Capítulo 2
Luna Na manhã seguinte, acordei com a luz dourada atravessando as frestas da cortina, mas não foi a claridade que me tirou do torpor, foi o silêncio. Um silêncio estranho, espesso, como se o mundo lá fora estivesse em pausa e tudo ao meu redor estivesse esperando que eu fizesse o primeiro movimento. Os lençóis ainda estavam macios, os pulsos livres dessa vez, e uma bandeja com café da manhã repousava sobre a mesa ao lado. Frutas cortadas com precisão, suco fresco, croissants quentes. Luxo. Cuidado. Manipulação. Sentei-me com cautela, cada músculo tenso, cada pensamento disparado em direções diferentes. Dante Moretti ainda estava naquele lugar, em algum canto observando. Era o tipo de homem que nunca deixava de ver. Mesmo quando não estava à vista. Peguei uma maçã da bandeja com dedos trêmulos. Morder ou não morder? Comer o que o inimigo te serve era sempre um risco, mas minha fome venceu o orgulho. E no segundo em que dei a primeira mordida, a maçã estalou em minha boca, fresca e real, e foi isso que me fez lembrar que aquilo também era real. Meu chefe estava morto. Eu havia sido sequestrada. E agora, estava ali, servida como hóspede em uma prisão de luxo. A maçaneta girou, e meu corpo congelou. Dante entrou no quarto com o mesmo andar calmo, confiante, carregando uma pasta de couro nas mãos. Vestia uma camisa cinza escura, abotoada até o pescoço, e a gravata afrouxada parecia um detalhe proposital. Os olhos pousaram em mim como se estivessem medindo meu progresso, testando minha reação. — Dormiu bem? — ele perguntou, como se fôssemos velhos amigos, como se nada do que acontecera na noite anterior tivesse acontecido. — Melhor do que alguém sequestrada deveria dormir — retruquei, e a sombra de um sorriso cruzou seus lábios. Ele puxou uma cadeira ao lado da cama e abriu a pasta, espalhando alguns papéis sobre o colchão. Contratos. Mapas. Códigos. Tudo com o selo da empresa de Marcelo. — Você cuidava dos documentos dele — disse Dante, sem me olhar. — Tudo passava pelas suas mãos. Inclusive isso. Empurrou um papel na minha direção. Meus olhos pousaram sobre ele, e minha respiração falhou. Era um contrato de transporte. Mas o que me deixou gelada foi o nome do destinatário final. Uma filial fantasma, localizada fora do país. Um esquema que envolvia lavagem de dinheiro em escala internacional. — Isso... isso não tem meu nome. Eu não assinei nada. — Mas você sabia — ele rebateu com calma. — E ficou quieta. O que me leva a crer que, mesmo sem ser oficialmente cúmplice... você é uma peça importante. Talvez a mais importante que me restou agora. — Você quer que eu te ajude. — Quero que você sobreviva — respondeu ele, firme, os olhos voltando aos meus. — E se puder me ajudar no processo, melhor ainda. Ficamos em silêncio por alguns segundos, e eu podia ouvir meu próprio coração batendo. Ele se aproximou um pouco mais, os joelhos quase tocando os meus. A proximidade me fazia perder o foco. Ele tinha cheiro de perigo, de desejo proibido, de tudo o que sempre me ensinaram a evitar — mas que, naquele momento, parecia inevitável. — E se eu recusar? — perguntei. Ele não sorriu. Não ameaçou. Apenas estendeu a mão e afastou uma mecha do meu cabelo, com um toque tão suave que me tirou o ar. — Então vou ter que encontrar outra utilidade pra você, Luna. Minhas bochechas queimaram, não de raiva, mas de algo pior. Confusão. Atração. Era errado sentir o coração acelerar por alguém como ele. Um homem que transformava o medo em fascínio, o perigo em magnetismo. Aquela noite, ele me deixou sair do quarto. A mansão onde estava era algo saído de um filme: mármore, espelhos antigos, obras de arte, corredores longos onde o eco dos passos parecia contar segredos. Nenhum guarda à vista, mas eu sentia os olhos. Eles estavam por toda parte. E mesmo assim, Dante me guiava como se estivesse me apresentando à minha nova casa, ou ao meu novo cativeiro disfarçado de palácio. No jardim dos fundos, paramos diante de uma fonte antiga. A água corria num som hipnótico, e ele se virou para mim como se esperasse que eu dissesse algo. — Por que está me tratando assim? — perguntei, sem conseguir esconder a confusão. — Não faz sentido. Você devia me manter presa num porão, não me deixar ver o sol. Dante cruzou os braços, o olhar escurecendo com algo que parecia raiva contida... ou memória. — Porque você não é um troféu. Não é uma prisioneira comum. Eu vi seus olhos ontem. Você não é como eles. — Como quem? — Os que correm. Os que traem. Os que sorriem enquanto apunhalam. — Ele deu um passo mais perto. — Você luta. Mesmo com medo. Mesmo sem chance. Isso... me interessa. — Isso te excita — corrigi, amarga. Ele não negou. Apenas riu baixo, rouco, e se inclinou até que seu rosto estivesse a centímetros do meu. — Talvez. Mas também me intriga. E poucas coisas me intrigam hoje em dia, Luna Santiago. Foi ali, diante daquela fonte de pedra antiga, com o som da água caindo num ritmo quase hipnótico, que compreendi uma verdade que me atingiu mais fundo do que eu estava preparada para aceitar. Dante estava parado ao meu lado, mas sua presença era como um campo gravitacional. Forte. Densa. Impossível de ignorar. Ele não dizia nada, apenas me observava com aquele olhar indecifrável que parecia atravessar pele, osso e segredos. E foi nesse silêncio que eu soube. Ele não ia me deixar ir. Não porque precisava de mim como uma moeda de troca, ou porque queria vingança pela ligação que tive com Marcelo. Não era sobre justiça. Não era sobre negócios. Era algo mais sombrio. Mais instintivo. Mais pessoal. Dante Moretti havia decidido me manter por perto. Como uma peça em um jogo que só ele compreendia por completo. Como alguém que ele ainda estava tentando entender… ou possuir. E o mais assustador de tudo não foi perceber que eu estava presa. Foi perceber que, por um instante terrivelmente breve, e completamente imperdoável, eu não quis fugir. Não naquele momento. Não com aquele homem olhando para mim como se eu fosse uma tempestade prestes a desabar sobre sua vida. O medo ainda existia. A raiva também. Mas algo mais começava a nascer. Algo tão errado quanto inevitável. E isso… isso me apavorava mais do que qualquer cela ou arma jamais poderia.Capítulo 3 Luna A escuridão que me engoliu foi curta, mas sufocante. Quando acordei, o ar tinha um cheiro novo, couro, madeira polida, e algo mais… perigo. Estava deitada em um sofá de couro escuro, a luz amarelada da luminária ao lado projetando sombras longas nas paredes. Um lugar elegante, silencioso. E estranho demais para ser meu. Me sentei devagar, o coração disparado. Os sapatos tinham sumido. Minha bolsa também. Mas minhas roupas estavam intactas, e isso, por algum motivo, me tranquilizou. Por um instante. — Bom dia, Bella. A voz veio de um canto da sala, baixa, controlada. Dante. Ele estava ali de novo. Sentado em uma poltrona de veludo, um copo de uísque entre os dedos. Terno impecável, cabelo arrumado, olhar predatório.Me encolhi por receio.— Luna, você está com medo? Ele perguntou com a voz rouca, se aproximando devagar de onde estava. Queria sumir, desaparecer, mas reagi com perguntas. . — O que você quer de mim? O que sou para você? — Disse com raiva e curiosid
Capítulo 4LunaA biblioteca de Dante era diferente do resto da casa, mais escura, mais densa, com estantes que iam do chão ao teto, cheias de livros antigos, muitos deles com lombadas em línguas que eu não reconhecia. Ele estava de pé, de costas para mim, olhando pela janela como se o mundo lá fora oferecesse algo melhor que o caos dentro daquela casa.— Já viu o suficiente? — ele perguntou sem se virar.— Vi o suficiente pra saber que você quer me usar tanto quanto Marcelo. — Me aproximei, sem medo. Já tinha ultrapassado essa fase. — A diferença é que você me contou antes. Pontos pela honestidade.Dante virou-se devagar. Seus olhos percorreram meu rosto, meu corpo, como se procurassem sinais de fraqueza. Mas eu estava firme.— Você é rápida. Gosto disso. — Ele apontou para a poltrona à frente da mesa. — Sente-se. Quero te mostrar por que ainda está viva.— Porque sou útil.— Porque é valiosa. E há uma diferença aí, Luna. Uma ferramenta é útil. Mas algo valioso... precisa ser protegi
Capítulo 5LunaO sol mal começava a nascer quando a porta do meu quarto se abriu com um leve rangido. Nenhuma batida, nenhum anúncio. Apenas uma figura feminina entrando em silêncio com uma bandeja de café da manhã.— Bom dia, senhorita Luna — disse, com um sotaque leve. Cabelos escuros presos em um coque firme, uniforme impecável. Olhos atentos, mas sem julgamento.— Você trabalha para ele? — perguntei, sentando devagar na cama.— Trabalho para esta casa. O senhor Moretti me pediu para garantir que estivesse bem alimentada. Disse que hoje seria um dia importante.“Importante”. A palavra ficou pairando no ar, carregada de peso. Suspirei, empurrando as cobertas para o lado. Vesti o roupão de seda que alguém — provavelmente ela — havia deixado dobrado sobre a poltrona, e caminhei até a bandeja. Café quente, pão fresco, frutas cortadas com perfeição. Nada combinava com a ideia de cárcere. Mas, de alguma forma, tudo era ainda mais perturbador.— Qual seu nome?— Chiara.— E ele... sempre
LunaO carro avançava pelas ruas de São Paulo. Dante dirigia em silêncio, os olhos presos na estrada, mas cada centímetro do seu corpo parecia alerta. Eu observava a cidade passar pela janela, familiar e estranha ao mesmo tempo. Sabia que, ao final daquele dia, tudo poderia mudar de novo.— Para onde estamos indo? — perguntei, finalmente quebrando o silêncio.— Para um dos nossos armazéns. Quero que veja como funciona uma parte do que sustenta essa guerra — ele respondeu, sem tirar os olhos da estrada. — E também quero que conheça algumas pessoas importantes. Pessoas que você talvez precise liderar um dia.Engasguei com a última parte da frase.— Liderar? Está brincando, certo?Ele lançou um olhar rápido na minha direção, um meio sorriso nos lábios.— Estou sempre sério quando se trata de você, Luna.O silêncio voltou, mas dessa vez mais carregado. Quando chegamos ao local, um galpão aparentemente abandonado, guardas armados abriram o portão sem questionar. Lá dentro, a movimentação e
Capítulo 7LunaO relógio marcava 10h43 quando Dante me conduziu a um dos andares inferiores da mansão. A escada era de mármore negro, e as luzes suaves dos abajures de parede davam ao ambiente um ar quase sagrado — como se estivéssemos entrando em um templo. Ou em uma câmara de verdades perigosas.Caminhamos em silêncio. Ele não me disse para onde íamos. Eu também não perguntei. Estava ocupada demais tentando conter a sensação de que o chão estava prestes a ruir debaixo dos meus pés.Quando as portas duplas se abriram, dei de cara com uma sala de arquivos. Moderna. Vidros blindados, gavetas digitalizadas, monitores embutidos nas paredes. Parecia mais o centro de controle de uma operação do governo do que parte da casa de um mafioso.— O que é isso? — murmurei, sentindo o estômago apertar.— Seu passado. E talvez, seu futuro — ele respondeu, caminhando até um dos painéis e digitando um código.A tela piscou, revelando um perfil. O meu.Meu rosto. Meu nome completo. Meus dados. Mas con
Capítulo 8LunaEu achava que estava apenas sobrevivendo — me mantendo inteira em um mundo que tentava me consumir. Mas a verdade é que, dia após dia, algo dentro de mim começava a ceder. A mudar. Era sutil, quase imperceptível. Mas era real.A manhã começou como as outras desde que cheguei ali. O sol filtrando pelas cortinas pesadas, o silêncio denso da casa me envolvendo, e Chiara entrando pontualmente com meu café da manhã. Mas havia algo diferente nela naquele dia — um brilho nos olhos, como se estivesse à espera de algo.— Bom dia, senhorita Luna.— Pode me chamar só de Luna, Chiara — respondi, sentando na cama.Ela sorriu de leve. Sempre contida, mas nunca fria. Havia uma doçura escondida por trás daquela postura rígida.— Hoje você terá um dia fora — disse, ajeitando a bandeja sobre a mesa lateral. — O senhor Moretti pediu que se preparasse para sair com ele. Disse que quer que você veja como tudo funciona de verdade."Como tudo funciona." As palavras ecoaram como uma promessa.
Capítulo 9LunaO jantar daquela noite não foi servido na sala de refeições habitual. Em vez disso, Chiara me conduziu até um salão mais amplo no andar inferior da casa, cujas portas de madeira esculpida eu sequer tinha notado antes. Quando se abriram, fui recebida por um ambiente elegante e sombrio — luzes baixas, uma longa mesa de madeira escura e seis homens sentados ao redor dela, todos me observando com atenção.Dante estava de pé na cabeceira, de terno preto e expressão impenetrável.— Boa noite — disse ele, com um aceno sutil. — Senhores, essa é Luna Santiago. A mulher que Marcelo tentou enterrar junto com os segredos dele.A sala ficou em silêncio. O tipo de silêncio que pesa sobre os ombros. Senti meu coração acelerar, mas me mantive firme. Dante se aproximou e puxou a cadeira ao seu lado.— Sente-se. Eles precisam te conhecer... e você precisa ver com quem está lidando.Obedeci. Os olhos dos homens — alguns frios, outros avaliadores — me seguiam com intensidade. Não havia re
Capítulo 10LunaA frase dele ainda ecoava dentro de mim como um trovão contido: “Você é uma sobrevivente.” Eu havia ouvido elogios antes — falsos, vazios, sedutores. Mas aquelas palavras não foram ditas para me agradar. Foram um diagnóstico. Um veredito.Voltei a olhar para a cidade. As luzes dos prédios pareciam estrelas em queda. E por um segundo, desejei que tudo aquilo não fosse real. Mas era. Eu estava ali, ao lado do homem que deveria ser meu inimigo, tentando entender se ele era mais perigo ou mais verdade do que tudo o que já conheci.— Preciso te mostrar uma coisa — disse Dante, a voz firme, sem pausa para dúvidas.Ele me conduziu para dentro, até um dos corredores discretos que ainda não tinha explorado. Ao fundo, havia uma porta de metal com um painel biométrico. Um toque, e ela se abriu com um estalo suave.A sala era pequena, envolta em telas, cabos e equipamentos de vigilância. Uma central de inteligência. De guerra. E ali, em uma das telas, pausado no quadro exato de u