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O Conflito Familiar

O silêncio da noite em Palermo era interrompido apenas pelo som dos grilos e pelo ocasional latido distante de um cão. A grande mansão dos Moretti, com suas paredes imponentes e janelas altas, parecia uma fortaleza isolada no coração da cidade. No entanto, naquela noite, dentro de seus muros, um turbilhão de emoções ameaçava explodir.

Enzo Moretti estava sentado à mesa da sala de jantar, seu rosto tenso enquanto olhava para o prato de comida intocado à sua frente. Ao seu redor, a atmosfera era sufocante, carregada de palavras não ditas e ressentimentos acumulados. A reunião de família havia começado com um ar de celebração, mas rapidamente descambou para o que parecia ser uma batalha silenciosa.

Seu pai, Don Salvatore Moretti, estava sentado na cabeceira da mesa, seu olhar duro como sempre. Para ele, a família era sinônimo de poder, e o poder era mantido através da obediência cega e da lealdade inquestionável. Mas naquela noite, algo havia mudado. O controle que Don Salvatore exercia sobre seus filhos começava a escapar por entre seus dedos, e ele sentia isso.

— Enzo, você deve entender que o que fazemos aqui não é só para nós — disse Don Salvatore, sua voz grave reverberando pela sala. — É para a sobrevivência da família, para manter o nosso nome vivo e respeitado.

Enzo olhou para o pai, mas não respondeu de imediato. Havia algo em seu olhar que misturava frustração e uma certa rebeldia contida. Por anos, ele havia obedecido, seguido ordens e se moldado ao caminho que seu pai havia traçado. Mas, agora, com o peso das responsabilidades caindo sobre seus ombros, ele começava a questionar até que ponto estava disposto a sacrificar sua vida e sua alma pelo poder.

— Eu entendo, pai — respondeu ele, com uma calma que parecia esconder uma tempestade interna. — Mas a que custo? A que custo continuamos com essa guerra entre famílias, com sangue sendo derramado a cada semana? Há outras maneiras de manter o poder sem estar constantemente em guerra com todos ao nosso redor.

A reação de Don Salvatore foi imediata. Ele bateu a mão com força na mesa, fazendo os talheres tremerem. Seus olhos, agora estreitos, fixaram-se nos de Enzo com uma intensidade quase cortante.

— Outras maneiras? — ele repetiu, sua voz carregada de desprezo. — Você está sugerindo que eu, Don Salvatore Moretti, negocie com traidores e inimigos como se fôssemos fracos? Não existe poder sem derramamento de sangue, Enzo. Nosso nome foi construído com sacrifício. É assim que as coisas funcionam.

Do outro lado da mesa, Luca Moretti, o irmão mais novo de Enzo, observava a cena com um misto de inquietação e curiosidade. Ele sempre fora o protegido do pai, o filho que seguia as ordens sem questionar, mas havia algo na discussão que o fazia refletir. Pela primeira vez, via Enzo não como o herdeiro obediente, mas como alguém disposto a desafiar a autoridade do pai.

— Enzo tem razão, papà — Luca disse, sua voz baixa, quase hesitante. — Talvez seja hora de pensarmos em um novo caminho. Não precisamos lutar o tempo todo.

As palavras de Luca ecoaram pela sala, e o silêncio que se seguiu foi tão pesado quanto o estalo de um chicote. Don Salvatore virou-se lentamente para ele, sua expressão incrédula, como se não pudesse acreditar no que acabara de ouvir.

— Você também? — perguntou ele, com uma frieza que fez o sangue de Luca gelar. — Vocês dois estão questionando tudo o que eu construí? Tudo o que nossa família significa?

Enzo sabia que aquela discussão estava prestes a tomar um rumo perigoso. Seu pai não era um homem que lidava bem com o questionamento de sua autoridade. Mas ele não podia recuar. Não dessa vez.

— Não estamos questionando a sua liderança, pai — disse Enzo, tentando manter a calma. — Mas estamos vivendo tempos diferentes. A violência constante está nos destruindo por dentro. Olhe ao nosso redor… nossas alianças estão enfraquecendo, as famílias estão se voltando contra nós. Se continuarmos nesse caminho, não haverá ninguém para herdar o que você construiu.

As palavras de Enzo acertaram o pai como um golpe, mas Don Salvatore não deixou transparecer. Em vez disso, seu olhar tornou-se ainda mais sombrio, e ele se levantou lentamente da mesa.

— Vocês falam como se tivessem vivido o suficiente para entender o que é manter uma família unida no poder — disse ele, sua voz baixa e controlada. — Mas vocês não sabem de nada. Cada decisão que eu tomei, cada gota de sangue que derramei, foi para garantir que vocês tivessem um futuro. E agora, vocês me vêm com essa conversa de paz?

Don Salvatore deu alguns passos ao redor da mesa, como um predador cercando sua presa. Ele parou atrás de Enzo, colocando uma mão pesada em seu ombro.

— Você é meu filho, Enzo. E você será o próximo a liderar esta família. Mas entenda uma coisa — sua voz tornou-se um sussurro carregado de ameaça —, não há espaço para fraqueza. Se você não está preparado para fazer o que é necessário, então talvez você não seja digno de carregar o nome Moretti.

Enzo sentiu o peso das palavras do pai, mas não se deixou intimidar. Levantou-se lentamente e olhou diretamente nos olhos de Don Salvatore, sem desviar o olhar.

— Eu farei o que for necessário para proteger nossa família, pai. Mas também farei o que for preciso para garantir que não nos destruamos no processo.

Os dois ficaram ali, frente a frente, em um confronto silencioso de vontades. Don Salvatore viu nos olhos do filho a mesma determinação que ele próprio tinha quando jovem. Mas também viu algo mais: uma nova visão, uma nova maneira de pensar, que ameaçava sua forma de governar.

Finalmente, Don Salvatore recuou, soltando o ombro de Enzo e voltando à cabeceira da mesa. O silêncio voltou à sala, mas dessa vez era um silêncio carregado de tensão e incerteza.

— Veremos se você está certo, Enzo — disse Don Salvatore, sentando-se com um olhar distante. — Veremos.

E com isso, a reunião terminou. Enzo saiu da sala com Luca ao seu lado, ambos cientes de que aquele confronto havia sido apenas o primeiro de muitos. O futuro dos Moretti estava em jogo, e, pela primeira vez, a família estava dividida.

Enzo e Luca caminharam juntos pelos corredores da mansão em silêncio. As paredes, cobertas por retratos de gerações de Morettis, pareciam observá-los, como se cada ancestral estivesse julgando o que acabara de acontecer. O peso da história da família estava sobre seus ombros, e eles sabiam que as decisões que tomassem a partir daquele momento moldariam o destino dos Moretti.

— Você foi corajoso lá dentro, Luca — disse Enzo, finalmente quebrando o silêncio. — Não esperava que você fosse se posicionar assim.

Luca sorriu de leve, mas havia uma preocupação em seus olhos.

— Não podia ficar quieto, Enzo. Não depois de tudo o que vimos nos últimos meses. Nosso pai está preso em um mundo que já não existe mais. A violência que ele perpetua não está nos protegendo; está nos enfraquecendo. Eu sabia que você ia falar, mas precisava que ele visse que eu também estou com você nisso.

Enzo assentiu, sentindo um misto de orgulho e apreensão pelo irmão mais novo. Eles sempre foram próximos, mas aquela aliança recém-formada contra a forma de governar do pai os unia de uma maneira diferente. Havia um risco imenso em desafiar Don Salvatore. Seu pai não era conhecido por perdoar facilmente, nem mesmo seus filhos.

— Agora que nos expusemos, não há volta — disse Enzo, com um tom sério. — Precisamos pensar nos próximos passos. Pai pode nos tolerar por enquanto, mas ele não vai deixar isso passar se perceber que estamos tentando mudar a forma como as coisas são feitas.

Luca balançou a cabeça em concordância. Ambos sabiam que o mundo da máfia não era gentil com aqueles que mostravam discordância, mesmo dentro da própria família. Um movimento em falso, e poderiam se tornar inimigos aos olhos de Don Salvatore.

— Qual é o plano? — perguntou Luca, ansioso.

Enzo parou por um momento, refletindo. A tensão daquela noite ainda queimava em sua mente, mas ele sabia que precisava pensar rápido. Eles não poderiam simplesmente se afastar e esperar que tudo se resolvesse. Don Salvatore era um homem de ação, e ele já devia estar planejando como lidar com a rebeldia dos filhos.

— Vamos começar por dentro — disse Enzo, após um longo suspiro. — Precisamos fortalecer nossas alianças com os homens mais próximos da família. Alguns deles já questionam as decisões do pai, especialmente após a última guerra com os Costello. Se conseguirmos o apoio deles, poderemos começar a mudar as coisas, devagar, sem causar um confronto direto.

Luca franziu a testa.

— E se eles não estiverem do nosso lado? Se eles preferirem seguir nosso pai cegamente?

— Então teremos um problema maior do que pensamos — respondeu Enzo, com uma sinceridade fria. — Mas prefiro acreditar que muitos deles veem o que está acontecendo. Sabem que continuar nesse caminho só levará a mais mortes. Precisamos conversar com eles discretamente, sem chamar a atenção de papà.

Luca concordou com a cabeça, mas ainda estava visivelmente inquieto.

— E se Don Salvatore descobrir? — perguntou ele, num tom mais baixo, como se a menção do nome do pai pudesse invocar sua presença a qualquer momento. — Ele não vai deixar isso passar. Ele pode... nos eliminar.

Enzo sentiu um frio na espinha ao ouvir aquelas palavras. Ele sabia que Luca estava certo. Don Salvatore era um homem que colocava a família acima de tudo, mas também sabia que, para ele, "família" era sinônimo de poder, e qualquer ameaça a esse poder seria esmagada sem hesitação — mesmo que viesse de seus próprios filhos.

— Precisamos ser inteligentes, Luca — respondeu Enzo, tentando acalmar as preocupações do irmão. — Não podemos parecer que estamos tramando nada. Vamos devagar, um passo de cada vez. Precisamos manter a confiança do pai, mesmo enquanto trabalhamos para mudar as coisas. Se jogarmos certo, podemos evitar um confronto direto.

Luca assentiu, mas a sombra do medo ainda estava presente em seus olhos.

— Eu confio em você, Enzo. Só espero que saibamos onde estamos pisando.

Enzo colocou a mão no ombro do irmão, apertando levemente, como uma forma de mostrar que estavam juntos naquilo. Ele sabia que a jornada que estavam prestes a iniciar era arriscada, mas não havia outro caminho. Ou eles mudavam a forma como a família operava, ou seriam engolidos pela espiral de violência que Don Salvatore insistia em manter.

Ao chegar à porta de seus quartos, Luca se despediu, visivelmente cansado. Enzo ficou parado por um momento, observando o irmão desaparecer no corredor. Seus pensamentos estavam a mil. Ele sabia que precisaria de mais do que apenas boas intenções para sobreviver ao que estava por vir.

Quando finalmente entrou em seu quarto, encontrou Chiara, sua esposa, sentada à beira da cama, lendo um livro. O olhar dela subiu lentamente até encontrar o de Enzo, e, ao ver a expressão no rosto do marido, ela fechou o livro e o colocou de lado.

— Como foi a reunião? — perguntou ela, com um misto de curiosidade e preocupação.

Enzo suspirou, afrouxando o colarinho da camisa e sentando-se na cadeira próxima à janela. A lua cheia iluminava o quarto, lançando sombras suaves nas paredes. Por um momento, ele não respondeu, tentando processar tudo o que havia acontecido. Finalmente, ele quebrou o silêncio.

— Foi pior do que eu esperava. Papà não vai mudar. E agora, Luca e eu estamos em uma posição perigosa.

Chiara se levantou, caminhando até ele e colocando a mão em seu ombro. Ela sabia o que aquela vida significava. Desde que se casara com Enzo, aprendera a viver no meio de intrigas, traições e segredos. Mas ela também sabia que Enzo era diferente. Ele queria algo mais para a família, algo que pudesse quebrar o ciclo interminável de violência.

— O que você vai fazer? — perguntou ela, sua voz suave e cheia de apoio.

— Vamos começar devagar — disse ele, segurando a mão dela. — Mas sabemos que isso pode acabar em um confronto. Papà não vai permitir que mudemos as coisas facilmente.

Chiara olhou para ele com preocupação. Ela sempre temera que algo assim acontecesse. A máfia era uma família, mas também era um campo minado, e ela sabia que qualquer passo em falso poderia ser fatal.

— Eu estou com você, Enzo — disse ela, com firmeza. — Mas tenha cuidado. Eu sei o quanto seu pai é perigoso.

Enzo assentiu. Ele sabia que estava prestes a caminhar por um terreno incerto, onde cada movimento precisava ser calculado com precisão. O conflito familiar que se formava não seria resolvido com palavras, e ele sabia que, no final, poderia ser forçado a enfrentar seu próprio pai.

Mas, por enquanto, tudo o que ele podia fazer era esperar pelo momento certo.

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