Capítulo 4

— Sr. Allan? Estás acordado? — Ouço a voz suave e incerta, acompanhada pelo som acústico do piano, ecoando na sala de jantar. Acordo assustado, removendo os óculos escuros do rosto.

Recordo todos os meus atos da noite passada. Não me sinto melhor ou pior do que ontem, mas há uma leve satisfação em saber que pude me relacionar com uma mulher, antes que minha vida sexual se prenda a uma figura de pessoa, se é que posso chamar minha futura esposa de gente.

— Adolfo... é claro que estou acordado — respondo, vasculhando o purê de batatas enquanto viro o rosto na direção do cômodo onde meu pai se encontra. Observo-o de longe, com sua postura de fidalga, deslizando os dedos naquele maldito piano. Imagino as atrocidades que passam pela cabeça do velho: punir o único filho homem.

Bocejo sonolento, tentando manter os olhos abertos.

Recomponho minha postura ao vê-lo levantar-se do banquinho e me lançar um olhar demoníaco. Oh, como eu o detesto! Mas, para conquistar meu triunfo, terei que ser cauteloso e suportá-lo. Nunca imaginei que sua partida deste mundo fosse ser tão dolorosa quanto perder o controle sobre seu próprio corpo.

Ouço os passos firmes dele se aproximando, e sinto sua mão pousar no meu ombro com uma pressão calculada, como se quisesse me lembrar de sua presença e autoridade.

— Então, meu filho — ele diz, carregando uma ironia cortante em cada palavra, com uma pontada de desgosto visível no olhar. — Como foi a sua noite? Deve ter sido... interessante. Ouvi dizer que você era o homem mais "gentil" na festa de Violeta. Quantas bobagens você comprou?

Minha irmã mais nova, que nos observa silenciosamente à mesa, arregala os olhos, enquanto leva uma colherada de comida à boca, tentando, talvez, se esconder atrás de um gesto tão simples.

— São obras de arte, não bobagens! — Respondo, virando o olhar para as paredes do salão, onde os quadros que cuidadosamente escolhi decoram o ambiente. Algumas das pinturas de belas mulheres foram feitas por mim mesmo, um reflexo da minha alma criativa e do que valorizo.

Ele puxa uma cadeira com um movimento brusco e senta-se, deixando claro que não está aqui para discutir, mas para impor sua opinião.

Sinto o cansaço me vencer, meus olhos piscando pesadamente até que, sem forças, minha cabeça cai na tigela de comida.

— Maldito seja o dia em que você nasceu, Allan! — meu pai exclama, sua voz carregada de raiva e desdém. — Comporte-se, pelo menos, na frente de Maria, que é sua irmã!

Sinto o peso de suas palavras como uma lâmina afiada, cortando minha dignidade. Mas não dou o prazer de ver minha reação. Com um movimento lento e calculado, levanto a cabeça, agarro um dos guardanapos e começo a limpar o rosto e as roupas manchadas de comida.

Olho para minha irmã, que poderia facilmente comer toda a comida enquanto nosso pai e eu discutimos. Sinto uma onda de sarcasmo subir à superfície.

— Perdoe-me, Maria. Esqueci completamente que você nem sabe de onde vêm os bebês. Um milhão de perdões.

Solto uma risada sarcástica, observando os olhares de nojo se voltarem para mim.

— Maria! — Frederick exclamou, sua voz carregada de autoridade. — Vá para o jardim.

— Mas, meu pai! Não quero ir para lá. Quero terminar meu almoço. Vocês dois discutam seus problemas em outro lugar — Maria retrucou, sua voz firme, mas cheia de desespero.

Frederick suspira profundamente, seu olhar furioso transmitindo a frustração de quem perdeu o controle. Maria b**e os pés, mas, relutante, acaba saindo, deixando-nos sozinhos para continuar nosso emb**e.

Antes de sair, Maria agarra uma coxa de frango e a coloca na boca com prazer, como se fosse um último ato de desafio. Eu observo a cena e, incapaz de resistir, provoco meu pai, sabendo exatamente onde acertar.

— Se ela continuar comendo assim, nunca arranjará um noivo — digo, maliciosamente, notando como a provocação o irrita. Maria sempre foi a queridinha dele, a intocável.

Um silêncio pesado se instala entre nós, carregado de tensão não resolvida. Aproveito a pausa para tocar no assunto que, inevitavelmente, viria à tona.

— Seja feliz, meu pai. Seu querido filho vai se casar — digo, abrindo um sorriso de deboche, deixando claro o desprezo que sinto por tudo isso.

Vejo seus punhos se apertarem, o controle visível enquanto tenta conter a vontade de me bater.

— O que você quer dizer? — Frederick pergunta, fingindo ignorância.

— Oras, de sua nora. Eu tive minha escolha, não era esse o nosso negócio? — pergunto, saboreando a tensão.

— Espero que ela não seja nobre, ou você perderá tudo o que ganhou de mim — ele remexe a comida no prato, o desprezo escorrendo de sua voz. — Procurou entre as filhas de meus sócios? São garotas de classe média, não tão ricas, mas também não tão pobres.

— Bem, pois então sorria! Ela é uma coisinha grotesca e muitos dizem que dificilmente consegue ler— digo, observando a dúvida se formar em seu olhar. — Espero que esteja treinando para ser pobre, porque eu terei tudo o que pertence a você.

— Mesmo que ela seja pobre, como você pode ser fiel por um ano inteiro? — Ele gargalha, um som cruel e desdenhoso. — Você não sabe controlar o pinto.

Respiro fundo e, com uma calma forçada, corto meu bife, levando-o à boca com as mãos, num gesto desafiador.

— Estes são meus méritos, não seus! — respondo, mastigando a carne com firmeza.

Meu pai se levanta lentamente, jogando o guardanapo sobre a mesa com desdém.

— Allan, espero que esteja ciente do que está fazendo — diz ele, em um tom grave, antes de se virar e caminhar até a porta. Sem olhar para trás, ele sai, deixando o ambiente pesado e sem um adeus.

Eu observo a porta se fechar e, por um instante, sinto o silêncio pesar sobre mim. Mas, no fundo, sei que fiz a escolha certa.

(...)

As nuvens encontram o sol de Blackwood, tornando nevoento e frio, a tortuosa tarde.

Qual desculpa inventaria para convencer o pai da pobre mulher a permitir o casamento?

Precisaria ser algo convincente, algo que tocasse seu orgulho ou sua ambição. Talvez eu deva apelar para a honra da família, sugerindo que a união traria benefícios mútuos, ou até mesmo insinuar que um casamento com alguém como eu elevaria o status de sua filha e garantiria seu futuro.

Enquanto fumo meu cigarro, ouço bater à minha porta e ordeno que entre.

— Sr. Melarque. Posso dirigir-me a você? —  Adolfo pergunta, entre a brecha da porta.

— Prossiga... — Indago.

— Eu tenho a informação, sobre aquela garota, que você me pediu que investigasse. Quer que eu conte agora ou mais tarde? — Ele diz, entrando no escritório e fechando a porta.

— Que pergunta tola, Adolfo! É assim, que você pretende tratar, a minha futura esposa? Deixando isso de lado? — Viro o corpo em sua direção.

— Perdão senhor, eu só pensei que... — caminha pelo cômodo, até ficar numa distância mínima de mim.

—  Eu não te pago para pensar, apenas para obedecer às minhas ordens. Vá em frente, o que você descobriu sobre a besta?

Manteve-se sua altura e continuou:

— O nome dela é Belly. Se fosse em outra ocasião, demoraria meses para encontrá-la, todavia, devido ao ocorrido de ontem...

— Desembucha criado!!! — rosno irritado com as delongas.

— Descobri que o irmão dela, caçula, foi chicoteado ontem por alguns guardas. — O criado conta e me lembro da situação que presenciei no carro, na noite anterior.

— Ele matou alguém? — Pergunto curioso.

— Não senhor, roubou um cesto de pães e dividiu com mais três colegas — Adolfo parece comovido —, um ato... Nobre, mas que o gerou sérias feridas.

— Não me venha com jogos sentimentais! Conte-me logo, onde ela mora? É casada? Viúva? — pergunto, impaciente, não querendo perder tempo com rodeios.

— Nenhuma das opções, senhor — o criado responde, inclinando-se levemente. — A moça é solteira, dizem que tem cerca de dezenove ou vinte anos, mas há quem fale de sua natureza selvagem. Duvido que seja fácil de controlar.

— Agora, você vai me ensinar como controlar uma mulher? Eu não me importo se ela é selvagem ou não, gosto de desafios. Só quero que ela seja minha esposa, isso é tudo.

— Mesmo se ela concordar, levará muito tempo — Adolfo diz, com um tom sério. — A moça sabe pouco sobre a civilização, vive em uma cabana no bosque e raramente é vista na cidade.

— Bem, eu já a vi duas vezes e não acho que será nosso último encontro — respondo, com confiança. — Se ela for como dizem, um pouco de persistência pode ser necessário.

— Senhor, há outro assunto que eu gostaria de discutir com o senhor — Adolfo continua, cauteloso. — Você tem tempo para me ouvir?

— Sim, diga imediatamente. — Ordeno.

— É a preparação do jantar de Natal. A quem devemos convidar?

— Estamos no segundo dia do mês... — rosno— Por que todos idolatram tanto essas festas?

Eu calculo um número de pessoas mentalmente.

— Mantenha a lista do ano passado? — O criado questiona.

— Acabei de fazer um ajuste. — Respondo.

— Qual? — ele pergunta.

— Acrescente meu pai e minha irmã. Eu quero que estejam presentes, quando eu anunciar que me casei.

Um "ô" parece aparecer na boca do servo enquanto ele hesita, ponderando o tempo disponível. Faltava pouco para o Natal e todos precisariam dobrar o trabalho para lidar com os preparativos e as demandas adicionais da temporada.

— Senhor, tens certeza? — disse confuso.

— Mas é claro que tenho! — Cerrei os punhos. — Faça o que mandei, já lhe disse!

— Tudo bem, eu vou fazer tudo acontecer magnificamente. — O criado responde.

— Ah, antes de partir, vá para os estábulos e prepare meu cavalo — digo, voltando-me novamente para a janela. O horizonte lá fora parece me chamar, e eu calculo meu futuro. — Vou visitar Belly e sua família mais tarde.

— Senhor, nos aproximamos das 14h da tarde — Adolfo observa o grande relógio do escritório. — Pretende mesmo cavalgar por aquela região neste horário?

— Bem, quando eu ordeno uma função a um criado, eu espero que ele a cumpra — respondo, com firmeza.

— Prepararei tudo, senhor.

Enquanto ele se retira, eu me perco em pensamentos sobre meu triunfo sobre meu pai. Gostaria de ganhar a aposta. Vou fazê-lo sofrer a pobreza que ele tanto despreza. E, além disso, irei me aventurar por um ano com uma jovem inocente do campo. Não pode ser tão ruim...

Olhei para o derredor do estábulo e meu cavalo estava pronto para montá-lo.

— Sr. Melarque. Que horas irás voltar? Adolfo perguntou, entregando meu casaco e minha pasta.

— Prepare um bom banquete— respondi pondo as luvas— Minha futura esposa, ficará conosco está noite.

Ele me encarou cético.

— Senhor, perdoa-me. Mas, como podes ter tanta certeza, de que a rapariga aceitará o teu pedido?

— Oras, eu sou Allan Melarque! Nenhum homem nesta província, é tão poderoso quanto eu sou— Puxei um sorriso- Sei quem eu sou e, na posição em que estou, não há tantos "não" para mim.

Eu estava convencido e puxei as rédeas do cavalo manchado. Não me importava o que a camponesa sentia ou não. Na minha cabeça, havia apenas duas opções: ela seria minha esposa por bem ou por mal.

Continue lendo no Buenovela
Digitalize o código para baixar o App

Capítulos relacionados

Último capítulo

Digitalize o código para ler no App