Sábado
Sara acordou em sua cama com a luz do sol incidindo através da janela em seu rosto, naquela manhã de feriado. Era Dia de Finados. Sua primeira lembrança foi do sonho macabro que tivera com aquele havaiano brutalmente assassinado na despensa da mansão Telles de Mendonça. Só de camiseta e calcinha, como dormira, foi até o banheiro do apartamento modesto, tentando afastar aquela imagem da cabeça jogando uma água no rosto. Encontrou Cássia sentada no sofá da sala com seu notebook no colo. Sua expressão não era das mais felizes olhando para a tela.
— Já explodiu na imprensa. Só se fala do assassinato na festa à fantasia nas mídias sociais. – A moça deu uma boa olhada no rosto da amiga que parou estacada à porta da sala. – E pela sua cara, não teve uma noite agradável, hein?
— Tive uma noite péssima. – Admitiu ela. - Um pesadelo não me deixou dormir direito. Essa morte não sai da minha cabeça.
Sara caminhou até a amiga e sentou-se a seu lado no sofá. Uma boa olhada na tela do notebook permitiu que ela visse a manchete de um portal: "Noite de crime em festa de Halloween". Suspirou.
— Quem você acha que teria motivos para matar aquele garoto? – Perguntou Cássia roendo o canto de uma unha, deslizando o dedo da outra mão no touchpad.
— Não consigo pensar em outra coisa desde que vi seu corpo jogado naquela despensa. A arma usada no crime me parece ser a resposta. Quem teria entrado com uma espada daquelas na festa?
Cássia encarou a amiga e em seguida procurou algo específico em uma pesquisa que havia feito há pouco.
— Aqui diz que a arma não é uma espada comum. É uma rapieira. Um tipo de florete europeu usado nos séculos XVI e XVII. Eu pesquisei aqui. Não é nada barata e duvido que venha como adorno de uma fantasia vagabunda de loja.
— Durante meu depoimento ao delegado ele me perguntou algumas vezes se eu tinha visto alguém carregando essa rapieira antes do crime. Achei que fosse apenas curiosidade, mas acredito que ele já tenha um suspeito.
— Está meio óbvio, não é? – Afirmou Cássia. – O assassino é o dono da rapieira. A pergunta é: Por que ele deixaria a arma do crime na vítima?
— Talvez ele não tivesse conseguido arrancá-la a tempo. Ou quisesse incriminar alguém. – Sara pareceu ponderar por algum tempo sua própria afirmação e olhou inquieta para o quarto. – Por que o assassino usou esse tipo de arma no lugar de um revólver, por exemplo? Quem ele estava tentando incriminar? - De um salto a garota pôs-se a caminhar rapidamente até o cômodo de onde acabara de sair. Cássia a acompanhou com os olhos e minutos depois a viu trocar a camiseta e calcinha por uma calça jeans e uma blusa regata.
— O que está fazendo? Onde você vai? Hoje é feriado!
Sara calçava seus sapatos enquanto respondia:
— Exato. A investigação da Polícia foi interrompida por dois dias. Até segunda-feira é tempo suficiente para que as provas do crime sejam manchadas e o assassino fuja.
Cássia já fechava o notebook, o deixando de lado no sofá.
— E o que exatamente você acha que vai fazer?
— Eu vou colocar à prova o que aprendi nesses três primeiros semestres de jornalismo. E você vai comigo!
A dupla pegou um Uber a caminho do Jardim Paulistano a fim de revisitar o cenário do crime. Aquele era com certeza o caso mais sério que ambas teriam que estudar a fundo desde que haviam pisado na faculdade de Jornalismo e por estarem intimamente ligadas a ele, sabiam que precisavam ao menos tentar solucioná-lo. Munidas de blocos de anotação, canetas e seus celulares, as duas desembarcaram diante do condomínio de luxo Arco Verde e se anunciaram junto à portaria como amigas de uma das moradoras. Autorizadas a entrar após um interrogatório cansativo do porteiro e a liberação da própria Regiane pelo interfone, as meninas caminharam até a mansão Telles de Mendonça. Do lado de fora, uma pequena multidão de jornalistas e curiosos se aglomerava em frente ao condomínio, procurando saber mais informações sobre o assassinato.
— Credo! Isso aqui está com cara de cena de crime de seriado americano! – Exclamou Cássia ao ver as faixas listradas em amarelo e preto ao redor da entrada da mansão e dois policiais que andavam por ali à paisana. No jardim da casa ainda havia vestígios da festa de quinta-feira. Garrafas jogadas no gramado, pratinhos descartáveis, a picape do DJ e até o bar ainda estavam intocados. Sara e Cássia encontraram Regiane na sala espaçosa da mansão, rodeada da mãe, uma senhora muito bem vestida, mas com olhar esnobe no rosto fino e da empregada da casa. Malas no chão próximo a elas indicavam que estavam de saída.
— Viemos ver como você está, amiga. – Mentiu Sara, abraçando a garota que usava um par de óculos imenso para esconder as olheiras.
— Obrigada, Sara. – Cássia a abraçou também em seguida. – Obrigada, Cássia. Vocês foram as únicas que vieram me visitar. Eu ainda estou muito abalada.
— Sejam breves, meninas. Estamos nos mudando temporariamente para nosso apartamento na Vila Mariana até que essa investigação policial terrível termine. – Disse Sophia Telles de Mendonça rispidamente, enquanto despachava as malas para o carro por intermédio do segurança que surgiu cobrindo a luz do sol que entrava na sala. O sujeito era enorme.
— Não vamos nos demorar, senhora. Viemos confortar a Rê. – Disse Sara, já caminhando ao lado da colega até seu sofá de couro legítimo. A mulher com ar superior desapareceu pela porta pouco depois, indo dar ordens aos policiais que faziam uma espécie de ronda do lado de fora.
Cássia sentou-se do lado esquerdo de Regiane e sabendo que ela e Sara tinham pouco tempo dentro da casa, uma vez que a família estava de mudança temporária, começou logo o interrogatório:
— Rê, eu sei que você está muito estremecida por tudo que aconteceu dentro da sua própria casa num dia que deveria ser só de alegria, mas a gente precisa saber de alguns detalhes. – A garota acedeu tirando os óculos escuros. – O que exatamente você viu quando a hostess da festa e o garçom te chamaram até a cozinha?
Sara deu-lhe a mão, tentando deixa-la mais à vontade.
— Eles... Eles disseram que tinham um problema na despensa que não podiam resolver sozinhos e eu meio que surtei. Eu estava dançando no jardim, estava contente e os dois vieram estragar minha alegria. Eu não queria saber de problemas, mas eu era a única na casa que podia resolver aquilo na ausência de meus pais. – Seu lábio tremulou antes dela continuar. – Quando... Quando eu cheguei, eu vi o corpo do John ali largado... Ele estava pálido, tinha sangue para todo lado... Eu entrei em desespero.
— Como o garçom o encontrou? – Perguntou Sara.
— Eu disse isso à Polícia também... Ele foi buscar mais gelo para as bebidas. Teve dificuldades para abrir a porta da despensa e quando forçou mais, viu que tinha alguém caído atrás dela. Ele também entrou em desespero e procurou a Ju. Eu já tinha contratado a agência dela para outras festas e nunca tinha dado problema. A Ju é uma excelente hostess. A equipe dela é muito competente. Tenho certeza que o garçom não tem culpa de nada. Alguém na festa matou o Jonathan!
Sara viu os olhos verdes da garota começarem a marejar e observando a casa, notou câmeras de segurança instaladas em locais discretos. Uma posicionada perpendicularmente em direção a escada e outra filmando a área ampla da sala de estar.
— O que foi feito dos arquivos de gravação das câmeras de segurança daquele dia, Rê? – Perguntou.
— A Polícia deu uma olhada nelas e levou para investigar. O grosseiro do investigador Noronha falou com meu chefe de segurança e pegou os arquivos. O Tadeu ficou na sala de comando o tempo todo no dia da festa. Eu não queria um armário de 2 metros andando no meio da festa, tirando o conforto dos meus convidados, por isso, o mandei ficar em alerta da sala de vigilância. Ele não viu nada de anormal de lá.
— Você sabe se tem cópia dessas gravações? – Indagou Cássia.
— Sim. O sistema de vigilância armazena no servidor. Temos sempre backup, mas por que o interesse? – Os olhos claros da garota foram do rosto moreno de Cássia para o caucasiano de Sara. Foi a segunda quem respondeu honestamente:
— Eu não tenho nem conseguido dormir direito depois que vi o corpo daquele menino jogado em sua despensa, Rê. A minha cabeça fica martelando hora após hora pensando nesse crime e em quem poderia ter feito isso com ele. A gente precisa investigar. Estamos todas envolvidas agora. A gente estuda Jornalismo. Está no nosso sangue investigar fatos. Eu quero muito desvendar esse assassinato e as imagens nessas câmeras podem nos dar pistas.
Regiane olhou para o próprio colo com semblante triste no belo rosto.
— Eu... Eu também quero muito descobrir quem fez isso ao John. Ele era meu amigo. Às vezes ele agia feito um babaca, mas era o jeito dele. Nada do que ele fez foi proposital. Era seu instinto.
Sara e Cássia entreolharam-se intrigadas.
— "Nada do que ele fez"? Como assim? O que ele fez? – Questionou Sara.
— Vocês não sabem do caso dele com a Daiane? – E novamente a garota olhou para Cássia e depois para Sara, uma de cada lado no sofá. – O Jonathan ficou com a Daiane enquanto ela ainda estava namorando o Guilherme. Isso deu o maior rolo. Os dois chegaram a sair no soco durante uma festa na casa dela.
— Calma... Quem é a Daiane? – Perguntou Cássia.
— A loira de peitos grandes que estava na festa. Vocês não viram? Vestida de bombeira?
Aquilo deu um estalo na cabeça de Sara e automaticamente ela se lembrou da bombeira puxando Jonathan da confusão logo depois que ele lhe passou a mão descaradamente durante a festa.
— O Jonathan me assediou enquanto estávamos dançando no jardim e essa garota apareceu do nada para dar uma bronca nele. – Regiane ficou com uma expressão incrédula no rosto. – Ela terminou com o tal Guilherme? – Perguntou Sara.
— Sim. Os dois terminaram depois que o Gui descobriu a traição, mas muita gente diz que ele nunca superou.
Aquele era um fato inédito para as duas amigas. Ambas viram que aquele era um bom começo para sua investigação jornalística.
— Mas sobre o John... Ele assediou você? – Indagou Regiane a Sara, de olhos arregalados.
— Duas vezes. Na primeira achei que tinha sido sem querer, quando o cumprimentei aqui na sala, com você. Na segunda vez ele já chegou pegando em mim. – Relembrou Sara, incomodada.
— Caracas! Ele foi bem idiota! – Concluiu Regiane.
— O Guilherme foi convidado para a festa? – Voltou ao assunto Cássia, enquanto sua mente trabalhava numa nova teoria.
— Sim. Eles são todos do curso de Publicidade. Alguns estudam na mesma sala inclusive.
— Você o viu na festa? Qual era a fantasia dele?
Regiane pensou por um minuto e então respondeu:
— Eu o vi sim, claro. Ele estava vestido de Cavaleiro Solitário acho... Aquele de preto, com chapéu e máscara...
— Zorro! – Exclamou Sara.
— Isso! De Zorro. O Guilherme estava vestido de Zorro. – A confirmação de Regiane chegou feito uma bomba para Sara e naquele momento algumas peças daquele crime começaram a se encaixar em sua mente. Agora ela precisava de provas mais concretas.
Sexta-FeiraO delegado Marcondes estava em sua sala na presença do investigador Noronha, do investigador Carvalho e do estagiário administrativo Felipe enquanto os vídeos da câmera de segurança da mansão Telles de Mendonça rodavam no computador em velocidade acelerada. Os arquivos tinham sido copiados para um pendrive e entregues para Noronha na madrugada após a festa à fantasia, mas a Polícia ainda não tinha tido a chance de olhar as imagens com calma. Os depoimentos daquele extenuante expediente tinham acabado. Marcondes tinha uma pilha de relatórios para assinar e ainda tinha que rever os depoimentos por escrito antes que o dia terminasse, mas fez uma pausa para analisar os vídeos com seus mais eficientes investigadores.— Já estamos há duas horas aqui e nada. Só um bando de adolescente tarado se pegando no sofá de couro dos grã-finos. &mdas
Sábado— “É um erro grave formular teorias antes de conhecer os fatos. Sem querer, começamos a mudar os fatos para que se adaptem às teorias, em vez de formular teorias que se ajustem aos fatos. ”— Quem disse isso? — indagou Sara, sentada no sofá da sala pronta a abocanhar mais uma fatia da pizza de atum que havia acabado de ser entregue.— Sherlock Holmes. — respondeu Cássia, mastigando um pedaço generoso da pizza ao mesmo tempo. — vou dar um jeito de acrescentar essa citação no nosso artigo sobre o crime da rapieira.— “Crime da rapieira”? É assim que quer chamar nossa matéria? Ninguém sabe o que é uma rapieira! Por que não chamamos de “Um crime quase perfeito”?
Sexta-FeiraDaiane Sobral entrou na sala do delegado acompanhada da mãe para o interrogatório. Ainda estava abalada pelo que tinha acontecido com Jonathan Braga durante a festa à fantasia na mansão Telles de Mendonça e seu rosto, sem qualquer resquício de maquiagem, denunciava que não tinha dormido bem aquela madrugada. Os cabelos desgrenhados, presos indisciplinadamente por um elástico, davam a ela um aspecto desleixado que poucas vezes se permitia exibir em público. Sentada a seu lado, a mãe, uma senhora razoavelmente jovem, procurava mantê-la firme ante as perguntas de Marcondes, não permitindo que ela desabasse a chorar.— Qual seu relacionamento com a vítima? — indagou o delegado com os dedos entrelaçados e os antebraços pousados sobre a mesa.— Éramos... éramos amigos.O barulho das teclas digitadas
DomingoSara chegou à porta da loja de fantasias as 08:30. Sabia que o horário de abertura era as 09:00, mas estava ansiosa demais para esperar em casa. Sua mente era incapaz de descansar um só minuto que fosse, povoada pelas lembranças de como aquele Dia das Bruxas tinha começado e principalmente de como ele havia terminado. Banhado em sangue.Procurando se distrair, ela ouvia música em seu celular. Oleddo fone de ouvidobluetoothpiscava incessante. Uma MPB tranquila tocava em seuSpotify, mas a moça estava longe de prestar a atenção em sua letra. Ela precisava desvendar urgentemente os mistérios que rondavam aquele crime na mansão Telles de Mendonça, descobrir as razões que levaram o assassino a cometê-lo e levá-lo à justiça. Ela não conseguiria descansar enquanto aquele pe
Cássia marcou o encontro com Daiane em uma praça pública a fim de que a garota ficasse mais à vontade num local aberto e arejado. Era 09:37 quando a garota desceu do carro do pai, um sedan preto importado e caminhou até o banco onde Cássia tinha indicado por mensagem. Vestida com um short jeans e uma blusa decotada, a garota se aproximou da morena jambo com passos curtos. As duas se cumprimentaram. Quando se sentou no banco, ela tinha expressão séria e olheiras profundas no rosto pálido. Os cabelos loiros estavam como na delegacia, presos desleixadamente com um elástico.- Obrigada por vir, Daiane. – Começou Cássia, com um meio-sorriso. – Sei que não tem sido fácil sair de casa depois do que aconteceu, mas eu precisava conversar com você.A praça estava bastante movimentada naquele começo de dia. Alguns casais passeavam com
Segunda-FeiraUm alvoroço tomava o 14º DP naquela manhã com o relato do delegado Marcondes sobre a tentativa de roubo na sala de arquivos. O sistema de câmeras do local havia sido desativado às 22:32 da sexta-feira pelo que foi chamado pelos técnicos de “pane no sistema de armazenamento de dados”. Nenhuma imagem do invasor havia sido capturada, o que aumentou o clima de desconfiança entre os colegas que trabalhavam na delegacia. Enquanto a Corregedoria era acionada para apurar o caso grave de tentativa de macular provas de crimes, todos andavam se perguntando o que estariam procurando na sala de evidências.A concentração de Marcondes e sua equipe, no entanto, estava em mandar a arma usada no homicídio na mansão Telles de Mendonça para a perícia. A análise de digitais e DNA na espada precisava ser feita o quanto antes. O tempo estav
Carvalho estava ao volante de um sedan preto, usado pela Polícia nas investigações, quando estacionou diante de um rico sobrado no bairro de Moema. A seu lado, Noronha fumava um cigarro, enquanto observava a vizinhança tranquila pela janela aberta do automóvel. - Tem que ter grana pra morar num bairro desses. – Comentou, defenestrando o cigarro para fora do veículo. Carvalho grunhiu algo como uma afirmação. Com o braço apoiado na porta ele observava o alto da janela do sobrado, absorto. - Acha que alguém de dentro tentou atrapalhar a investigação no DP? – A pergunta veio do nada, mas o experiente investigador viera ruminando o assunto em sua cabeça o caminho todo da delegacia até ali. - Não sei. – Noronha baforou nicotina. – Seja lá quem tenha tentado melar a investigação, não fez direito. A arma do crime está sendo analisada pela perícia nesse momento. Carvalho continuou pensativo, mas tratou de apanhar o mandado de condução no porta
Segunda-feira- Alô? Regiane?A voz do outro lado atendeu a ligação meio aborrecida.- É a Sara. Tudo bem? – A garota tentou passar tranquilidade na voz, mas ela sabia que o tempo corria contra ela.- Oi, Sara. Estou um pouco ocupada. Em que posso ajudar? – Ouvia-se sons abafados do outro lado da linha.- Desculpe ligar tão cedo, mas eu preciso saber se houve algum engano na hora que montou a lista de convidados para a sua festa. É possível que você tenha se confundido com os nomes e as fantasias? – Sara tinha urgência na fala. Dava para ouvir vozes agora pelo telefone. Regiane não estava só.- Não houve erro. Eu coloquei na lista as fantasias que vocês me informaram. Eu só não tive controle das pessoas que resolveram ir de última hora, acompanhando os convidados oficiais. Eu não tinha como sab