Luna
O sol mal começava a nascer quando a porta do meu quarto se abriu com um leve rangido. Nenhuma batida, nenhum anúncio. Apenas uma figura feminina entrando em silêncio com uma bandeja de café da manhã.
— Bom dia, senhorita Luna — disse, com um sotaque leve. Cabelos escuros presos em um coque firme, uniforme impecável. Olhos atentos, mas sem julgamento.
— Você trabalha para ele? — perguntei, sentando devagar na cama.
— Trabalho para esta casa. O senhor Moretti me pediu para garantir que estivesse bem alimentada. Disse que hoje seria um dia importante.
“Importante”. A palavra ficou pairando no ar, carregada de peso. Suspirei, empurrando as cobertas para o lado. Vesti o roupão de seda que alguém — provavelmente ela — havia deixado dobrado sobre a poltrona, e caminhei até a bandeja. Café quente, pão fresco, frutas cortadas com perfeição. Nada combinava com a ideia de cárcere. Mas, de alguma forma, tudo era ainda mais perturbador.
— Qual seu nome?
— Chiara.
— E ele... sempre é assim?
Ela me olhou por um momento, como se ponderasse o quanto poderia dizer. Depois apenas respondeu:
— O senhor Moretti é um homem de extremos. E de palavra.
De palavra. Engraçado. Eu tinha crescido acreditando que nesse mundo promessas eram feitas apenas para serem quebradas. Mas Dante parecia ser o tipo de homem que, quando dizia que ia destruir alguém, destruía mesmo. E quando dizia que você era valiosa… ele fazia você sentir isso na pele.
Quando terminei o café, Chiara me levou até um closet. As roupas que encontrei lá pareciam saídas de uma revista de luxo — vestidos de corte impecável, sapatos novos, lingeries que me fizeram corar. Nenhuma etiqueta. Tudo escolhido sob medida.
— Isso é demais — murmurei.
— O senhor Moretti mandou preparar tudo ontem à noite.
Um arrepio percorreu minha espinha. A ideia de que ele tinha mandado escolher roupas para mim, mesmo enquanto eu dormia, me assustava... mas, de novo, me inquietava de outra forma que eu ainda não sabia nomear.
Vesti uma calça preta de alfaiataria e uma camisa branca com botões dourados. O reflexo no espelho me devolveu uma mulher que eu mal reconhecia. Elegante. Sóbria. Controlada. Como se, de algum jeito, aquele novo mundo já estivesse me moldando.
Dante me esperava no andar de baixo. De terno escuro, como sempre. As mãos cruzadas atrás das costas, como um general prestes a anunciar uma nova batalha.
— Dormiu bem?
— Como uma prisioneira de luxo — respondi com ironia, cruzando os braços.
O canto da boca dele se ergueu.
— Você vai ter um dia cheio. Quero que conheça algumas pessoas, veja o que realmente está acontecendo. Chega de teorias. Hoje você vai ver a guerra de perto.
Engoli em seco. Não sabia o que ele queria me mostrar, mas uma parte de mim — a parte que estava cansada de mentiras — precisava saber.
— E se eu não quiser participar?
— Então observe. Absorva. E no final do dia, pode decidir o que fazer com o que viu. — Ele estendeu a mão. — Confia em mim?
Olhei para aquela mão como se ela fosse uma armadilha. Talvez fosse. Mas mesmo assim… eu a segurei.
E descemos juntos os degraus para o que, eu sabia, seria um caminho sem volta.
O carro preto já nos aguardava na porta, e o motorista, silencioso como uma sombra, abriu a porta traseira para nós. Entramos sem trocar uma palavra. Dante manteve o olhar fixo na janela, os dedos batucando no joelho como se acompanhassem uma música silenciosa. Resolvi quebrar o silêncio.
— Vai me mostrar onde enterra os corpos?
— Ainda não — ele respondeu, com um sorriso enviesado. — Primeiro, vou te mostrar por que os corpos aparecem.
O carro parou em frente a um prédio discreto, fachada de tijolos antigos. Entramos por uma porta lateral, onde dois homens armados nos cumprimentaram com um aceno. Lá dentro, o cenário era completamente diferente, tecnologia de ponta, painéis de segurança, monitores exibindo imagens de câmeras espalhadas pela cidade.
— Bem-vinda ao centro de inteligência Moretti — disse ele. — Aqui, controlamos tudo: entregas, acordos, vigilância… e pessoas.
Caminhei ao lado dele por um corredor iluminado, onde vozes falavam em códigos e telas piscavam incessantemente. Nada ali lembrava uma operação criminosa. Era mais sofisticado do que qualquer empresa que já conheci.
Dante me conduziu até uma sala envidraçada. Lá dentro, uma mulher e um homem discutiam estratégias de rota com mapas digitais.
— Essa é Sofia, minha estrategista. E aquele é Lorenzo, meu analista de risco. — Ele se virou para mim. — Eles sabem quem você é.
Sofia me lançou um olhar direto. Curioso, mas não hostil.
— Você é a peça nova do tabuleiro. Espero que saiba jogar.
— Estou aprendendo — respondi.
— Aprenda rápido — disse Lorenzo, sem tirar os olhos da tela.
Ficamos ali por horas. Dante me mostrou documentos, escutas, registros. Provas de corrupção policial, tráfico, movimentações do próprio Marcelo. Cada arquivo era um golpe contra a imagem que eu tinha do homem que um dia chamei de chefe.
No final da tarde, sentada em um sofá de couro, encarei Dante com olhos diferentes.
— E o que você ganha me mostrando isso tudo?
— Ganha quem controla a verdade, Luna. — Ele se aproximou. — Quero que você veja o que realmente está em jogo. E depois, decida por si mesma.
As palavras dele ecoaram pela minha mente enquanto voltávamos. Já não sentia medo. Sentia inquietação. Sentia curiosidade. E, o mais perigoso de tudo... sentia admiração.
Quando a noite caiu e voltei para meu quarto. Chiara já havia deixado a banheira pronta, com água quente e óleos perfumados. Mergulhei, tentando lavar do corpo o peso do dia. Mas algumas marcas não saem com sabão.
Dante apareceu na porta minutos depois, sem convite, como sempre. Encostado no batente, com aquele olhar que parecia atravessar minha alma.
— Amanhã começa uma nova fase — ele disse. — Vamos ver do que você é feita, Luna Santiago.
Quando ele se afastou, fechei a porta com a mão trêmula. Deitei-me, encarando o teto escuro.
E pela primeira vez, me perguntei… e se eu não quiser mais fugir?
Essa pergunta, mais do que qualquer ameaça, era o que me assustava.
Porque talvez eu já estivesse me tornando parte daquele mundo.
LunaO carro avançava pelas ruas de São Paulo. Dante dirigia em silêncio, os olhos presos na estrada, mas cada centímetro do seu corpo parecia alerta. Eu observava a cidade passar pela janela, familiar e estranha ao mesmo tempo. Sabia que, ao final daquele dia, tudo poderia mudar de novo.— Para onde estamos indo? — perguntei, finalmente quebrando o silêncio.— Para um dos nossos armazéns. Quero que veja como funciona uma parte do que sustenta essa guerra — ele respondeu, sem tirar os olhos da estrada. — E também quero que conheça algumas pessoas importantes. Pessoas que você talvez precise liderar um dia.Engasguei com a última parte da frase.— Liderar? Está brincando, certo?Ele lançou um olhar rápido na minha direção, um meio sorriso nos lábios.— Estou sempre sério quando se trata de você, Luna.O silêncio voltou, mas dessa vez mais carregado. Quando chegamos ao local, um galpão aparentemente abandonado, guardas armados abriram o portão sem questionar. Lá dentro, a movimentação e
Capítulo 7LunaO relógio marcava 10h43 quando Dante me conduziu a um dos andares inferiores da mansão. A escada era de mármore negro, e as luzes suaves dos abajures de parede davam ao ambiente um ar quase sagrado — como se estivéssemos entrando em um templo. Ou em uma câmara de verdades perigosas.Caminhamos em silêncio. Ele não me disse para onde íamos. Eu também não perguntei. Estava ocupada demais tentando conter a sensação de que o chão estava prestes a ruir debaixo dos meus pés.Quando as portas duplas se abriram, dei de cara com uma sala de arquivos. Moderna. Vidros blindados, gavetas digitalizadas, monitores embutidos nas paredes. Parecia mais o centro de controle de uma operação do governo do que parte da casa de um mafioso.— O que é isso? — murmurei, sentindo o estômago apertar.— Seu passado. E talvez, seu futuro — ele respondeu, caminhando até um dos painéis e digitando um código.A tela piscou, revelando um perfil. O meu.Meu rosto. Meu nome completo. Meus dados. Mas con
Capítulo 8LunaEu achava que estava apenas sobrevivendo — me mantendo inteira em um mundo que tentava me consumir. Mas a verdade é que, dia após dia, algo dentro de mim começava a ceder. A mudar. Era sutil, quase imperceptível. Mas era real.A manhã começou como as outras desde que cheguei ali. O sol filtrando pelas cortinas pesadas, o silêncio denso da casa me envolvendo, e Chiara entrando pontualmente com meu café da manhã. Mas havia algo diferente nela naquele dia — um brilho nos olhos, como se estivesse à espera de algo.— Bom dia, senhorita Luna.— Pode me chamar só de Luna, Chiara — respondi, sentando na cama.Ela sorriu de leve. Sempre contida, mas nunca fria. Havia uma doçura escondida por trás daquela postura rígida.— Hoje você terá um dia fora — disse, ajeitando a bandeja sobre a mesa lateral. — O senhor Moretti pediu que se preparasse para sair com ele. Disse que quer que você veja como tudo funciona de verdade."Como tudo funciona." As palavras ecoaram como uma promessa.
Capítulo 9LunaO jantar daquela noite não foi servido na sala de refeições habitual. Em vez disso, Chiara me conduziu até um salão mais amplo no andar inferior da casa, cujas portas de madeira esculpida eu sequer tinha notado antes. Quando se abriram, fui recebida por um ambiente elegante e sombrio — luzes baixas, uma longa mesa de madeira escura e seis homens sentados ao redor dela, todos me observando com atenção.Dante estava de pé na cabeceira, de terno preto e expressão impenetrável.— Boa noite — disse ele, com um aceno sutil. — Senhores, essa é Luna Santiago. A mulher que Marcelo tentou enterrar junto com os segredos dele.A sala ficou em silêncio. O tipo de silêncio que pesa sobre os ombros. Senti meu coração acelerar, mas me mantive firme. Dante se aproximou e puxou a cadeira ao seu lado.— Sente-se. Eles precisam te conhecer... e você precisa ver com quem está lidando.Obedeci. Os olhos dos homens — alguns frios, outros avaliadores — me seguiam com intensidade. Não havia re
Capítulo 10LunaA frase dele ainda ecoava dentro de mim como um trovão contido: “Você é uma sobrevivente.” Eu havia ouvido elogios antes — falsos, vazios, sedutores. Mas aquelas palavras não foram ditas para me agradar. Foram um diagnóstico. Um veredito.Voltei a olhar para a cidade. As luzes dos prédios pareciam estrelas em queda. E por um segundo, desejei que tudo aquilo não fosse real. Mas era. Eu estava ali, ao lado do homem que deveria ser meu inimigo, tentando entender se ele era mais perigo ou mais verdade do que tudo o que já conheci.— Preciso te mostrar uma coisa — disse Dante, a voz firme, sem pausa para dúvidas.Ele me conduziu para dentro, até um dos corredores discretos que ainda não tinha explorado. Ao fundo, havia uma porta de metal com um painel biométrico. Um toque, e ela se abriu com um estalo suave.A sala era pequena, envolta em telas, cabos e equipamentos de vigilância. Uma central de inteligência. De guerra. E ali, em uma das telas, pausado no quadro exato de u
Capítulo 11Luna Ele puxou um outro monitor e abriu um mapa digital com vários pontos vermelhos marcando locais pela cidade.— Aqui estão as propriedades dele. Algumas no nome de laranjas. Outras disfarçadas em fundos de investimento. Há três principais centros de operação: a transportadora, o escritório da fachada e uma casa no Jardim Europa que ele usa para reuniões mais... íntimas.— E qual é o mais vulnerável?— A transportadora. Muitos funcionários. Muita entrada e saída de produtos. Um lugar perfeito para esconder cargas ilegais, documentos, lavagem de dinheiro. Já fizemos algumas escutas lá. Mas não podíamos agir diretamente, porque não tínhamos alguém confiável.— Até agora.Ele me olhou.— Você está disposta a voltar lá?Engoli em seco. A ideia de voltar para aquele mundo, onde fui enganada por tanto tempo, me fazia querer gritar. Mas ao mesmo tempo, uma parte de mim queria confrontá-lo. Queria que Marcelo me visse. Queria que ele soubesse que eu sabia.— Estou. Mas se eu vo
Capítulo 12DanteEla estava mudada.Eu vi isso nos olhos dela naquela noite — depois da gravação, depois da dor, depois do silêncio. Havia uma fúria nova em Luna Santiago. Uma firmeza que não vinha do medo, mas da escolha. Ela não queria só justiça. Queria derrubar tudo o que Marcelo Rivas construiu… e pisar sobre os escombros.E era exatamente isso que eu precisava.Esperei que amanhecesse. Deixei que ela tivesse suas horas de solidão, que lutasse com seus fantasmas. O poder real nasce do fundo do abismo. E quando Luna emergisse, não seria mais só uma peça no jogo. Seria uma jogadora.Quando a encontrei pela manhã, ela já estava vestida — calça escura, camisa branca, cabelos presos com firmeza, como uma armadura. Não disse bom dia. Não perguntou nada. Apenas me olhou como quem já sabia o que viria.— Tenho algo pra você — falei, oferecendo um envelope pardo. Ela pegou sem hesitar, abriu e leu rapidamente. Quando levantou os olhos, havia cálculo ali. E raiva contida.— Isso é um carr
Capítulo 13MarceloA luz trêmula do projetor iluminava o canto mofado do porão como uma vela acesa em um túmulo. Era a terceira vez que eu assistia ao maldito vídeo naquela manhã, e ainda assim, não conseguia tirar os olhos da tela. O uísque em minha mão já não queimava, só escorria garganta abaixo como um lembrete morno de que eu ainda estava vivo. Vivo… mas morto para o mundo.Luna estava viva.E, pior, estava com Dante.A risada dele no final do vídeo era um soco. Uma gargalhada satisfeita, debochada, logo depois de Luna dizer que queria ver a minha queda. Meu nome na boca dela como um veredito. Um alvo. Joguei o copo com força contra a parede, o vidro explodindo em mil pedaços, como o resto da vida que eu deixei para trás.Eu. Marcelo Rivas. O nome que construí com sangue, acordos e silêncio. O homem que lhe deu um nome limpo, um apartamento confortável, um emprego de confiança. Eu a tirei do nada. A moldei. Dei a ela não só uma vida — dei uma identidade. E agora ela cuspia no pr