Capítulo 4
Luna A biblioteca de Dante era diferente do resto da casa, mais escura, mais densa, com estantes que iam do chão ao teto, cheias de livros antigos, muitos deles com lombadas em línguas que eu não reconhecia. Ele estava de pé, de costas para mim, olhando pela janela como se o mundo lá fora oferecesse algo melhor que o caos dentro daquela casa. — Já viu o suficiente? — ele perguntou sem se virar. — Vi o suficiente pra saber que você quer me usar tanto quanto Marcelo. — Me aproximei, sem medo. Já tinha ultrapassado essa fase. — A diferença é que você me contou antes. Pontos pela honestidade. Dante virou-se devagar. Seus olhos percorreram meu rosto, meu corpo, como se procurassem sinais de fraqueza. Mas eu estava firme. — Você é rápida. Gosto disso. — Ele apontou para a poltrona à frente da mesa. — Sente-se. Quero te mostrar por que ainda está viva. — Porque sou útil. — Porque é valiosa. E há uma diferença aí, Luna. Uma ferramenta é útil. Mas algo valioso... precisa ser protegido. Me sentei, mantendo a expressão neutra, mesmo que a fala dele tivesse causado um pequeno tremor dentro de mim. Ele abriu uma gaveta, tirou um tablet e deslizou para mim. Era um dossiê. Com meu nome. — Você acha que Marcelo era seu chefe? — ele perguntou. — Mas você estava ligada a algo muito maior. E ele te escondeu disso. A cada página que eu lia, mais meu estômago revirava. Contas em meu nome. Documentos falsos ligados a operações de fachada. Eu estava, sem saber, no centro de algo que não compreendia. — Ele me envolveu nisso tudo. — E te jogaria aos lobos para proteger a si mesmo. Mas agora você sabe. E com o conhecimento vem o poder. Meus olhos se levantaram para encontrar os dele. Pela primeira vez, não vi apenas o mafioso. Vi o homem. Frio. Calculista. Mas, de certa forma, sincero. — O que você quer de mim, Dante? Ele se aproximou da mesa, apoiando os dois braços, inclinado na minha direção. — Quero que jogue do meu lado. Que entre nessa guerra sabendo o que está em jogo. E que, quando chegar a hora... escolha. — Escolher entre você e Marcelo? — Entre o que você era... e o que pode se tornar. E naquele instante, percebi que minha vida antiga tinha acabado. E o que viria a seguir... dependeria apenas de mim. E dele. Mas Dante não parecia ter pressa. Ele girou o tablet de volta para si e pousou os olhos sobre mim com um peso que me fez sentir pequena — não de um jeito frágil, mas como se eu estivesse diante de uma força que movia coisas, decidia destinos. — Marcelo usava você, Luna. Mas não da maneira que imagina. Você era o elo que ele precisava para manter uma fachada limpa enquanto o dinheiro sujo circulava. Você assinava documentos, fazia pagamentos, aprovava contratos... sem saber que estava lavando dinheiro de tráfico e extorsão. Engoli em seco. Minha pele formigava. — Isso é sério demais. — Exato. E por isso você está aqui, em vez de em uma cela... ou em um caixão. Ele se afastou da mesa e foi até um armário discreto embutido na parede. Tirou de lá uma garrafa de vinho e duas taças. Aparentemente, para Dante, até conversas sobre crimes vinham com classe. — Não estou com sede — disse, seca. Ele riu baixo, como se esperasse exatamente isso. Serviu apenas a própria taça e deu um gole. — Você vai ficar comigo por um tempo, Luna. Não como prisioneira. Mas como protegida. Você pode sair dessa viva, pode sair disso poderosa. Só precisa jogar com inteligência. — E confiar em você? — Não. Nunca confie em ninguém nesse mundo. Nem em mim. — Ele se aproximou de novo, olhos firmes. — Mas ouça. E aprenda. Você já está no tabuleiro. Resta decidir se quer ser peão... ou rainha. O coração batia tão alto que quase abafava suas palavras. Mas eu ouvia. E, de alguma forma, parte de mim já estava começando a aceitar que aquele jogo... era meu também. As horas seguintes foram um turbilhão de informações. Dante me mostrou planilhas, documentos, imagens de câmeras, escutas. Me explicou os nomes, os codinomes, os esquemas. Era como mergulhar num mundo subterrâneo cheio de regras próprias, onde confiança era moeda rara e lealdade podia matar. — Você não é uma vítima — ele disse em certo momento, me olhando de lado. — É uma jogadora que não sabia que estava jogando. Mas agora sabe. E pode usar isso. Eu queria odiá-lo. Mas odiar Dante Moretti era como odiar uma tempestade. Inútil. Ele era inevitável. E cruelmente honesto. Ao contrário de Marcelo, que sorria enquanto te apunhalava. Quando a madrugada caiu, a mansão mergulhou em um silêncio espesso, quase reverente. As paredes pareciam sussurrar segredos antigos, e cada passo que eu dava ecoava como se fosse um lembrete de que eu não pertencia àquele lugar. Ou pelo menos… não ainda. Dante me guiou por um corredor longo e elegantemente iluminado, sem dizer uma palavra. Não precisava. A tensão entre nós era quase palpável, dançando no ar como eletricidade antes de uma tempestade. Eu o seguia em silêncio, observando o modo como ele caminhava com tanta confiança, como se fosse o dono do mundo. Talvez ele fosse mesmo. Ou, pelo menos, de um mundo do qual eu mal começava a entender as regras. Ele parou diante de uma porta dupla, feita de madeira escura e entalhada com detalhes tão refinados que pareciam saídos de um palácio. Abriu uma das folhas lentamente, revelando um quarto que não combinava com a imagem de cativeiro que eu teria imaginado. Tudo ali parecia ter sido cuidadosamente escolhido, os móveis elegantes, os lençóis de linho, a poltrona perto da lareira, as cortinas pesadas que vedavam a janela. O ambiente exalava luxo e conforto, mas também havia algo mais… algo que me dizia que aquele quarto era tanto um refúgio quanto uma prisão dourada. — Esse será seu quarto a partir de agora — Dante disse, parando na soleira. Sua voz era baixa, mas firme, como se cada palavra fosse uma ordem disfarçada de gentileza. — Foi preparado especialmente para você. Virei-me para encará-lo, procurando qualquer sinal de ironia. Não encontrei. Havia algo nos olhos dele, não suavidade, mas talvez... uma espécie de respeito silencioso. Como se reconhecesse que eu não era apenas mais uma peça em seu jogo. — Amanhã começa uma nova fase — ele continuou, sem desviar o olhar. — Vamos ver do que você é feita, Luna Santiago. Fiquei parada, absorvendo o peso daquelas palavras, enquanto ele recuava e puxava a porta com lentidão calculada. O clique do trinco soou mais alto do que deveria, e por um segundo, tive a impressão de que a casa inteira ouvira. Sozinha ali dentro, com os pensamentos zunindo alto na cabeça, caminhei até a cama e sentei na beirada. Passei os dedos pelo tecido macio do cobertor, como se aquilo pudesse me ancorar. Tudo em minha vida tinha mudado tão rápido… e, no entanto, o que me perturbava não era o lugar, nem o sequestro. Era outra coisa. Algo muito mais profundo. Porque, pela primeira vez desde que Dante Moretti entrou na minha vida, eu me peguei pensando... e se eu não quiser mais fugir? A pergunta veio baixa, sussurrada dentro da minha mente, mas sua força me sacudiu por dentro. Não porque fosse absurda, mas porque era assustadoramente real. Eu, Luna Santiago, sempre tão prática, tão decidida, tão boa em sobreviver… estava começando a duvidar da minha própria vontade de escapar. Talvez fosse o jeito como Dante falava comigo — como se eu tivesse valor. Talvez fosse o fato de ele ter me mostrado a verdade sobre Marcelo antes de tentar me manipular. Ou talvez, só talvez, fosse algo mais obscuro, mais íntimo. A sensação incômoda de estar finalmente sendo vista, mesmo que por alguém tão perigoso quanto ele. E essa dúvida, esse pequeno sussurro dentro de mim, foi mais assustador do que qualquer ameaça. Porque talvez, sem perceber, eu já estivesse me tornando parte daquele mundo. E, no fundo, uma parte de mim... não odiava isso.Capítulo 5LunaO sol mal começava a nascer quando a porta do meu quarto se abriu com um leve rangido. Nenhuma batida, nenhum anúncio. Apenas uma figura feminina entrando em silêncio com uma bandeja de café da manhã.— Bom dia, senhorita Luna — disse, com um sotaque leve. Cabelos escuros presos em um coque firme, uniforme impecável. Olhos atentos, mas sem julgamento.— Você trabalha para ele? — perguntei, sentando devagar na cama.— Trabalho para esta casa. O senhor Moretti me pediu para garantir que estivesse bem alimentada. Disse que hoje seria um dia importante.“Importante”. A palavra ficou pairando no ar, carregada de peso. Suspirei, empurrando as cobertas para o lado. Vesti o roupão de seda que alguém — provavelmente ela — havia deixado dobrado sobre a poltrona, e caminhei até a bandeja. Café quente, pão fresco, frutas cortadas com perfeição. Nada combinava com a ideia de cárcere. Mas, de alguma forma, tudo era ainda mais perturbador.— Qual seu nome?— Chiara.— E ele... sempre
LunaO carro avançava pelas ruas de São Paulo. Dante dirigia em silêncio, os olhos presos na estrada, mas cada centímetro do seu corpo parecia alerta. Eu observava a cidade passar pela janela, familiar e estranha ao mesmo tempo. Sabia que, ao final daquele dia, tudo poderia mudar de novo.— Para onde estamos indo? — perguntei, finalmente quebrando o silêncio.— Para um dos nossos armazéns. Quero que veja como funciona uma parte do que sustenta essa guerra — ele respondeu, sem tirar os olhos da estrada. — E também quero que conheça algumas pessoas importantes. Pessoas que você talvez precise liderar um dia.Engasguei com a última parte da frase.— Liderar? Está brincando, certo?Ele lançou um olhar rápido na minha direção, um meio sorriso nos lábios.— Estou sempre sério quando se trata de você, Luna.O silêncio voltou, mas dessa vez mais carregado. Quando chegamos ao local, um galpão aparentemente abandonado, guardas armados abriram o portão sem questionar. Lá dentro, a movimentação e
Capítulo 7LunaO relógio marcava 10h43 quando Dante me conduziu a um dos andares inferiores da mansão. A escada era de mármore negro, e as luzes suaves dos abajures de parede davam ao ambiente um ar quase sagrado — como se estivéssemos entrando em um templo. Ou em uma câmara de verdades perigosas.Caminhamos em silêncio. Ele não me disse para onde íamos. Eu também não perguntei. Estava ocupada demais tentando conter a sensação de que o chão estava prestes a ruir debaixo dos meus pés.Quando as portas duplas se abriram, dei de cara com uma sala de arquivos. Moderna. Vidros blindados, gavetas digitalizadas, monitores embutidos nas paredes. Parecia mais o centro de controle de uma operação do governo do que parte da casa de um mafioso.— O que é isso? — murmurei, sentindo o estômago apertar.— Seu passado. E talvez, seu futuro — ele respondeu, caminhando até um dos painéis e digitando um código.A tela piscou, revelando um perfil. O meu.Meu rosto. Meu nome completo. Meus dados. Mas con
Capítulo 8LunaEu achava que estava apenas sobrevivendo — me mantendo inteira em um mundo que tentava me consumir. Mas a verdade é que, dia após dia, algo dentro de mim começava a ceder. A mudar. Era sutil, quase imperceptível. Mas era real.A manhã começou como as outras desde que cheguei ali. O sol filtrando pelas cortinas pesadas, o silêncio denso da casa me envolvendo, e Chiara entrando pontualmente com meu café da manhã. Mas havia algo diferente nela naquele dia — um brilho nos olhos, como se estivesse à espera de algo.— Bom dia, senhorita Luna.— Pode me chamar só de Luna, Chiara — respondi, sentando na cama.Ela sorriu de leve. Sempre contida, mas nunca fria. Havia uma doçura escondida por trás daquela postura rígida.— Hoje você terá um dia fora — disse, ajeitando a bandeja sobre a mesa lateral. — O senhor Moretti pediu que se preparasse para sair com ele. Disse que quer que você veja como tudo funciona de verdade."Como tudo funciona." As palavras ecoaram como uma promessa.
Capítulo 9LunaO jantar daquela noite não foi servido na sala de refeições habitual. Em vez disso, Chiara me conduziu até um salão mais amplo no andar inferior da casa, cujas portas de madeira esculpida eu sequer tinha notado antes. Quando se abriram, fui recebida por um ambiente elegante e sombrio — luzes baixas, uma longa mesa de madeira escura e seis homens sentados ao redor dela, todos me observando com atenção.Dante estava de pé na cabeceira, de terno preto e expressão impenetrável.— Boa noite — disse ele, com um aceno sutil. — Senhores, essa é Luna Santiago. A mulher que Marcelo tentou enterrar junto com os segredos dele.A sala ficou em silêncio. O tipo de silêncio que pesa sobre os ombros. Senti meu coração acelerar, mas me mantive firme. Dante se aproximou e puxou a cadeira ao seu lado.— Sente-se. Eles precisam te conhecer... e você precisa ver com quem está lidando.Obedeci. Os olhos dos homens — alguns frios, outros avaliadores — me seguiam com intensidade. Não havia re
Capítulo 10LunaA frase dele ainda ecoava dentro de mim como um trovão contido: “Você é uma sobrevivente.” Eu havia ouvido elogios antes — falsos, vazios, sedutores. Mas aquelas palavras não foram ditas para me agradar. Foram um diagnóstico. Um veredito.Voltei a olhar para a cidade. As luzes dos prédios pareciam estrelas em queda. E por um segundo, desejei que tudo aquilo não fosse real. Mas era. Eu estava ali, ao lado do homem que deveria ser meu inimigo, tentando entender se ele era mais perigo ou mais verdade do que tudo o que já conheci.— Preciso te mostrar uma coisa — disse Dante, a voz firme, sem pausa para dúvidas.Ele me conduziu para dentro, até um dos corredores discretos que ainda não tinha explorado. Ao fundo, havia uma porta de metal com um painel biométrico. Um toque, e ela se abriu com um estalo suave.A sala era pequena, envolta em telas, cabos e equipamentos de vigilância. Uma central de inteligência. De guerra. E ali, em uma das telas, pausado no quadro exato de u
Capítulo 11Luna Ele puxou um outro monitor e abriu um mapa digital com vários pontos vermelhos marcando locais pela cidade.— Aqui estão as propriedades dele. Algumas no nome de laranjas. Outras disfarçadas em fundos de investimento. Há três principais centros de operação: a transportadora, o escritório da fachada e uma casa no Jardim Europa que ele usa para reuniões mais... íntimas.— E qual é o mais vulnerável?— A transportadora. Muitos funcionários. Muita entrada e saída de produtos. Um lugar perfeito para esconder cargas ilegais, documentos, lavagem de dinheiro. Já fizemos algumas escutas lá. Mas não podíamos agir diretamente, porque não tínhamos alguém confiável.— Até agora.Ele me olhou.— Você está disposta a voltar lá?Engoli em seco. A ideia de voltar para aquele mundo, onde fui enganada por tanto tempo, me fazia querer gritar. Mas ao mesmo tempo, uma parte de mim queria confrontá-lo. Queria que Marcelo me visse. Queria que ele soubesse que eu sabia.— Estou. Mas se eu vo
Capítulo 12DanteEla estava mudada.Eu vi isso nos olhos dela naquela noite — depois da gravação, depois da dor, depois do silêncio. Havia uma fúria nova em Luna Santiago. Uma firmeza que não vinha do medo, mas da escolha. Ela não queria só justiça. Queria derrubar tudo o que Marcelo Rivas construiu… e pisar sobre os escombros.E era exatamente isso que eu precisava.Esperei que amanhecesse. Deixei que ela tivesse suas horas de solidão, que lutasse com seus fantasmas. O poder real nasce do fundo do abismo. E quando Luna emergisse, não seria mais só uma peça no jogo. Seria uma jogadora.Quando a encontrei pela manhã, ela já estava vestida — calça escura, camisa branca, cabelos presos com firmeza, como uma armadura. Não disse bom dia. Não perguntou nada. Apenas me olhou como quem já sabia o que viria.— Tenho algo pra você — falei, oferecendo um envelope pardo. Ela pegou sem hesitar, abriu e leu rapidamente. Quando levantou os olhos, havia cálculo ali. E raiva contida.— Isso é um carr