Sexta-Feira
O delegado Marcondes estava em sua sala na presença do investigador Noronha, do investigador Carvalho e do estagiário administrativo Felipe enquanto os vídeos da câmera de segurança da mansão Telles de Mendonça rodavam no computador em velocidade acelerada. Os arquivos tinham sido copiados para um pendrive e entregues para Noronha na madrugada após a festa à fantasia, mas a Polícia ainda não tinha tido a chance de olhar as imagens com calma. Os depoimentos daquele extenuante expediente tinham acabado. Marcondes tinha uma pilha de relatórios para assinar e ainda tinha que rever os depoimentos por escrito antes que o dia terminasse, mas fez uma pausa para analisar os vídeos com seus mais eficientes investigadores.— Já estamos há duas horas aqui e nada. Só um bando de adolescente tarado se pegando no sofá de couro dos grã-finos. — comentou Noronha entediado. Os cabelos já começavam a lhe faltar no alto da cabeça enquanto uma barba grossa se espalhava no rosto sisudo para compensar a calvície. Ele era investigador da Polícia há vinte anos. Estava acostumado com crimes de todos os tipos. Um que acontecera dentro de uma mansão de milionários era novidade.— As duas câmeras de segurança dentro da casa não parecem ter sido suficientes. Até agora só temos movimentações comuns na sala da casa. Nada de estranho. — comentou Carvalho de braços cruzados. O único em pé na sala. Tinha 46 anos, uma barriga proeminente por dentro da camisa social ordinária e uma experiência que não devia ser deixada de lado naquele caso.Felipe manuseava o mouse de seu computador para acelerar ainda mais o vídeo. Na tela, vários convidados da festa andavam para lá e para cá na sala espaçosa da mansão, se movimentando o tempo todo. O sistema de som do lugar permitia que eles ouvissem as músicas executadas pelo DJ no jardim e alguns deles dançavam alegremente sobre o tapete indiano da senhora Sophia.— Havia uma câmera no jardim. Vocês já averiguaram? — indagou Marcondes.— Ainda não. Vai ficar para segunda-feira. Felizmente amanhã é feriado! — e Noronha deu uma risada desafinada, exibindo os dentes amarelados pelos cigarros que fumava desde os 12 anos.Carvalho pareceu incomodar-se com o tom pouco profissional do colega de distrito e de repente, com os olhos bem treinados focados no vídeo, percebeu algo:— Espere! Volte alguns segundos do vídeo. — Felipe deu um clique no botão de pausa e em seguida voltou alguns segundos do arquivo em câmera lenta. — Qual o horário dessa gravação?— 21:47. — respondeu Felipe de olho no relógio digital que marcava o tempo de gravação e o horário de Brasília no canto superior direito da tela.— O crime aconteceu por volta das 22:00. O Corpo só foi encontrado por volta das 22:20. — acrescentou Marcondes.— Estamos procurando por um Zorro, não é mesmo? — todos acenaram que sim. — deem uma olhada no canto superior direito do vídeo. Eu acho que vi uma sombra ali. — continuou Carvalho. Assim que o experiente policial tocou o ombro do rapaz, Felipe soltou o vídeo novamente em slow motion. Os quatro homens olharam atentamente a gravação no ponto indicado por Carvalho e num determinado momento, viram um par de botas pretas passar por trás do sofá e caminhar em direção à cozinha da casa.— Tem um ponto cego dentro da sala que a câmera não pega. — concluiu Noronha.— Mas temos o vídeo da outra câmera! — lembrou Carvalho, o que fez com que Felipe minimizasse a tela atual e procurasse um segundo arquivo de vídeo na pasta dentro do pendrive. O rapaz começou a executar as imagens da outra câmera de fronte ao sofá da mansão e avançou para o mesmo horário da anterior, captando a mesma cena. Um casal de rapazes se beijava ardorosamente no sofá, um grupo de cinco jovens dançava sobre o tapete indiano e lá atrás, quase se esgueirando, como que tentando fugir das câmeras, o Zorro deslizava suavemente em direção à cozinha.— Olha lá o canalha! — agitou-se na cadeira Noronha.— Congela aí. — Felipe obedeceu. — Estão vendo na cintura dele? Parece uma espada embainhada. — apontou Carvalho.— Pegamos o filho da mãe! — exultou Marcondes.— Calma lá. Ainda não vimos o havaiano no vídeo. Em que momento ele vai até a cozinha? — questionou Noronha.Os quatro continuaram assistindo o vídeo em velocidade acelerada até o ponto em que Jonathan aparece meio cambaleante de álcool e esbarra no grupo que está dançando. O casal no sofá para de se beijar e parece perceber quando o rapaz com camisa havaiana e colar de flores caminha em direção à cozinha, onde seria assassinado.— O cordeiro indo direto para o abate! — ironizou Noronha. — O que ele teria ido fazer lá dentro?— Acho que temos um indício grande aqui, rapazes. Por esse vídeo não é possível ver mais ninguém indo em direção à cozinha além do Zorro e do havaiano. Seja lá o que tenha acontecido entre eles depois, dois entraram e só um saiu. — Marcondes coçou o rosto, pensativo.— Sim, mas em que momento o Zorro saiu da cozinha? — perguntou Felipe, curioso, soltando o vídeo em seguida. Empertigados, todos eles acompanharam as cenas se desenrolando diante de seus olhos sem encontrarem o ponto onde o Zorro ressurge da cozinha.— Onde está esse desgraçado? Ele tem que sair alguma hora! — enervou-se Noronha.O relógio no alto do vídeo já mostrava 22:20 e registrou o momento em que o garçom entrou na cozinha e achou o corpo na despensa.— Será que perdemos alguma coisa? Alguém viu o Zorro saindo da cozinha? — perguntou Marcondes aos colegas, confuso. Ele ordenou que Felipe voltasse o vídeo até o ponto em que o havaiano caminha para a morte e eles assistiram tudo de novo. Nenhum Zorro havia saído da cozinha após o crime.— Não há saída pela cozinha. Como foi que ele saiu de lá de dentro? — indagou-se Carvalho sem obter uma resposta lógica.Todos eles estavam exaustos ao fim da análise das gravações e o relógio de pulso do delegado, uma imitação barata de um Rolex, marcava 23:00. Embora eles ainda quisessem desvendar os mistérios que envolviam aquele crime antes do fim de semana e tivessem uma boa ideia de quem o havia cometido, era hora de ir para casa. As investigações estavam suspensas até segunda-feira.Felipe fora o penúltimo a sair da delegacia naquela noite. Apanhou o casaco no encosto da cadeira, desejou um bom feriado ao delegado e saiu pela porta dianteira. Enquanto alguns transeuntes passavam calmamente em frente ao 14º DP, o cansado Marcondes continuou analisando as provas que tinha sobre o caso do lado de dentro, em sua mesa desorganizada. Os olhos acinzentados passavam pelas fotos do corpo de Jonathan, a rapieira ensanguentada e a lista de convidados. Cuidadosamente, ele analisou nome por nome da lista mais uma vez e rabiscou de caneta azul um deles.— Vou pegar você, seu pequeno merdinha!Voltou aos depoimentos que tinha colhido aquela tarde e os releu atenciosamente. A hostess, seu assistente, os quatro garçons, o DJ, o casal de bartenders e a filha dos Telles de Mendonça estavam fora de suspeita. Eles estavam o tempo todo à vista de todos os presentes e não tinham qualquer rixa com o rapaz assassinado. O que ele tinha a dizer dos demais depoentes do dia?— Vamos ver esse tal de Érico Sanchez. 20 anos. Cursa Jornalismo, mora em Pinheiros e conhece a dona da festa desde o colégio. Namora Patrícia Novaes de 19 anos. Ela cursa Publicidade e é da mesma turma da vítima. Ela e o namorado podem ser vistos na filmagem das câmeras de segurança dançando com mais três colegas na sala da casa. Ele vestido de “Capitão América” ela de “Mulher-Gato”. Correram para o interior da cozinha no momento que a dona da festa avista o corpo e começa a gritar. O depoimento de ambos condiz com o que pode ser visto nas imagens. Não são suspeitos.Marcondes pensou ter ouvido algo na sala de arquivos e provas a oito metros de sua sala, mas não deu maior importância. Estava sozinho na delegacia. Ajeitou os óculos de armações grossas no rosto e continuou a ler os depoimentos.— Sara Jane de Moraes. 19 anos, estuda Jornalismo com a dona da festa. Diz que nunca foi muito íntima da moça, mas que aceitou ir à festa porque “precisava sair um pouco de casa”. Não conhecia a vítima até a hora da festa e diz que foi assediada por ele durante uma dança. Seria esse um motivo para assassinar alguém? — indagou o delegado, enquanto falava consigo mesmo com a voz saindo quase como um rosnado. — diz que foi atraída até a cozinha porque percebeu uma movimentação incomum diante da casa entre a anfitriã, a recepcionista e o garçom que encontrou o corpo. — ele parou intrigado com o que lera e novamente pensou ter ouvido algo na sala de arquivos. Olhou por sobre os óculos e caminhou até a porta, contrariado. — Tem alguém aí? — sua voz ecoou na delegacia vazia e escura. A única iluminação no lugar provinha da luminária sobre a sua mesa. Sem qualquer resposta, ele retornou para sua mesa e continuou sua leitura sem fechar a porta da sala dessa vez. Retomando o raciocínio, tachou de caneta azul o nome de Sara e concluiu: — Essa daqui tem um álibi muito bom. Estava com o namorado e a amiga no jardim bem diante do DJ. Ela não teria tempo de matar a vítima e voltar para dançar. Além do mais, ela estava fantasiada de policial e não de Zorro!O Rolex falso em seu pulso marcava meia-noite quando Marcondes ajeitou os relatórios sobre a mesa e levantou o traseiro da cadeira arrastando o corpanzil até a sala de arquivos. Antes de ir para casa precisava dar uma última olhada na arma do crime que estava guardada lá dentro aguardando o envio para a perícia. Surpreendeu-se com o que viu.— Minha Mãe do Céu!A sala de arquivos e provas estava revirada como se um guaxinim tivesse estado ali procurando comida dentro de uma lixeira. As estantes e armários onde as provas de crimes ficavam armazenadas estavam fora do lugar e tinha muitos objetos pelo chão. A luz oscilante do cômodo piscava defeituosa e Marcondes começou a procurar pela arma do crime da mansão Telles de Mendonça.— Onde está? ONDE ESTÁ?Em seu desespero, Marcondes acabou chutando algo metálico e quando seus olhos se voltaram para baixo, ele viu a rapieira ensanguentada dentro de um plástico de evidências, intacta. Alguém havia tentado tirar a espada dali.Sábado— “É um erro grave formular teorias antes de conhecer os fatos. Sem querer, começamos a mudar os fatos para que se adaptem às teorias, em vez de formular teorias que se ajustem aos fatos. ”— Quem disse isso? — indagou Sara, sentada no sofá da sala pronta a abocanhar mais uma fatia da pizza de atum que havia acabado de ser entregue.— Sherlock Holmes. — respondeu Cássia, mastigando um pedaço generoso da pizza ao mesmo tempo. — vou dar um jeito de acrescentar essa citação no nosso artigo sobre o crime da rapieira.— “Crime da rapieira”? É assim que quer chamar nossa matéria? Ninguém sabe o que é uma rapieira! Por que não chamamos de “Um crime quase perfeito”?
Sexta-FeiraDaiane Sobral entrou na sala do delegado acompanhada da mãe para o interrogatório. Ainda estava abalada pelo que tinha acontecido com Jonathan Braga durante a festa à fantasia na mansão Telles de Mendonça e seu rosto, sem qualquer resquício de maquiagem, denunciava que não tinha dormido bem aquela madrugada. Os cabelos desgrenhados, presos indisciplinadamente por um elástico, davam a ela um aspecto desleixado que poucas vezes se permitia exibir em público. Sentada a seu lado, a mãe, uma senhora razoavelmente jovem, procurava mantê-la firme ante as perguntas de Marcondes, não permitindo que ela desabasse a chorar.— Qual seu relacionamento com a vítima? — indagou o delegado com os dedos entrelaçados e os antebraços pousados sobre a mesa.— Éramos... éramos amigos.O barulho das teclas digitadas
DomingoSara chegou à porta da loja de fantasias as 08:30. Sabia que o horário de abertura era as 09:00, mas estava ansiosa demais para esperar em casa. Sua mente era incapaz de descansar um só minuto que fosse, povoada pelas lembranças de como aquele Dia das Bruxas tinha começado e principalmente de como ele havia terminado. Banhado em sangue.Procurando se distrair, ela ouvia música em seu celular. Oleddo fone de ouvidobluetoothpiscava incessante. Uma MPB tranquila tocava em seuSpotify, mas a moça estava longe de prestar a atenção em sua letra. Ela precisava desvendar urgentemente os mistérios que rondavam aquele crime na mansão Telles de Mendonça, descobrir as razões que levaram o assassino a cometê-lo e levá-lo à justiça. Ela não conseguiria descansar enquanto aquele pe
Cássia marcou o encontro com Daiane em uma praça pública a fim de que a garota ficasse mais à vontade num local aberto e arejado. Era 09:37 quando a garota desceu do carro do pai, um sedan preto importado e caminhou até o banco onde Cássia tinha indicado por mensagem. Vestida com um short jeans e uma blusa decotada, a garota se aproximou da morena jambo com passos curtos. As duas se cumprimentaram. Quando se sentou no banco, ela tinha expressão séria e olheiras profundas no rosto pálido. Os cabelos loiros estavam como na delegacia, presos desleixadamente com um elástico.- Obrigada por vir, Daiane. – Começou Cássia, com um meio-sorriso. – Sei que não tem sido fácil sair de casa depois do que aconteceu, mas eu precisava conversar com você.A praça estava bastante movimentada naquele começo de dia. Alguns casais passeavam com
Segunda-FeiraUm alvoroço tomava o 14º DP naquela manhã com o relato do delegado Marcondes sobre a tentativa de roubo na sala de arquivos. O sistema de câmeras do local havia sido desativado às 22:32 da sexta-feira pelo que foi chamado pelos técnicos de “pane no sistema de armazenamento de dados”. Nenhuma imagem do invasor havia sido capturada, o que aumentou o clima de desconfiança entre os colegas que trabalhavam na delegacia. Enquanto a Corregedoria era acionada para apurar o caso grave de tentativa de macular provas de crimes, todos andavam se perguntando o que estariam procurando na sala de evidências.A concentração de Marcondes e sua equipe, no entanto, estava em mandar a arma usada no homicídio na mansão Telles de Mendonça para a perícia. A análise de digitais e DNA na espada precisava ser feita o quanto antes. O tempo estav
Carvalho estava ao volante de um sedan preto, usado pela Polícia nas investigações, quando estacionou diante de um rico sobrado no bairro de Moema. A seu lado, Noronha fumava um cigarro, enquanto observava a vizinhança tranquila pela janela aberta do automóvel. - Tem que ter grana pra morar num bairro desses. – Comentou, defenestrando o cigarro para fora do veículo. Carvalho grunhiu algo como uma afirmação. Com o braço apoiado na porta ele observava o alto da janela do sobrado, absorto. - Acha que alguém de dentro tentou atrapalhar a investigação no DP? – A pergunta veio do nada, mas o experiente investigador viera ruminando o assunto em sua cabeça o caminho todo da delegacia até ali. - Não sei. – Noronha baforou nicotina. – Seja lá quem tenha tentado melar a investigação, não fez direito. A arma do crime está sendo analisada pela perícia nesse momento. Carvalho continuou pensativo, mas tratou de apanhar o mandado de condução no porta
Segunda-feira- Alô? Regiane?A voz do outro lado atendeu a ligação meio aborrecida.- É a Sara. Tudo bem? – A garota tentou passar tranquilidade na voz, mas ela sabia que o tempo corria contra ela.- Oi, Sara. Estou um pouco ocupada. Em que posso ajudar? – Ouvia-se sons abafados do outro lado da linha.- Desculpe ligar tão cedo, mas eu preciso saber se houve algum engano na hora que montou a lista de convidados para a sua festa. É possível que você tenha se confundido com os nomes e as fantasias? – Sara tinha urgência na fala. Dava para ouvir vozes agora pelo telefone. Regiane não estava só.- Não houve erro. Eu coloquei na lista as fantasias que vocês me informaram. Eu só não tive controle das pessoas que resolveram ir de última hora, acompanhando os convidados oficiais. Eu não tinha como sab
Segunda-feira A delegacia estava em polvorosa com a chegada da corregedora-chefe. Vestida com um talleur preto, os cabelos crespos presos para trás e um rosto sisudo, a mulher procurava não perder tempo enquanto investigava a invasão à sala de provas do 14º DP. Havia trocado duas ou três palavras com o delegado Marcondes desde que chegara. Torcera o nariz para a forma como o caso do assassinato na mansão Telles de Mendonça estava sendo conduzido por ele, mas não se envolveu. Seu objetivo era cristalino. Requisitou a presença do escrivão Lopes e se ocupou da sala de provas, onde o fez catalogar item por item guardado lá dentro para saber o que havia sumido – se é que algo havia sumido. Em sua sala, Marcondes sentia como se tivesse voltado para estaca-zero. O principal suspeito tinha argumentos fortes que o desconectavam quase que totalmente do crime e a investigação precisou ser recomeçada com a liberação de Guilherme Ribeiro. Uma batida na p