Não consigo mover um músculo de tão chocado que estou. Mildred, à minha direita, também permanece imóvel. Ela é o único ser além de mim a ocupar o aposento comprido e muito bem ornamentado onde nos encontramos. Pelo menos deste lado do espelho.
– Olá, amor? Sentiu minha falta? – indaga-me um reflexo conhecido.
Sim, é ela! A jovem que encontrei encarcerada ao longo de meus delírios na caverna murgon. A bela mulher do retrato cujos trajes são idênticos àqueles que usou numa cela, dias atrás, quando nem fazia parte da realidade. Faz agora?
– Obrigada, feiticeira. – Ela mantém seus olhos castanhos em Mildred enquanto fala. – Sou incapaz de achar palavras para qualificar o qu
Abri pálpebras para a realidade novamente. Diante de mim: Evelyn, Dehvorak, Ana e o bardo em cadeiras de bambu – cada um com uma tigela no colo. Sopa? Sobre nossas cabeças pairavam dezenas de barras frágeis de madeira, cruzando-se horizontalmente em várias direções para suportar a palha que compunha o telhado da cabana onde passei as últimas noites. Quem me notou primeiro foi Rapskin, emitindo um grito e um sorriso. Os demais despertaram da tensão para a alegria num piscar de olhos. Eu estava vivo. Mas e quanto a Mildred?Nossa cabana era pequena e não possuía divisórias. Compunha-se de um rec
Lilandra estava absolutamente certa naquilo que disse ao sair. Havia um universo caótico sob a superfície enigmática de Mildred que, mesmo entre os membros do conselho, devia ser pouco conhecido. Estranhos sussurros (acompanhados de uma dor angustiante) brotaram em minha alma tão logo a mais velha deixou nosso alojamento. Pela primeira vez fui capaz de sentir a bruxa através de seu espírito, como fizera comigo tantas e tantas vezes. Talvez até mais profundamente. Quem saberia?Demônios... Pelos relatos de Gabriele, eu carregava um. Segundo frases de Mildred, outro h
Apesar de experimentar dificuldades em iniciar meus relatos, soltei-me com o tempo, adquirindo desenvoltura semelhante à que demonstrei na primeira noite com o conselho, quando expus minha situação. Os quatro ouvintes, já sem suas tigelas, mantinham-se absolutamente atentos. Comecei descrevendo estágios inaugurais de meus delírios, com Mildred deixando escapar sua fragilidade em frases soltas e declarações amorosas antes de escutar vozes oriundas de minha memória recente. Não contei tudo sobre a moça, claro. Cuidei de omitir certas confissões e também segredos que descobri mais tarde até porque se tratava de assunto nosso. Tive de mencionar, no entanto, o afeto que partilhávamos, pois seria difícil citar Gabrie
Ana regressaria mais tarde àquele alojamento para anunciar um atraso nos planos da colega. Tal imprevisto, ao contrário do que poderia ser pensado, não ocorreu em virtude da requisição de Dehvorak. Na verdade, foi consequência de um conflito entre Lilandra e Mildred no interior da outra cabana, onde esta havia abandonado o conselho antes de seguir furiosíssima em direção ao templo de bambu. Avistei-as de longe pela janela. Lilandra em seu vestido amarelo e Mildred (fisicamente pálida como de costume e não cinzenta) trajando sua toga ritualística: vermelha com faixas amarelas pintadas no tecido. Ana pediu que permanecêssemos sob o teto de palha enquanto o impasse não fosse resolvido. Tudo bem
Tanto num período tão curto! Dehvorak se enganara redondamente ao imaginar que Padelah havia me salvado. Quem fez isso foi a própria Mildred ou... como direi? O lado benevolente dela. Difícil explicar. Rapskin não demoraria a aparecer em nosso casebre junto ao resto do grupo que acabava de discutir lá fora. Ana e os outros surgiriam momentos depois me trazendo besouros crocantes numa tigela. Estes, diferentemente dos oferecidos no templo, estavam muito bons. O diálogo privado que partilhei com Lilandra ao terminar minha refeição durou cerca de um quinto de hora. Os outros retornariam instantes mais tarde.Digamos que meus depoimentos tenham sido bastante sinceros em relação às loucuras que experiment
– Conte-nos mais desse sinal. Como pôde senti-lo? – Não há muito além do que Mildred relatou. Vocês viram tudo. Desmaiamos há pouco, cada um num alojamento, instantes após Lilandra me deixar e Rapskin conversar à sós comigo. Compartilhamos um sonho bem curto desde então. Assim que acordamos, sentimos essa coisa. – Fale-nos da coisa. -------------------------------------------------- Liberdade... Deliciosa liberdade. Soltos no ar... Mildred e eu... sobrevoando Hartsbark como dois
Era um sinal. Gabriele nos deixara uma indicação telepática do ponto onde deveríamos encontrá-la antes de ir. Mildred estava certa. Há pouco experimentáramos, a maga e eu, um novo contato espiritual que durou meros instantes. Nesses delírios, sonhamos sobrevoar Hartsbark completamente nus até encontrar um facho luminoso com o diâmetro aproximado de meu alojamento. Uma vez acordados, passamos a saber instintivamente em que direção se encontrava o sinal de minha noiva no plano real. Horas decorreriam entre aquele breve desmaio e o momento em que Rapskin, Padelah, Dehvorak e eu dividimos com o resto do conselho a sala almofadada onde Kingler e seus companheiros revelaram-nos seus nomes. Odores típicos de velharia e abandono encheram nossas narinas e nossa paciênc
Mas o debate seguiu adiante, fazendo-me lembrar constantemente do dia em que um rato se despediu de nós. E entre uma conversação e outra, Rapskin requisitou materiais de desenho, quase recebendo um safanão de Lilandra por isso. Discórdias não faltaram e perguntas eram feitas o tempo inteiro. “Como fui parar nas mãos de Mauzehr?” “Até onde Gabriele tinha realmente noção do que acontecia e como poderia ela saber tanto?” Alegou ter sido salva por sujeitos que agora a acompanhavam e que me tirariam daquele inferno. Uma guilda. Que tipo? Possivelmente gente poderosa e influente a ponto de lhe fornecer dados tão importantes como os que me revelou. Deviam saber muito sobre os hospedeiros, as portas, meus sonhos e todo o resto. Era a hipótese mais provável. Havia dois