Luna
Trabalhar para um mafioso nunca foi parte do meu plano de vida, mas planos mudam quando a sobrevivência fala mais alto que a moral. E eu sobrevivo. Sempre. Meu pai dizia que a vida era como um jogo de xadrez. Você não precisa ser a rainha, só precisa saber quando mover suas peças. E eu vinha movendo as minhas com cuidado, desde o dia em que entrei no escritório de Marcelo Rivas: olhos baixos, ouvidos atentos, boca calada. Marcelo era exigente, imprevisível, mas ele confiava em mim. O suficiente para me manter por perto, o suficiente para me fazer sentir indispensável.
O relógio marcava 20h47 quando deixei minha mesa, já com os sapatos nas mãos, e segui pelos corredores silenciosos do prédio. Era tarde demais para estar ali, mas um relatório urgente precisava ser entregue antes da reunião da manhã seguinte. A cidade do lado de fora parecia quieta, mas São Paulo nunca dorme de verdade. Sempre há alguém observando, esperando, tramando. E naquela noite, senti isso mais do que nunca. Ao abrir a porta do escritório de Marcelo sem bater, um hábito adquirido depois de tantos meses, percebi de imediato que algo estava errado. O ambiente estava escuro, silencioso demais, com um ar denso que parecia pesar sobre meus ombros. Minhas mãos apertaram a pasta com mais força enquanto dava um passo hesitante para dentro.
Foi quando senti o arrepio na nuca. Um frio repentino percorreu minha espinha e meu corpo ficou em alerta. Virei devagar e o vi ali: um homem alto, de terno escuro impecável, parado junto à estante de livros, envolto pelas sombras como se fizesse parte delas. Seu olhar era intenso, afiado, escuro como a noite sem lua. E ele me observava com uma calma tão absoluta que me fez estremecer. Aquela presença não precisava de gritos, armas ou ameaças. Ele era a ameaça. E ele sabia disso.
— Luna Santiago? — ele perguntou, a voz rouca e grave.
O som do meu nome em sua boca me fez congelar. Eu conhecia aquele homem, mesmo sem reconhecer o rosto. Os sussurros nos bastidores, os arquivos confidenciais, as conversas abafadas ao telefone. Dante Moretti. O nome que fazia os homens de Marcelo empalidecerem. O inimigo. O fantasma do outro lado da guerra. A última pessoa que qualquer funcionário de Rivas esperaria encontrar.
— Quem é você? — perguntei, e não reconheci minha própria voz. Firme, desafiadora, mesmo com meu coração prestes a saltar pela boca.
Ele sorriu de canto, como quem se diverte com o fato de eu ainda fazer perguntas.
— Não se preocupe, Bella. Logo você vai descobrir.
Foi tudo o que disse antes de dar um passo à frente, e antes que eu pudesse me afastar, algo — alguém — surgiu atrás de mim. Um braço forte me agarrou pela cintura, me puxando com brutalidade. A pasta caiu no chão com um baque surdo, e um pano abafou meu grito. Lutei, chutei, tentei morder, mas não tive chance. Dois contra um, e eles sabiam exatamente como me neutralizar sem deixar rastros.
O corredor girou, as luzes tremeluziram, e a última coisa que vi antes de tudo escurecer foram os olhos de Dante, frios, decididos, intensos como o próprio inferno.
Quando despertei, não senti concreto ou sujeira sob meu corpo, mas sim lençóis macios, um colchão confortável, e o cheiro sutil de couro misturado a um perfume amadeirado e quente. Abri os olhos com dificuldade, piscando contra a luz suave que entrava pelas frestas da janela coberta por cortinas pesadas. Meus pulsos estavam presos, mas não por algemas. Fitas de veludo envolviam meus braços, firmes o bastante para me manter imobilizada, suaves o suficiente para parecerem um toque íntimo, quase... cuidadoso.
Estava em um quarto que mais parecia uma suíte de hotel de luxo. Cada detalhe gritava sofisticação: a madeira escura dos móveis, o tapete grosso sob os pés da cama, as luminárias de vidro, os quadros nas paredes. Nada de câmeras, nada de sangue. Nada do que se esperaria de um cativeiro de máfia. Mas o perigo estava ali, vivo, observando.
Dante estava sentado em uma poltrona próxima à cama, as pernas cruzadas, a camisa social desabotoada no colarinho e as mangas arregaçadas até os antebraços. Ele me observava como se eu fosse uma obra de arte que ele ainda decidia se valia a pena roubar ou destruir. Seus olhos eram impassíveis, mas havia algo neles... uma faísca estranha. Curiosidade? Interesse?
— Onde eu estou? — perguntei, com a garganta seca.
— Em segurança — respondeu ele, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
— Você me sequestrou — acusei, tentando sentar, mas ele apenas inclinou a cabeça, como quem se diverte com a obviedade.
— Eu te salvei. — Ele se levantou, caminhando até o bar no canto do quarto. Serviu dois dedos de uísque em um copo e tomou um gole antes de continuar. — Marcelo Rivas está morto, Luna.
Minha mente não processou de imediato. Era como se ele tivesse dito algo absurdo. Incrível demais. Impossível.
— Mentira.
— Verdade. O prédio onde você estava vai virar cinzas até o amanhecer. E todos que estavam lá dentro com ele... bem, nenhum deles vai contar o que aconteceu. Mas você, Luna, você saiu viva.
— Por quê?
— Porque você é inteligente. E porque eu estava lá.
Ele voltou a se aproximar, ficando ao lado da cama, perto demais. Podia sentir o calor do corpo dele, o cheiro marcante, a eletricidade que parecia vir de cada gesto. Ele era o tipo de homem que fazia a respiração vacilar mesmo quando tudo em você gritava perigo.
— Você sabe muito mais do que parece — continuou ele. — Acesso a informações, contratos, códigos. E, além disso...
Ele se inclinou, a voz abaixando até virar quase um sussurro.
— Eu queria te ver de perto.
Aquilo me fez prender a respiração. Não era uma ameaça. Era uma confissão. Um aviso. Um desejo.
— E se eu não colaborar? — perguntei, ainda tentando manter o controle, ainda agarrada à ideia de que eu poderia, de alguma forma, sair daquela situação com dignidade.
O sorriso dele sumiu, e o olhar se tornou mais sério, mais sombrio.
— Então vai descobrir o que acontece com quem desafia Dante Moretti. — Ele me observou por mais um momento e acrescentou, mais baixo: — Mas algo me diz que você não é do tipo que quebra fácil.
Aquela frase ficou ecoando em mim, enquanto ele se afastava, deixando um silêncio carregado de promessas. Eu ainda não sabia como, mas alguma coisa me dizia que aquele sequestro era só o início. E que, por mais que tentasse resistir, algo em mim já estava quebrando.
Naquela noite, perdi a liberdade.
Mas sem saber... comecei a perder muito mais do que isso.
Capítulo 2LunaNa manhã seguinte, acordei com a luz dourada atravessando as frestas da cortina, mas não foi a claridade que me tirou do torpor, foi o silêncio. Um silêncio estranho, espesso, como se o mundo lá fora estivesse em pausa e tudo ao meu redor estivesse esperando que eu fizesse o primeiro movimento.Os lençóis ainda estavam macios, os pulsos livres dessa vez, e uma bandeja com café da manhã repousava sobre a mesa ao lado. Frutas cortadas com precisão, suco fresco, croissants quentes. Luxo. Cuidado. Manipulação.Sentei-me com cautela, cada músculo tenso, cada pensamento disparado em direções diferentes. Dante Moretti ainda estava naquele lugar, em algum canto observando. Era o tipo de homem que nunca deixava de ver. Mesmo quando não estava à vista.Peguei uma maçã da bandeja com dedos trêmulos. Morder ou não morder? Comer o que o inimigo te serve era sempre um risco, mas minha fome venceu o orgulho. E no segundo em que dei a primeira mordida, a maçã estalou em minha boca, fr
Capítulo 3 Luna A escuridão que me engoliu foi curta, mas sufocante. Quando acordei, o ar tinha um cheiro novo, couro, madeira polida, e algo mais… perigo. Estava deitada em um sofá de couro escuro, a luz amarelada da luminária ao lado projetando sombras longas nas paredes. Um lugar elegante, silencioso. E estranho demais para ser meu. Me sentei devagar, o coração disparado. Os sapatos tinham sumido. Minha bolsa também. Mas minhas roupas estavam intactas, e isso, por algum motivo, me tranquilizou. Por um instante. — Bom dia, Bella. A voz veio de um canto da sala, baixa, controlada. Dante. Ele estava ali de novo. Sentado em uma poltrona de veludo, um copo de uísque entre os dedos. Terno impecável, cabelo arrumado, olhar predatório.Me encolhi por receio.— Luna, você está com medo? Ele perguntou com a voz rouca, se aproximando devagar de onde estava. Queria sumir, desaparecer, mas reagi com perguntas. . — O que você quer de mim? O que sou para você? — Disse com raiva e curiosid
Capítulo 4LunaA biblioteca de Dante era diferente do resto da casa, mais escura, mais densa, com estantes que iam do chão ao teto, cheias de livros antigos, muitos deles com lombadas em línguas que eu não reconhecia. Ele estava de pé, de costas para mim, olhando pela janela como se o mundo lá fora oferecesse algo melhor que o caos dentro daquela casa.— Já viu o suficiente? — ele perguntou sem se virar.— Vi o suficiente pra saber que você quer me usar tanto quanto Marcelo. — Me aproximei, sem medo. Já tinha ultrapassado essa fase. — A diferença é que você me contou antes. Pontos pela honestidade.Dante virou-se devagar. Seus olhos percorreram meu rosto, meu corpo, como se procurassem sinais de fraqueza. Mas eu estava firme.— Você é rápida. Gosto disso. — Ele apontou para a poltrona à frente da mesa. — Sente-se. Quero te mostrar por que ainda está viva.— Porque sou útil.— Porque é valiosa. E há uma diferença aí, Luna. Uma ferramenta é útil. Mas algo valioso... precisa ser protegi
Capítulo 5LunaO sol mal começava a nascer quando a porta do meu quarto se abriu com um leve rangido. Nenhuma batida, nenhum anúncio. Apenas uma figura feminina entrando em silêncio com uma bandeja de café da manhã.— Bom dia, senhorita Luna — disse, com um sotaque leve. Cabelos escuros presos em um coque firme, uniforme impecável. Olhos atentos, mas sem julgamento.— Você trabalha para ele? — perguntei, sentando devagar na cama.— Trabalho para esta casa. O senhor Moretti me pediu para garantir que estivesse bem alimentada. Disse que hoje seria um dia importante.“Importante”. A palavra ficou pairando no ar, carregada de peso. Suspirei, empurrando as cobertas para o lado. Vesti o roupão de seda que alguém — provavelmente ela — havia deixado dobrado sobre a poltrona, e caminhei até a bandeja. Café quente, pão fresco, frutas cortadas com perfeição. Nada combinava com a ideia de cárcere. Mas, de alguma forma, tudo era ainda mais perturbador.— Qual seu nome?— Chiara.— E ele... sempre
LunaO carro avançava pelas ruas de São Paulo. Dante dirigia em silêncio, os olhos presos na estrada, mas cada centímetro do seu corpo parecia alerta. Eu observava a cidade passar pela janela, familiar e estranha ao mesmo tempo. Sabia que, ao final daquele dia, tudo poderia mudar de novo.— Para onde estamos indo? — perguntei, finalmente quebrando o silêncio.— Para um dos nossos armazéns. Quero que veja como funciona uma parte do que sustenta essa guerra — ele respondeu, sem tirar os olhos da estrada. — E também quero que conheça algumas pessoas importantes. Pessoas que você talvez precise liderar um dia.Engasguei com a última parte da frase.— Liderar? Está brincando, certo?Ele lançou um olhar rápido na minha direção, um meio sorriso nos lábios.— Estou sempre sério quando se trata de você, Luna.O silêncio voltou, mas dessa vez mais carregado. Quando chegamos ao local, um galpão aparentemente abandonado, guardas armados abriram o portão sem questionar. Lá dentro, a movimentação e
Capítulo 7LunaO relógio marcava 10h43 quando Dante me conduziu a um dos andares inferiores da mansão. A escada era de mármore negro, e as luzes suaves dos abajures de parede davam ao ambiente um ar quase sagrado — como se estivéssemos entrando em um templo. Ou em uma câmara de verdades perigosas.Caminhamos em silêncio. Ele não me disse para onde íamos. Eu também não perguntei. Estava ocupada demais tentando conter a sensação de que o chão estava prestes a ruir debaixo dos meus pés.Quando as portas duplas se abriram, dei de cara com uma sala de arquivos. Moderna. Vidros blindados, gavetas digitalizadas, monitores embutidos nas paredes. Parecia mais o centro de controle de uma operação do governo do que parte da casa de um mafioso.— O que é isso? — murmurei, sentindo o estômago apertar.— Seu passado. E talvez, seu futuro — ele respondeu, caminhando até um dos painéis e digitando um código.A tela piscou, revelando um perfil. O meu.Meu rosto. Meu nome completo. Meus dados. Mas con
Capítulo 8LunaEu achava que estava apenas sobrevivendo — me mantendo inteira em um mundo que tentava me consumir. Mas a verdade é que, dia após dia, algo dentro de mim começava a ceder. A mudar. Era sutil, quase imperceptível. Mas era real.A manhã começou como as outras desde que cheguei ali. O sol filtrando pelas cortinas pesadas, o silêncio denso da casa me envolvendo, e Chiara entrando pontualmente com meu café da manhã. Mas havia algo diferente nela naquele dia — um brilho nos olhos, como se estivesse à espera de algo.— Bom dia, senhorita Luna.— Pode me chamar só de Luna, Chiara — respondi, sentando na cama.Ela sorriu de leve. Sempre contida, mas nunca fria. Havia uma doçura escondida por trás daquela postura rígida.— Hoje você terá um dia fora — disse, ajeitando a bandeja sobre a mesa lateral. — O senhor Moretti pediu que se preparasse para sair com ele. Disse que quer que você veja como tudo funciona de verdade."Como tudo funciona." As palavras ecoaram como uma promessa.
Capítulo 9LunaO jantar daquela noite não foi servido na sala de refeições habitual. Em vez disso, Chiara me conduziu até um salão mais amplo no andar inferior da casa, cujas portas de madeira esculpida eu sequer tinha notado antes. Quando se abriram, fui recebida por um ambiente elegante e sombrio — luzes baixas, uma longa mesa de madeira escura e seis homens sentados ao redor dela, todos me observando com atenção.Dante estava de pé na cabeceira, de terno preto e expressão impenetrável.— Boa noite — disse ele, com um aceno sutil. — Senhores, essa é Luna Santiago. A mulher que Marcelo tentou enterrar junto com os segredos dele.A sala ficou em silêncio. O tipo de silêncio que pesa sobre os ombros. Senti meu coração acelerar, mas me mantive firme. Dante se aproximou e puxou a cadeira ao seu lado.— Sente-se. Eles precisam te conhecer... e você precisa ver com quem está lidando.Obedeci. Os olhos dos homens — alguns frios, outros avaliadores — me seguiam com intensidade. Não havia re