delegacia e fazer um boletim de ocorrência contra ele? — Eu não sei ainda. — Respondi olhando para ela. — Acho que irei amanhã. — Tudo bem, Nayo. Tudo no seu devido tempo. — Continuou. — Eu vou apoiar você em qualquer decisão, entendeu? — Declarou ela. Balancei a cabeça em positivo e logo depois a abracei forte. Tão forte que parecia ser uma despedida entre amigas. — Obrigada. Manu. — Sabe de uma coisa? — O quê? — Questionei confusa. — Você precisa beber e distração. — Explicou ela. — Três longos dias que estamos nessa sofrência amiga, só não fundimos com os movens porque somos humanos. — O quê? Ah! não Manu. — Protestei, a última coisa que eu queria fazer era sair para beber com um bando de pessoas que não conheço. — Relaxa será o nosso lema, hoje. E curtir entre duas amigas solteiras. — Concluiu ela ao pôr-se em pé com a mão direita no ar como se tivesse feito o maior discurso político. Eu apenas suspirei e sem saber o que dizer diante disso. Todavia sei que um não para ela não seria resposta. Então que seja.5Nayole AKELLO Três dias que se sucederam aoacontecimento do meu rompimento com Simba, os dias têm sido bons para mim, Manuela tem feito de tudo para me ajudar a não entrar numa depressão social. Agora cá estou em frente a uma enorme casa que fica no meio do nada para um entrevista. É isso minha vida é uma maravilha. Quando soube dessa entrevista no jornal lia não perdi tempo e liguei rapidamente para eles. Sabia que um dia o hábito de ler jornais iria me ser útil. Quem não ficou muito feliz com isso foi Manu, pois seu medo era de que encontrasse Simba no caminho e me fizesse algum, entretanto não podia viver a minha vida toda com medo dele. Algum dia teria que sair de casa. Enquanto eu aguardava que os grandes portões se abrissem e eu entrasse naquela casa imponente, não pude deixar de sentir um misto de ansiedade e curiosidade e uma grande sensação tomou conta de mim, é como se já estivesse aqui antes. O lugar, cercado por árvores altas que sussurravam com o vento, tinha um ar
NAYOLLE AKELLO Estou com as malas abertas, em meio a roupas dobradas e objetos pessoais, lutando contra a sensação de que estou indo embora de algo que nunca realmente deixei. Manuela está atrás de mim, os olhos arregalados como os de um gatinho prestes a perder seu tutor. Sua preocupação é palpável, mas não vou deixar que a dúvida dela atrapalhe meu novo começo.— Você tem certeza disso? Olhe, acho que deveria pensar bem sobre esse emprego- Evidenciou seu ponto de vista, a voz trêmula com uma mistura de felicidade e apreensão.—Eu tenho, Manu. Além disso, vai ser bom finalmente colocar em prática tudo o que aprendi na escola. -- respondo, enquanto coloco um vestido azul na mala, seu tom vibrante contrastando com o marasmo da nossa sala.—Eu sei, mas…— Ela hesita, levando a mão ao quadril, uma expressão de desconfiança se formando em seu rosto. —Acho que é muito estranho, sabe? O lugar é afastado da cidade e eu nunca conheci ninguém que vive lá.—Pois é, mas você não pode achar que,
Nayole AKELLO — Então, já viu o seu chefe? Ele é bonito? — Tagarelou Manu na outra linha, sua voz soando como uma música distante e inquieta.— Não vele esconder nada em? — Vou esconder o que? Aqui não tem nada demais a não ser só um pouco assustador. — Respondi, subindo as escadas tortuosas daquela clínica. Cada passo parecia ressoar com a expectativa e o medo do desconhecido. O ar estava carregado, como se as paredes absorvessem os sussurros dos pacientes e deixassem escapar uma energia inquietante.Assim que cheguei ao segundo andar, o eco dos meus pensamentos foi quebrado por um som distante. Era uma cadeira de rodas girando, a madeira rangendo sob o peso de algo que não conseguia ver. A conexão com Manu sempre me trouxe conforto, mas, naquele momento, suas perguntas apenas aumentavam minha ansiedade.— Nayole, você está ainda aí? — A voz de Manu havia mudado, a preocupação crescia.— Estou. Só... um pouco tensa. Aqui não é o que eu esperava. Estou constantemente a ter sensações
NAYOLE AKELLO Respirei fundo, essa era a centésima vez que fazia isso. Depois de ontem, fiquei muito pensativa sobre continuar ou não com esse trabalho. Recordo-me do porquê da escolha dessa profissão; mesmo sem nunca ter tido a oportunidade de exercer como profissional, a paixão pelo que faço ainda queimava em mim. Mas a ideia de largar tudo e voltar para a Namíbia seduzia, como um canto distante que não sabia se realmente existia. Olhei em volta, para as paredes opulentas da mansão e logo percebi: esse lugar não era um lar, mas uma prisão disfarçada.Com um uniforme que refletia a formalidade exigida, pus-me a caminho do quarto dele, que eu carinhosamente chamava de “quarto das sombras”. Os corredores eram longos e afastados, com uma luz tênue que criava mais silêncio do que conforto. Na verdade, eu sentia que o próprio ar estava carregado com um tipo de treva que se infiltrou em mim a cada passo. Era como se a mansão tivesse a capacidade de respirar seus próprios segredos obscuros
NAYOLE AKELLO Sento-me na cama, os lençois ainda quentes ao meu redor, mas meu corpo parece um frágil palácio de emoções destroçadas. A luz da lua consegue atravessar as cortinas, derretendo-se em um tom suave e quase dolorido, e eu não consigo escapar da presença dele em meus pensamentos. Apollo Mthunzi. Só o nome me provoca sensações inusitadas, como se mil borboletas dançarem em meu estômago.Fecho os olhos, tentando, em vão, afastar seus ecos da minha mente. Já não sei como viver assim, constantemente assombrada por um desejo que mistura conforto e desespero. Ouvindo o tique-taque do relógio, me vejo proibida de avançar, de recuar, como se algo invisível mantivesse meu corpo na borda do precipício.Olhei para o telemóvel e bufo chateada, ainda madruga. Levanto-me da cama, a superfície macia do colchão se desfazendo sob mim, e caminho hesitante até a porta. Ao abri-la, uma brisa fresca parece acariciar minha pele, mas não me engano, é também uma lufada de ansiedade. Jogo a cabe
NAYOLE AKELLO Olhei pela janela e a chuva caía com força, batendo nas vidraças com um ritmo quase hipnótico. Levantei-me da cama, sentindo cada movimento como se um peso invisível estivesse grudado em meus ombros. Após um breve momento de hesitação, decidi que precisava de algo para me reanimar e fui em direção à cozinha.Duas semanas se passaram desde que cheguei aqui e a sensação de que o tempo deslizava entre meus dedos, como areia numa praia deserta, tornou-se insuportável. O verão se despediu, dando lugar ao outono, e eu me encontrava em uma batalha interna, lutando para entender o que estava acontecendo dentro de mim.Os passos silenciosos pelo corredor pareciam ecoar em um vazio que só crescia. Cada batida do meu coração ressoava, e eu mal podia concentrar-me na tarefa simples de encher uma garrafa de água. Enquanto esperava a torneira encher, percebi que minha mente divagava, viajando até ele. Sua presença, sombria e cheia de enigmas, havia se infiltrado nos meus pensamentos,
00 NAYOLE AKELLOFalta menos de uma hora para a minha entrevista de emprego, que na verdade é um teste para um comercial. Estou muito ansiosa e nervosa, muitas emoções para um dia só. Simba, meu noivo saiu muito cedo antes mesmo eu despertar. Olho para o relógio na paredes amarela a direita e quase infarto. — Ai! Droga. Vou me atrasar. – Praguejo em mil idiomas, que não sei falar enquanto pego minha bolsa e saio a correr do apartamento do de Simba. Se não fosse pela insistência dele, provavelmente não estaria nesta situação. Simba não gostou muito da ideia quando apresentei para ele e tenho quase a certeza de que fez de propósito. Mas fazer o que? É assim que homens apaixonado agem na tem muito o que falar. Já na portaria, cumprimento o senhor Romeu, ele sorri para mim e faço o mesmo. O carro de Emanuela, esta estacionando um pouco distande da portaria do prédio. Ela bosina fazendo correr ate ela, entro no corro e olhos para ela que esta com o rosto tranco e uma so
1 NAYOLE AKELLO Olho para a janela pensativa, não sei de que forma irei convencer Simba da ideia de aceitar gravar o comercial, isso seria muito bom para nós dois principalmente na questão financeira. Simba e eu somos de Namíbia, dois miúdos imaturos que queriam mudar de vida, foi isso que os pais deles disseram quando ele contou sobre a viagem. Embora dona Luciana e senhor João fossem uns bons pais para ele, nunca aceitaram a ideia do filho mudar de país ainda mais Europeu. Quando Simba e eu nos conhecemos éramos adolescentes ele estava nos seus dezassete anos e eu quinze. Fomos grandes amigos antes de tudo isso se transformar em um romance, estudavamos na mesma escola, ele é vem de uma boa família com uma condição financeira estável e eu bem... Eu era só uma rapariga que fazia de tudo para sobreviver. Hoje com vinte e quatro anos e vinte e seis nos tornamos noivos e realizamos o sonho de vir para cá. Os anos não tem sido fácil, ele trabalha em dois empregos para no